ASPECTOS SINTÁTICO-SEMÂNTICOS NO DISCURSO JURÍDICO

Luciana Romano Morilas (UNESP)

AGRADECIMENTOS: Ao Dr. Paulo César Scanavez, que gentilmente nos forneceu o texto básico utilizado neste trabalho e ao Prof. Dr. Sebastião Expedito Ignácio, pelas valiosas sugestões.

1. INTRODUÇÃO

O objetivo principal é apresentar uma análise dos expedientes lingüísticos coadjuvantes do processo de construção do efeito de sentido pretendido no discurso jurídico, ou seja, a persuasão. Pretende-se fornecer subsídios lingüísticos atinentes à argumentação àqueles que mais freqüentemente escrevem e formam o discurso jurídico: juizes e advogados.

Quanto mais bem escrito estiver um texto, mais eficientemente ele alcançará seu objetivo, que é o de convencer o leitor do ponto de vista apresentado. Ao se atribuir ao texto o qualificativo “mais bem escrito”, denotam-se as suas qualidades básicas: clareza, objetividade, coesão, coerência, correção gramatical, dentre várias outras. Deve-se considerar também que o domínio dos recursos retóricos conduz à produção de textos mais eficientes quando se trata de buscar a persuasão.

Para comprovar as hipóteses acima, analisa-se uma sentença judicial monocrática que, sob sua aparente monofonia, objetiva a solucionar um caso proposto e, no plano profundo, a transmitir uma segunda mensagem mais atinente à moral que à simples aplicação da lei. Nesse contexto comprovadamente polifônico – influenciado também pelo discurso dos advogados das partes envolvidas – é importante ressaltar ainda a formação discursiva que envolve o texto analisado.

Levanta-se ainda a hipótese de que a tipologia verbal escolhida para expressar uma idéia (ativa, processiva, ativo-processiva ou estativa) possa alterar o efeito argumentativo pretendido no discurso. Assim, ganha relevância no trabalho o modo como a tipologia e o aspecto verbais influenciam o discurso do juiz. Tendo seu arcabouço teórico ancorado nas propostas de Bakhtin (1979), quanto à análise do discurso, e na teoria de Tesnière (1966) e de Chafe (1979), quanto à centralizasse do verbo, o objetivo deste trabalho é fornecer aos aplicadores do direito uma reflexão acerca da importância da boa organização sintático-semântica de um texto para que a argumentação obtenha sucesso, ou melhor, para que seu ponto de vista seja acatado pelos enunciatários.

Para que se proceda à análise, apresenta-se, antes de qualquer outra reflexão, a transcrição exata do texto original, cujos nomes e demais informações que pudessem identificar as pessoas envolvidas foram suprimidos para preservar sua identidade, sem prejuízo ou comprometimento da análise:

P. move ação contra I., dizendo que em 3.12.97 adquiriu na perfumaria W., produto de ondulação S, que lhe foi aplicado em 5.12.97 por sua mãe, experiente cabeleireira, mas imediatamente depois da aplicação os seus cabelos começaram a se quebrar, tendo o produto lhe causado irritação na pele facial. Contactou com a ré, a qual lhe orientou não procurasse auxílio médico, dando-lhe alguns produtos, além de convidar a autora e sua mãe Cecília para participarem de um curso em São Paulo, mas não foram por falta de recursos financeiros. A queda de cabelos e a irritação na pele facial ocorreram coincidentemente no dia de seu aniversário, frustrando-a, expondo-a ao deboche de outras pessoas, causando-lhe sofrimento psíquico. Pede a condenação da ré a lhe ressarcir os referidos danos morais, no valor a ser arbitrado judicialmente, além dos honorários advocatícios, custas e demais consectários legais. Docs. Às fls. 11/17.

A ré foi citada e contestou (fls. 29/49) e apresentou preliminares. Alegou que a autora não trouxe prova alguma de pagamento com tratamento médico, dermatológico ou com os produtos por ela utilizados. Como foi o produto acondicionado nesses 13 meses entre o fato e o ajuramento da ação? Por aí se vê da impermeabilidade do produto para os fins periciais, mesmo porque o líquido não está intacto, sofreu manipulação, não se sabe como permaneceu acondicionado ao longo desse período. A responsabilidade pelos danos sofridos pela autora não deve ser atribuída ao produto fabricado pela empresa, pois o problema resultou do método como o produto foi aplicado por Cecília, mãe da autora. Não se pode aplicar tintura em cima de outra por muito tempo, pois os fio ficam porosos, devido ao excesso de produtos químicos. O cabelo da autora rompeu onde havia maior efeito da tintura, o que comprova a má aplicação. O produto para ondulação deve ser utilizado somente por profissionais da área de cabeleireiro, por isso sua venda é restrita. Para a realização da ondulação dos cabelos devem Ter sido atendidas as recomendações pormenorizadas na embalagem. A ré sempre realiza exames com os seus produtos, cujos testes foram realizados para os fins especificados às fls. 36/37. A autora não realizou prova alguma comprovando o defeito do produto utilizado. O produto é de excelente qualidade, não configurando em momento algum culpa da ré ou defeito do produto. No verso da embalagem consta o número do telefone do C. T. S. onde uma equipe especializada e treinada oferece suporte aos profissionais cabeleireiros, inclusive por telefone. Portanto, houve má aplicação do produto. A responsabilidade civil deve fundamentar-se no defeito de fabricação do produto, ou na comprovação da culpa pela ré, o que inocorreu. Improcede o pedido. Docs. Às fls. 51/95.

