A TRADIÇÃO CLÁSSICA NA COMÉDIA BRASILEIRA
Carlinda Fragale Pate
Nuñez (UERJ)
Gisele Nery de Andrade (UERJ)
Michelle de Alcântara
(UERJ)
Thereza Maria Zavarese Soares (UERJ)
Viviane da Fonseca Moura (UERJ)
INTRODUÇÃO
O teatro é o gênero da ação falada. Uma personagem fala para agir sobre outra ou para comentar uma ação, neste caso a fala é instrumento da ação. O autor reproduz as falas do cotidiano, organizando-as em diálogos ou monólogos, com o objetivo de se comunicar com os espectadores através de suas personagens.
Na obra analisada neste estudo, O Santo e a Porca, o autor Ariano Suassuna faz uma referência explícita à sua fonte inspiradora logo após o título. O autor nordestino teve como modelo o comediógrafo latino Plauto e sua peça Aulularia, fazendo alusão a comédia clássica e a seu conteúdo crítico que tinha como alvo o sistema político-social vigente e os cidadãos típicos que o integram. A cultura nordestina estrutura-se sobre valores tradicionais e regionais mantidos por uma tradição folclórica e religiosa, assemelhando-se com a cultura clássica estruturada sobre os mitos de seus triunfos heróicos e dos feitos divinos.
Objetiva-se através deste estudo verificar como a tradição dramática pode ser reencenada e ambientada a outras épocas e culturas. Deste modo, tem-se noção da mímesis do texto, do processo de recriação que o torna uma obra única e que exige do autor criatividade para transformar um modelo em algo original.
ANÁLISE
Para se fazer a análise de um texto dramático, deve-se estudar individualmente os seus componentes fundamentais. São eles: as personagens, o enredo, o espaço e o tempo.
Personagens
As personagens estão intimamente ligadas ao enredo, e vice-versa. Estas são as duas forças principais que regem um texto dramático. As personagens foram analisadas levando-se em consideração três aspectos:
- o que ela revela sobre si por meio de um confidente, do "aparte" ou do monólogo;
- o que ela faz, a sua participação na ação da peça;
- o que as outras personagens dizem a seu respeito.
A partir desta primeira análise, pode-se qualificar uma personagem de acordo com os seguintes critérios : sua utilidade, sua propriedade, sua verossimilhança e sua consistência, para em seguida relacioná-las entre si e com o enredo. A análise individual de cada personagem encontra-se na tabela abaixo:
PERSONAGENS |
CARACTERÍSTICAS |
EURICÃO |
§ “Engole Cobra”, Eurico Árabe; § protagonista da peça; § pai de Margarida e irmão de Benona; § personagem avarento. |
PORCA |
§ oposição do profano frente ao religioso (Sto. Antônio); § objeto de cobiça; § representa a avareza de Euricão (um dos 7 pecados capitais). |
SANTO ANTÔNIO |
§ santo casamenteiro, “achador” e popular; § santo de devoção de Euricão; § representação do sagrado e da fé. |
MARGARIDA |
§ “flor bucólica”; § filha de Euricão (a filha é o patrimônio do pai); § noiva de Dodó; § personagem que desencadeia dois pólos de interesse: material (Euricão) e sentimental (Eudoro e Dodó). |
BENONA |
§ alusão à personagem de Plauto, Eunomia do grego EUNOMÍA “ordem bem regulada”; § irmã de Euricão; § ex-noiva de Eudoro; § representa os pudores e os recatos. |
CAROBA |
§ “árvore grande e forte”; § empregada de Euricão; § personagem que desenvolve toda a rede de intrigas que envolve os casamentos. |
PINHÃO |
§ “fruto rústico”; § empregado de Eudoro; § noivo de Caroba; § representação da busca da liberdade. |
EUDORO |
§ “EÚDOROS”- composto por “eú” (bom,bem) e de “dôron” (o generoso); § pai de Dodó; § ex-noivo de Benona e pretendente de Margarida; § representação da burguesia. |
DODÓ |
§ redução do nome Eudoro (indica a submissão do filho ao pai); § filho de Eudoro; § noivo de Margarida. |
A relação entre as personagens e o enredo está representada no esquema a seguir:
O conflito central do enredo é constituído pelas ações da personagem Euricão, que busca alcançar seu objetivo materializado na porca, o que leva a envolver outras personagens na intriga. As três personagens femininas, Benona, Margarida e Caroba, estão diretamente relacionadas ao protagonista, estabelecendo um vínculo de dependência afetiva e financeira. As demais personagens masculinas se envolvem no enredo através destas personagens femininas, ou seja, estão indiretamente relacionadas à personagem central, gerando os conflitos paralelos, ou fricções, que visam um outro objetivo: a realização amorosa pelo casamento.