Réplica às fls. 100/116. Nova manifestação da ré às fls. 118/133. Saneador a fl. 138. Ficou prejudicada a denunciação da lide (fl. 149). Prova oral às fls. 167/175. Em alegações finais (fls. 177/181 e 183/199) as partes reiteraram os seus anteriores pronunciamentos.

É o relatório. Fundamento e decido.

As preliminares suscitadas na contestação (fls. 29/32) foram rejeitadas pela decisão interlocutória de fl. 138. A ré não providenciou a retirada da carta-citatória da denunciada da lide, motivo pelo qual a decisão de fl. 149 entendeu prejudicada a denunciação.

A ilustração de fl. 14 realça a cabeleira da autora antes da aplicação do produto. A de fl. 15 exibe-a logo depois da utilização do produto, com destaque ainda para a irritação da pele facial da autora. Esta adquirira o “líquido de ondulação n.02”, “Natural Styling”, e foi sua mãe, Cecília, cabeleireira, quem efetuou a aplicação nos cabelos da autora. A embalagem do produto consta de fl. 95 a qual enfatiza: “Natural Styling – Líquido para Ondulação 2 – para cabelos porosos tingidos ou descoloridos. Uso exclusivo profissional. Aplicação: lavar o cabelo com Shampoo Natural Styling. A intensidade da ondulação depende da quantidade e espessura dos bigoudis. O Líquido para Ondulação adequado (0, 1 ou 2 ) e o tempo de ação, variando de 5 a 20 minutos, são decididos de acordo com a estrutura geral do cabelo. O uso do secador reduz o tempo de ação pela metade. Em cabelo tingido ou descolorido não usar fonte de calor. Neutralização: Neutralizar o cabelo com NEUTRALIZANTE NATURAL STYLING STABILFIX de acordo com as instruções na embalagem. Lavar novamente com Shampoo e aplicar o Bálsamo Condicionador ou Pós-Styling Mousse. ...ADVERTÊNCIA: este produto somente deve ser usado para o fim a que se destina, sendo PERIGOSO para qualquer outro uso. Não deve ser aplicado se houver feridas, escoriações ou irritações no couro cabeludo. Recomenda-se usar luvas. ATENÇÃO: uso externo. Evitar o contato com os olhos. Caso isso ocorra, enxaguar imediatamente com água. Persistindo a irritação, procurar um médico. Mantenha fora do alcance de crianças. Não reaproveitar a embalagem.” Os documentos de fls. 66/94 demonstram que referido produto fora submetido a inúmeros testes: a) irritação ocular realizado pelo Instituto de tecnologia do Paraná, que concluiu: “produto não irritante. Os animais não apresentaram lesões oculares durante o período de ensaio”; b) irritação da pele, realizado pelo Instituto Adolfo Lutz: “nas cobaias empregadas não se verificou nenhum sinal de irritação ou alteração da pele”; c) irritação cutânea primária, realizado pelo Instituto de Tecnologia do Paraná: “produto não irritante. Os animais apresentaram eritema e edema muito leve”; d) irritação cutânea primária, realizado pelo Instituto Adolfo Lutz: “o produto testado foi considerado satisfatório”; e) teste de contagem bacteriana, realizado pelo Laboratório Fleury, que concluiu: “resultados satisfatórios: menor de 10 U.F.C./ml.” Consta dos autos que o produto é fabricado no Brasil, pela ré, através de licenciamento da empresa alemã Schwarzkopf, e está registrado (à semelhança dos demais produtos fabricados pela ré) no Ministério da Saúde sob os nº 2.0770.0054.03-0, desde 9.2.90. A prova documental e oral informou ainda que a ré coloca à disposição dos profissionais da área o CENTRO TÉCNICO SCHWARZKOPF – C.T.S. –, para receberem instruções minuciosas sobre os produtos da ré e a forma adequada para aplicá-los visando à obtenção de melhores resultados.

A embalagem do produto é bem transparente: “uso exclusivo profissional”, isto é, “a pessoa encarregada de aplicá-lo não pode ser um mero curioso, amador ou o profissional sem o necessário conhecimento das particularidades da relação entre o produto e o cabelo”. Afinal, todas as observações e advertências postas na embalagem objetivam cuidar de uma das partes mais interessantes do corpo feminino, que são os cabelos. Aí, todo o cuidado é pouco!

No catálogo de fl. 62 existem ilustrações e explicações “passo a passo” referentes ao procedimento básico para a execução de uma permanente. A prova oral de fls. 167/168 e 173/175 revelou que a autora aplicava tintura nos cabelos há três seguidos anos, isso até que aplicou o líquido para ondulação tipo 2 “Natural Styling”, quando ocorreu o dano aos seus cabelos e pele facial. Sua mãe, Cecília, contou como procedeu à aplicação: “o produto estava regularmente lacrado. O comprimento dos cabelos era de 40 cm aproximadamente. A ondulação seria restrita às pontas. A depoente molhou-o com o produto apenas na parte destinada à ondulação, iniciando a aplicação no lado esquerdo, enrolando-os como os bigoudis. Depois passou para o lado direito, e assim que os enrolava com os bigoudis notou que os do lado esquerdo começaram a se quebrar. Imediatamente correram até o tanque onde aplicou no cabelo da autora um jato d’água e o neutralizante para eliminar a química do produto. …Os cabelos da autora são louros-claros (cor natural). A aplicação da ondulação e o enrolamento com os bigoudis consumiram 15’. A autora utilizava “Koleston” na tintura. Trata-se de tinta comum. A depoente não precisou aplicar a prova de toque (irritabilidade) e de eficiência, pois aplicara o mesmo produto em 3 outra oportunidades e dera certo”.

Inês (fl. 173) é cabeleireira e consumidora dos produtos da ré e foi quem, a pedido da ré, deu assistência à autora à vista da queda de seus cabelos, a qual apresentou dados significativos: “ouviu da mãe da autora que esta não aplicara um produto para preparar o cabelo para receber o destinado à ondulação. … O cabelo da autora era longo (antes da aplicação), tinto.… O cabelo tinto requer maiores cuidados prévios para receber ondulação. O produtos, nesses casos, só deve ser aplicado depois de enrolados. Um terço da cabeleireira da autora (fl. 114) seria enrolada em 15’, aproximados, e deixado o produto no cabelo por 10 a 15’, dependendo do estado deste. Habitualmente faz em cabelos tintos os testes da eficiência e do toque. …O “pré” está indicado na embalagem do produto”.

Mais interessante, ainda o testemunho de Rosana (fl. 174), cuja qualificação/interação com a relação “produto-consumidor” ficou bem evidente quando ouvida por este juiz (princípio da imediatidade), cuja versão corrobora a convincente prova documental/oral até então carreada para ao autos pela ré: “a mãe da autora lhe contou Ter aplicado o produto de ondulação na autora, enrolou seus cabelos com os bigoudis…”. Rosana fez outras importantes considerações: “…o procedimento de aplicação do produto de ondulação não foi adequado, pois se deu pelo MÉTODO DIRETO, sem que o cabelo tivesse sido enrolado com os bigoudis, o que favoreceu a concentração de amônia, desencadeando a quebra dos cabelos. … No processo de ondulação de cabelos tintos, obrigatoriamente, tem um pré-equalizador que prepara o fio do cabelo para uma nova química; em seguida se enrolam os cabelos com os bigoudis e aplica-se o produto; dá-se uma pausa entre 7’ e 15’, no máximo, dependendo da sensibilidade do cabelo, enxaguando-o muito bem; em seguida enxuga-se com a toalha e aplica o neutralizante por 5’ com os bigoudis e 5’ sem os bigoudis”.

A mãe da autora não obedeceu ao procedimento transparente explicitado na embalagem do produto (fl. 95). Está demonstrado que Cecília atua como cabeleireira, manicura e pedicura, mas a PROVA SUBSTANCIAL colhida nestes autos indica com toda a segurança que houve negligência da aplicadora quanto ao ritual pormenorizado na embalagem. Relembro os dizeres iniciais a serem obedecidos na aplicação do produto: “Lavar o cabelo com Shampoo Natural Styling. Igualar eventuais diferenças de estrutura com Pré-Styling…”. Como anotou Rosana em seu lúcido testemunho, “Cecília optou pelo MÉTODO DIRETO”, o que era inadmissível para a ocasião, haja vista os cabelos porosos, tingidos/descoloridos da autora.

Cecília não se preocupou (e era conhecedora da técnica) em aplicar nos cabelos da autora, antes da utilização do produto, “a prova de toque (irritabilidade) e de eficiência”. Não demonstrou cuidados elementares no exercício de sua arte, embora dotada de experiência. Sem dúvida que a embalagem contém de modo OBJETIVO o que o PROFISSIONAL necessita saber para aplicar o produto. Não se exigia da ré que além daquele conteúdo “incorporasse algum manual descritivo da arte profissional de cabeleireiro”. Não é a tanto que o CDC reclama.