Enredo
O material que o autor utiliza para inventar sua história denomina-se fábula. Fábula, na concepção latina, é uma narrativa de caráter mítico. Aristóteles chama de fábula a reunião das ações, dos acontecimentos que estruturam uma obra. Portanto, a fábula é o enredo, o material narrativo de que se origina o texto dramático.
Dentro do enredo, encontra-se a intriga e o léxico da intriga. A intriga é a seqüência dos acontecimentos. Ao dispor os fatos numa determinada ordem, o autor revela gradativamente suas intenções. Inicialmente, foram analisados os conflitos em que se encontram as personagens. O conflito central é aquele em que o(s) protagonista(s) depara(m)-se com um obstáculo, seja ele uma ou mais personagens ou uma força abstrata, como o sistema social ou os valores da consciência. Na peça de Suassuna temos como conflito central:
A avareza de Euricão; seu apego demasiado à porca e sua dedicação a ela como substituta da esposa que o abandonou; seu medo de perdê-la; sua devoção a Santo Antônio como protetor de seu lar e de sua porca; colocação da porca no socavão da escada; a retirada da porca do socavão para a sala e para a proteção de Santo Antônio; a retirada da porca de casa, dos cuidados do santo para o cemitério, “onde tudo se perde e não se acha nada”; a colocação da porca no socavão ao lado do túmulo da esposa; o roubo da porca (primeira perda); a devolução da porca; a grande decepção (segunda e derradeira perda).
Em seguida, foram identificadas as engrenagens que compõem a mecânica da obra, o que chamamos de léxico da intriga. São os recursos utilizados pelo autor para manter o interesse do leitor ou espectador até o fim do texto.
O primeiro componente da intriga a ser examinado é a exposição. Se a peça não se inicia com a exposição de informações sobre as personagens e o assunto, ela se inicia de forma abrupta pelo diálogo das personagens.
Os nós formam o segundo princípio componente. Eles são os obstáculos que alteram a situação inicial. Em O Santo e a Porca identificamos como os nós da intriga:
Os mal entendidos por parte de Euricão, que sempre se achava ameaçado de perder a sua porca, resultaram de seus receios e desconfianças: com a intenção da carta de Eudoro; com sua empregada Caroba; com o interesse de Eudoro em comprar a porca; com a porca assada do jantar; com a aproximação e o interesse de Pinhão na porca e com o falso ladrão.
Outro componente fundamental é a peripécia. Cada peripécia representa uma mudança súbita da ação. Na obra de Suassuna, são peripécias: “As várias mudanças de lugar da porca que desencadearam o roubo desta; a revelação do ladrão e a devolução da porca.”
As fricções são os pequenos conflitos que interferem na intriga e enredam-se no conflito central. Por exemplo:
O casamento de Dodó e Margarida que tinha como obstáculo o medo do casal de que seus pais não aceitassem o seu romance; o casamento de Eudoro e Benona, impedido no passado por um obstáculo moral; o casamento de Pinhão e Caroba que tinha como obstáculo a falta de recursos financeiros.
E por último temos o desfecho, o ponto culminante do conflito, a derradeira peripécia após a qual a trama deve terminar.
“A revelação feita por Eudoro de que o tesouro contido na porca não tinha nenhum valor, culminando com a decepção de Euricão.”
Toda esta análise da intriga pode ser ilustrada pelo seguinte esquema:
Prosseguindo com a análise do enredo, foi utilizado o modelo actancial para estudar as estruturas profundas que regem a obra. Este modelo, criado pelo semanticista A. J. Greimas e adaptado ao campo teatral pela especialista Anne Ubersfeld, permite analisar as forças interiores que coordenam a ação. Essas forças são representadas por flechas sendo que não precisam ser necessariamente personagens, podendo ser também desejos ou emoções. Este esquema representa a sintaxe da ação dramática que relaciona as personagens umas às outras através destes elementos invisíveis da ação.
No eixo principal, encontra-se o motor da obra, a relação entre o SUJEITO e o OBJETO da ação. A flecha representa a busca, o desejo, a vontade: aquilo que os une. O objeto pode ser uma abstração (o poder, a segurança), mas representado por uma personagem.
O segundo eixo é o eixo das forças antagônicas. O ADJUVANTE ajuda o sujeito a realizar sua busca e o OPONENTE tenta impedir essa busca.
E o terceiro eixo é o das implicações ideológicas, das motivações. O DESTINADOR é aquilo que faz o sujeito agir e o DESTINATÁRIO é aquilo a que o sujeito atribui sua busca.