Estranho é o fato da Autora ter aguardado praticamente um (1) ano para reclamar na Justiça, quando poderia fazê-lo imediatamente após a queda de seu cabelo, exibindo o frasco com o produto para o imediato exame pericial. Assiste razão à ré quando põe em dúvida essa conduta da autora-consumidora: “como o produto foi acondicionado nesses 12 meses e meio?”. A irritação facial pode ter mais de fundo emocional do que especificamente de qualquer outro agente externo, e a tardia propositura da ação impossibilitou auscultar a real causa dessa irritação. Pelo visto não se preocupou a autora em buscar assistência de médico-dermatologista, cujo diagnóstico poderia fomentar-lhe a iniciativa pedida nesta demanda.

A ré ao ser avisada por Cecília sobre o problema havido com a Autora, em poucos dias, através de funcionários qualificados, deslocou-se até esta cidade e prestou a assistência/orientação devida à autora, convidando-as inclusive para cursos no C.T.S. (fl. 17), o que demonstra a seriedade da empresa. A ré agiu com tamanha transparência no episódio que, com muita segurança, deixou com a própria consumidora o “frasco contendo um pouco do produto utilizado”, isto é, a consumidora tinha plena liberdade de encaminhá-lo para algum laboratório para detectar eventuais impropriedades, aí sim “causa eficiente deflagradora da queda de seus cabelos”. Não houve preocupação de apreender o frasco para dar sumiço em seu conteúdo visando frustrar o direito da autora à verdade técnica (pericial).

Portanto, a autora não tem razão alguma. O produto não foi aplicado segundo o ritual indicado na embalagem, por isso a ré não tem que lhe indenizar pelos eventuais transtornos recolhidos de seus “amigos” (?).

Posto isso, JULGO IMPROCEDENTE a ação. Condeno a autora a pagar à ré, R$1.000,00 (mil reais) de honorários advocatícios, com correção monetária a partir de hoje, custas processuais e as de reembolso. Essas verbas serão exigidas apenas na situação preconizada pelo art. 12 da Lei 1060. Extingo o processo, com julgamento de mérito, nos termos do inciso I do art. 269 do CPC.

P.R.I.

São Carlos, 22 de setembro de 1999.

2. PRESSUPOSTOS OPERACIONAIS

Uma sentença judicial monocrática, em que se baseia esta análise, é aquela proferida por um só juiz (mono- = único + -crática, de -cracia = poder; autoridade) em primeira instância ao final de um processo em que duas partes afirmam ter direitos/deveres que se contrapõem. A esse juiz é dado o poder de decidir a respeito da demanda. A ele cabe determinar a quem assiste a razão.

Nos textos jurídicos, o espaço para a criatividade é diminuto, uma vez que o enunciador (advogados e juízes nesse caso específico) deve-se cingir à legislação vigente no país. Sua característica é eminentemente polifônica e a maneira de apresentação da forma do outro é importante na produção do efeito de sentido buscado: a persuasão. O compromisso dos advogados das partes é, sobretudo, com a demanda. Seu objetivo é convencer o juiz de que seu cliente está com a razão, o que torna seus textos quase que obrigatoriamente subjetivos, apesar de se pautarem pelas normas gerais de direito. Afinal, cada parte deve defender seu próprio ponto de vista a respeito de um problema colocado. Ao contrário, os textos dos juízes devem ser o menos subjetivo possível, para que não se sacrifique a imparcialidade.

Nesse momento, merece alguns instantes de reflexão a idéia de representação do real. O juiz só toma conhecimento do fato real conforme o que é apresentado por cada uma das partes, ou seja, através de textos. Ele não viu o fato acontecer na realidade – e, se viu, é considerado suspeito para julgá-lo, pois seu ponto de vista influenciará na decisão, o que não pode acontecer – e, além disso, é impossível repeti-lo no contexto real de ocorrência, com todas as circunstâncias que o envolveram. Na verdade, são as palavras de cada parte que vão levar o fato ao conhecimento do julgador – e a forma como essas palavras serão apresentadas é muito importante para levar o juiz ao convencimento. Percebe-se, já neste início de reflexão, que o discurso do juiz estará “contaminado” pelo discurso das partes e das testemunhas, que lhe forneceram o material de contato com o real.

O objetivo primordial do juiz é encontrar a Verdade para, através dela, promover a Justiça. Nesse ponto surgem algumas questões interessantes: o que é a Verdade? Qual o compromisso das partes com a Verdade? A Verdade é a mesma para ambos os lados? Essas questões, discutidas por inúmeros filósofos ao longo dos tempos, não serão analisadas e muito menos respondidas aqui. O que cabe salientar é que cada um apresenta o seu modo particular de ver a Verdade. Muitas vezes é a maneira como essa mesma Verdade (ou Realidade?) é apresentada que levará ao sucesso na contenda.

Ao juiz resta o papel complicado de analisar qual das “Verdades” apresentadas está de acordo com o ordenamento jurídico vigente, ou seja, com as leis elaboradas pela sociedade em que se inserem, e expor sua decisão de modo a convencer seus interlocutores. Assim, não é apenas próprio dos advogados o texto argumentativo com vistas à persuasão, mas também dos juízes, que devem obrigatoriamente apresentar suas decisões de forma motivada para convencer todos os seus interlocutores – partes e juízes colegiados, em caso de recurso – de que a razão lhes assiste, ou melhor, de que sua decisão é a mais acertada.

Ainda merece destaque a formação discursiva em que se inserem todos os sujeitos envolvidos na enunciação desse discurso. Enquanto se trata da sentença em primeira instância, pode-se considerar que todos – juiz, partes e testemunhas – inserem-se em uma mesma, ou pelo menos bem semelhante, formação discursiva. São valores éticos e morais que acabam entrando na discussão de uma forma ou de outra e que em primeira instância devem ser mais próximos, devido até à proximidade espacial e temporal entre o fato acontecido e a decisão.

3. ORGANIZAÇÃO TEXTUAL

A sentença apresenta-se formalmente dividida em três partes, conforme o texto da lei preceitua, no artigo 458 do Código de Processo Civil:

Art. 458. São requisitos essenciais da sentença:

I – o relatório, que conterá os nomes das partes, a suma do pedido e da resposta do réu, bem como o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo;

II – os fundamentos, em que o juiz resolverá as questões de fato e de direito;

III – o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões, que as partes lhe submeterem.

No relatório encontram-se os fatos conforme foram apresentados no decorrer do processo. É uma paráfrase da representação da realidade apresentada pelas partes. É nesse sentido que se pode aproximar o discurso jurídico do discurso científico: primeiro, por lidar com fatos reais e, segundo, pela possibilidade de ser parafraseado, conforme Brooks e Richards (apud Sant’anna, 1991, p. 19/20). Encontram-se nesse trecho enunciados sinônimos ou semanticamente equivalentes aos dos textos de cada uma das partes, que passaram pela interpretação do enunciador e, portanto, não são mais puros.

Assim, aqui há uma paráfrase interpretativa; um resumo cuja forma de apresentação (enunciados escolhidos e sua sintaxe) já antecipa a decisão exposta adiante. Percebe-se nitidamente que o enunciador do texto tem sua criatividade tolhida: é impossível – e ilegal – que os fatos sejam expostos de forma diferente daquela apresentada pelas partes, sob pena de se alterarem os próprios fatos. Além disso, os textos das partes são o material de que o enunciador dispõe para formar sua convicção e nada mais pode ser acrescentado a não ser o que já foi apresentado pelas partes. Dessa forma, percebe-se que essa parte do texto é profundamente influenciada pelo texto do outro. Não é um texto puro, mas sim um intertexto.

A fundamentação apresenta a lei pertinente ao caso. Como o enunciador deve-se cingir obrigatoriamente à lei e às suas interpretações apresentadas pelos grandes mestres, chegando a citá-las textualmente, a influência de outros textos também é presente e, com eles, aparece a intertextualidade. A subjetividade do enunciador pode começar a aparecer, surgindo um misto entre o texto próprio e o texto do outro, até chegar à conclusão.

Na fundamentação, há alusões a páginas do processo, como acontece também no relatório. Porém, onde antes as alusões tinham a função de fornecer material real para estabelecer o fato, agora sua função é fornecer a prova para a convicção do enunciador. Costuma-se citar documentos juntados ao processo, declarações das partes e de testemunhas, textos dos advogados das partes e, finalmente, grandes juristas. Outros fatos também podem ser acrescentados com o escopo de detalhar o caso apresentado genericamente no relatório, para que não restem dúvidas a respeito da decisão proferida.

Percebe-se, desse modo, que a fundamentação vai sendo construída num crescendo lógico: inicia-se com referências aos fatos concretos; depois passa a depoimentos de testemunhas e provas concretas; em seguida apresenta a legislação pertinente ao caso; posteriormente refere-se a interpretações jurídicas dos grandes mestres; e, no entremeio, apresenta o posicionamento particular do enunciador, antecipando a decisão final no decorrer da fundamentação.

A decisão é a parte da sentença em que logicamente o texto desemboca, depois do confronto entre real e ideal, ou seja, entre o que de fato aconteceu como desvio em relação ao que é prescrito como regra de convivência social. O texto é simples e apresenta tão-somente a improcedência da ação, juntamente com a condenação da parte vencida. É uma parte meramente formal, e, portanto, não existe sujeito, mas apenas o preenchimento de uma fórmula semelhante a todas as sentenças. É o assujeitamento encontrado em sua essência.