Ao dispor os acontecimentos desta ou daquela maneira, o autor transmite a sua mensagem ao público, realiza o seu objetivo. Esta mensagem se encontra na estrutura interna e abstrata da obra, que foi identificada através do modelo actancial.
Espaço e Tempo
O próximo passo é a análise do espaço e do tempo para compreender onde e quando a ação se passa, identificar os lugares e estabelecer uma cronologia.
Chama-se "palais à volonté" o lugar onde a ação se passa e que está intimamente ligado às demais estruturas do texto. Na peça O Santo e a Porca, a ação se passa na sala da casa de Euricão, o que pode ser comprovado nas indicações cênicas. Estas indicações devem ser confrontadas com o texto interpretado pelos atores, pois a linguagem está relacionada com a demarcação espacial e ambas se unem pela ação dramática. No texto analisado, a casa do protagonista é vista por ele próprio como o seu território, protegido pelo seu santo de devoção, e como sua fortaleza, onde ele guarda seus dois tesouros: a filha e a porca.
O "fora de cena", ou seja, o espaço que não se destina a ser representado no palco, também intervém no enredo, sendo evocado ou relatado pelas personagens. O enredo é estruturado sobre a oposição entre o espaço idealizado ou metafórico e o espaço real (palais à volonté). A estruturação dos espaços em O Santo e a Porca pode ser observada no esquema a seguir:
Os espaços utilizados por Suassuna estão relacionados aos de sua fonte inspiradora, a Aulularia de Plauto:
CASA DE EURICÃO / TEMPLO DE STO. ANTÔNIO = TEMPLO DE BONA FIDES
FESTA DE SÃO JOÃO = FESTA DE CERES
CEMITÉRIO = BOSQUE DE SILVANO
HOTEL DE DADÁ = MERCADO (FORUM)
O tempo intervém na ação de várias formas: estabelecendo uma cronologia que reconstitui o desenrolar dos acontecimentos; fornecendo um tempo próprio para cada personagem; através de marcas temporais que aparecem no texto ou tomando uma dimensão metafórica. O próprio diálogo das personagens fornece indicações que inscrevem a ação dentro de um tempo real e juntamente com a divisão em atos (separados por intervalos), cenas e quadros (marcados pelas entradas e saídas das personagens) compõem as principais marcações temporais no momento da representação. O tempo da ficção obedece à concepção clássica das unidades e da verossimilhança. A ação se passa num período de 24 horas dividido entre os três atos da peça. O tempo da representação é caracterizado pela continuidade.
Na peça de Ariano Suassuna, o tempo da representação é marcado da seguinte forma:
PRIMEIRO ATO: Tempo da espera por Eudoro (as ações se passam no período da manhã.)
SEGUNDO ATO: Tempo da espera pela entrevista (as ações se passam no período da tarde)
TERCEIRO ATO: Tempo das entrevistas e das revelações (as ações se passam no período da noite)
Estas marcações ficam muito claras nas falas das personagens. Concluí-se então que, na representação da peça, o fato da "entrevista" é o marcador temporal que a divide em dois grandes momentos:
ANTES DA ENTREVISTA: clima de tensão, espera, expectativa que culminará na reconciliação dos casais Caroba e Pinhão, Margarida e Dodó e Eudoro e Benona.
DEPOIS DA ENTREVISTA: reencontro de Dodó com seu pai Eudoro, os pedidos de casamento, a descoberta do segredo de Euricão (a porca) e a sua decepção.
CONCLUSÃO
Através deste estudo pôde-se observar que as estruturas internas dos textos dramáticos revelam que a tradição literária se conserva em obras contemporâneas, como foi verificado na peça do comediógrafo Ariano Suassuna.
Analisando as personagens, o enredo, o espaço e o tempo em O Santo e a Porca, foram detectados aspectos que demonstram uma aproximação com a comédia latina de Plauto, como o próprio Suassuna admite no subtítulo de sua obra.
Sendo assim, o teatro clássico se renova na contemporaneidade. Um mesmo enredo se atualiza em novos cenários e novos contextos culturais. Valores são retomados de tempos em tempos e colocados em foco pela literatura, sob novas perspectivas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Suassuna, Ariano. O Santo e a Porca. Rio de Janeiro : Olympio, 1974.
Plauto. “Aulularia”. Rio de Janeiro : Ediouro, [s.d.]. In: Comédia Latina.
RYNGAERT, Jean-Pierre. Introdução à análise do teatro. São Paulo : Martins Fontes 1996.
Brandão, Junito. Dicionário Mítico-Etimológico. Petrópolis : Vozes, V 1 1997.
Machado, José Pedro. Dicionário Etimológico de Língua Portuguesa. Lisbosa : Livros Horizonte, V 2.