4. EXPEDIENTES ARGUMENTATIVOS

Por ser o trecho do texto que expõe os fatos conforme apresentados pelas partes, o relatório tem estrutura que oscila entre a narração e a descrição, por estar relatando exatamente o que ocorreu, ou seja, aquilo que é significativo para o mundo jurídico e que merece análise. Platão & Fiorin (1990:289) discorrem sobre a narração da seguinte forma:

Texto narrativo é aquele que relata as mudanças progressivas de estado que vão ocorrendo com as pessoas e as coisas através do tempo. Nesse tipo de texto, os episódios e os relatos estão organizados numa disposição tal que entre eles existe sempre uma relação de anterioridade ou de posterioridade.

Havendo alteração de estado pode-se falar em dinamicidade, característica essencial das narrações em geral. É o modo de se evidenciar, no caso em tela, a ocorrência de um dano, ou seja, que algo teve uma alteração no tempo, criando uma situação anteriormente inexistente. A narração aparece quando se fixa na alteração de estado dos cabelos da autora: eram longos e se quebraram após a aplicação do produto.

A descrição é o tipo de discurso que apresenta uma “fotografia” de um determinado objeto. Falar em “fotografia” significa, em essência, abordar um momento estático no tempo, em que não há progressão. Se não há progressão, então, o estado de coisas retratado não se altera no intervalo de tempo ao qual se refere e, portanto, trata-se de um aspecto durativo e perfectivo, que é característico da estatividade. Ignácio (1984:68) assim se manifesta sobre os textos descritivos:

Pode-se conceituar a descrição como um enunciado lingüístico que nos transmite uma seqüência de impressões sensoriais relativa ao objeto referente.

Diferentemente do que ocorre na narração, na descrição os verbos são estativos, sem mostrar progressão no tempo ou alteração de estado. Assim, o texto vai oscilando entre narração e descrição até que se torne clara para o leitor a situação fática de que trata a causa. Nesse ponto interessam os fatos ou a situação em si, não havendo qualquer menção ao direito.

No trecho referente às alegações da autora os verbos têm, em sua maioria, sujeito agente (adquiriu; aplicou; contactou, orientou, procurasse; convidar; participarem; foram (ir); frustrando; expondo; causando; pede; ressarcir), o que torna as frases todas dinâmicas, característica essencial da narração, como se viu.

Quanto às alegações da ré, há uma oscilação maior entre narração e descrição, ou seja, entre dinamicidade e estatividade. O início é narrativo, conforme atestam as formas verbais (foi citada; contestou; apresentou; alegou; trouxe). A partir de então, o verbo “ser” aparece em quase todos os outros enunciados, caracterizando a descrição do produto e da sua correta aplicação.

Além disso, importante é anotar o aspecto verbal: em todos os verbos dinâmicos, o aspecto é pontual e perfectivo, enquanto nos verbos estativos, o aspecto é durativo e imperfectivo.

Quanto à fundamentação, parte da sentença que realmente contém a argumentação, percebe-se uma organização específica do texto, que tem o objetivo de não só apreciar a questão jurídica submetida à análise, mas também de apresentar a indignação gerada no enunciador quanto a uma questão ético-profissional. Esse objetivo subjacente aparece nas entrelinhas do texto, mas não deverão escapar à análise, visto que a organização sintático-semântica é que conduz ao efeito de sentido desejado consciente ou inconscientemente.

O primeiro parágrafo da fundamentação (linhas 45-48) é dinâmico, como todo o relatório, visto que narra acontecimentos processuais, através dos quais se afasta qualquer motivo que inviabilizaria o curso da ação até o final. Percebe-se que não há propriamente uma quebra no curso do discurso como se poderia imaginar após a interrupção abrupta de um aspecto formal obrigatório. O enunciado “É o relatório. Fundamento e decido.” aparentemente quebra o ritmo do texto. Apenas aparentemente, pois o tom continua o mesmo e vai mudando com o discorrer.

O segundo parágrafo (linhas 49 – 90) se inicia com verbos dinâmicos, mas logo após esse caráter se dissipa com a apresentação do texto da embalagem do produto. Aliás, é interessante notar como o desenrolar da sentença baseia-se mais em textos que em direito propriamente. Melhor dizendo: o direito à indenização é inconteste, mas a responsabilidade pelo dano deve ser comprovada. E essa responsabilidade vai se comprovar pela negligência da autora: se o texto da embalagem era claro e o procedimento indicado não foi observado pela aplicadora, então a ré não tem responsabilidade pelos danos causados. O texto da sentença cinge-se a analisar o defeito da fabricação do produto ou a comprovação da culpa que autorizariam a indenização.

Assim, insere-se nesse segundo parágrafo o texto parcial contido na embalagem do produto. A falha nas instruções da embalagem poderia ensejar a obrigatoriedade da reparação do dano, conforme preceitua o Código de Defesa do Consumidor, não citado textualmente na sentença, mas invocado enquanto instituto processual na linha 163. Para reforçar nossa argumentação, transcreve-se adiante o artigo 12 do referido Código:

Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos de correntes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos. (grifos nossos)

Cabe ao juiz analisar se a informação veiculada na embalagem é “insuficiente ou inadequada”, visto que esses são conceitos abstratos e que merecem interpretação. Logo antes de apresentar o texto (linha 54), o juiz já mostra sua intenção com o enunciado: “A embalagem do produto consta de fl. 95 a qual enfatiza:”. O uso do verbo enfatizar já nos encaminha à sua opinião. Conforme o Dicionário Gramatical de Verbos, este é um verbo que se constrói apenas com sujeito agente, característica que obviamente não se pode atribuir ao actante 1 (embalagem). Há, portanto, um deslocamento do sentido primitivo do verbo, que passa a ter uma formação com causativo, indicando que a embalagem destaca/dá relevo especial à forma de utilização do produto. Se a embalagem dá conta disso, afasta-se a ineficiência ou inadequação da informação prestada e, portanto, a indenização não é devida. Entretanto, a argumentação deve prosseguir, para mostrar o efetivo convencimento do enunciador do texto a respeito da demanda a ele submetida.

Após o texto da embalagem, são apresentados os textos de laudos de Institutos renomados. A introdução desses textos também não dá margem a dúvidas quanto ao convencimento: “Os documentos de fls. 66/94 demonstram que referido produto fora submetido a inúmeros testes”. O texto fica mais subjetivo com a inclusão do adjetivo inúmeros, que significa “que não se pode contar; infinito”, conforme o Aurélio. Esse não é o sentido “verdadeiro”, pois, eles aparecem em seguida enumerados – são cinco no total. O objetivo é mostrar ao leitor que a empresa-ré não colocou no mercado produto que pudesse oferecer riscos ao consumidor.

Na estrutura argumentativa do texto – deixando um pouco de lado a estrutura sintático-semântica, e partindo para a análise retórica da construção do efeito de sentido – percebe-se que os laudos funcionam como argumentos de autoridade. São entidades idôneas apresentando seus pareceres técnicos a respeito do produto e que, portanto, não podem ser desprezados. Perelman & Tyteca (1999) referem-se ao argumento de autoridade de forma pejorativa[1], insinuando que qualquer autoridade pode ser contradita. Entretanto, não é isso o que vai à cabeça dos enunciatários quando lêem um texto, e o argumento cumpre seu objetivo. É importante ressaltar que esse argumento não é a única prova, mas vem completar uma rica argumentação, como indicam os mesmos autores.

No mesmo parágrafo ainda, menciona-se o número de registro da empresa no Ministério da Saúde, de forma a montar a imagem da empresa como sendo idônea e ilibada e, portadora de tais características, incapaz de lesar o direito de qualquer consumidor.

O parágrafo seguinte (linha 91 – 97) é mais curto, porém mais rico para se perceber a inserção da opinião do enunciador no texto que tem por objetivo primordial a imparcialidade. “A embalagem do produto é bem transparente”: o advérbio “bem” modifica o adjetivo enfatizando-lhe seu significado de clareza. A explicação que segue vem entre aspas, mas não se sabe de onde foi retirada. Deduz-se que está no próprio processo, por não revestir-se da tecnicidade própria de um livro ou dicionário (“mero curioso”). Ao tomar para si as palavras do outro, endossa sua opinião e se compromete (no sentido de “dar como garantia; empenhar”, cf. Aurélio).

A seguir o comprometimento se mostra ainda mais evidente ao atribuir aos cabelos a característica de ser “uma das partes mais interessantes do corpo feminino” (linha 95/96). Interessante é aquilo “que prende a atenção, a curiosidade, ou cativa o espírito” (Aurélio). Aqui o enunciador se entrega. Deixa escapar uma característica pessoal através da simples utilização de um adjetivo. Os adjetivos são ardilosos...

As exclamações também o são, como a do enunciado seguinte. A função fonológica de marcar a entoação passa a influenciar a semântica do discurso. Apesar de tratar-se aqui apenas do discurso escrito percebe-se que, não obstante, este tem seus modos de deixar a emoção transparecer. Não apenas a emoção, mas também um valor: como a nossa sociedade valoriza os cabelos na figura feminina – o que não ocorre no Afeganistão, por exemplo, onde as mulheres não podem deixá-lo à mostra – todo o cuidado com eles é pouco! E, o cuidado com um bem particular não deve ser atribuído a um terceiro mas ao próprio possuidor desse bem. Abreu (2000:75) assim se pronuncia a respeito dos valores: “Aquele que quer persuadir deve saber previamente quais são os verdadeiros valores do seu interlocutor ou do grupo que constitui o seu auditório.

Na seqüência (linhas 98 – 116), o foco se desloca para a ação da mãe, aplicadora do produto. Inicia-se com a menção do documento que explica o procedimento de execução de uma permanente e depois retorna-se aos fatos, às peculiaridades dos acontecimentos ou seja, à dinamicidade. É interessante notar as palavras utilizadas no depoimento da mãe. Certamente num depoimento oral essas não foram exatamente as palavras por ela utilizadas. Este aspecto merece uma digressão. O juiz é que toma o depoimento, ouve a testemunha e dita ao escrevente o que deve ser colocado no papel, e que, posteriormente, servirá para consulta das partes, e mesmo para corroborar o posicionamento do próprio juiz. Nessa passagem pode haver alguma diferença, ou seja, o que está escrito já passou por uma interpretação o que torna o texto impuro e, portanto, passível de ter um sentido diferente daquele que está posto. Esse é um problema do judiciário, que já vem sendo estudado por outros lingüistas, mas que certamente ainda precisa de atenção.

Dando continuidade à dinamicidade, o trecho seguinte (linhas 117 – 127) apresenta o depoimento de outra cabeleireira. Esse é outro argumento de autoridade, assim como o depoimento seguinte (linhas 128 – 143). Como já mencionado anteriormente, isolados, esses argumentos perdem sua validade, pois podem ser contrariados, mas em conjunto e em seqüência, têm sua força restabelecida e são capazes de colaborar na argumentação.

Após a apresentação desses argumentos, o enunciador passa a analisar a conduta da aplicadora que, conforme seu ponto de vista, foi a verdadeira responsável pelos danos causados, já que a responsabilidade não deve ser atribuída à ré. Nesse trecho (linhas 144 – 154) é interessante notar a alternância entre dinamicidade e estatividade.

Foi dito anteriormente que a dinamicidade favorece a narração e a estatividade, a descrição. Aqui não é o caso de alternar-se entre essas duas categorias, mas principalmente de favorecer a argumentação. Vejamos:

Obedeceu: dinâmico – mostra o comprometimento do actante 1 (autora);

Está demonstrado: estativo – refere-se à prova;

Atua: dinâmico – o actante 1 (Cecília) é agente e, portanto, responsável pelas conseqüências de sua atuação;

Indica: estativo – o causativo conduz a uma conclusão;

Houve negligência: estativo – apesar da idéia de dinamicidade que permeia o enunciado (ao aplicar o produto a mãe agiu com negligência), a estrutura escolhida para expor o fato é estativa.

Relembro: dinâmico – pela primeira vez no texto (com exceção da expressão introdutória da fundamentação) aparece um verbo em primeira pessoa, que traz a ilusão de que o enunciador toma alguma atitude. Na verdade, apenas repete um trecho do texto que já foi transcrito no início, como intuito de reforçar a argumentação, reativando as idéias do leitor.

Anotou: dinâmico – traz ao texto o reforço de uma autoridade já mencionada.

Era inadmissível: estativo – é a conclusão do parágrafo, com a conclusão da argumentação.

Esse parágrafo pode ser recortado e tido como um resumo da sentença toda. Contém, na verdade, todos os elementos da sentença, apesar de estarem em espaço reduzido. Aqui é o lugar da retomada dos argumentos já apresentados para que se possa prosseguir caracterizando a conduta da aplicadora. Todos os fatos atinentes à ré já foram analisados. Agora segue-se a interpretação dos atos/fatos imputados à autora.

O próximo parágrafo (linhas 155 – 162) é explicitamente marcado por negações. Dos enunciados que o compõem apenas um é afirmativo, e este se refere a argumentos da ré. Pode-se perceber uma estrutura em espelho: os dois primeiros enunciados negativos imputam à autora, ou melhor, à aplicadora do produto, condutas que deveria ter observado e não o fez; o terceiro, afirmativo, traz informações sobre a embalagem do produto; os dois últimos apresentam atitudes que a ré estava dispensada de tomar. A aplicadora não fez o que deveria ter feito, e a ré não fez o que não precisaria ter feito. Interessante notar também a questão da dinamicidade – existente nos dois primeiros enunciados – e da estatividade – presente nos dois últimos. Assim, percebe-se que a ré permaneceu estática, enquanto a aplicadora, por culpa sua, prejudicou a autora por negligência, ou seja, por deixar de tomar atitude que a si seria cabível.

Até este ponto não apareceram inversões na ordem padrão da língua portuguesa. Todos os enunciados até aqui têm a estrutura sujeito – verbo – objeto. O enunciado seguinte (linha 163 e ss.) já se inicia com uma inversão entre o predicativo e o sujeito (“Estranho é o fato…”), talvez pela extensão deste último, mas principalmente como um artifício de topicalização. Incute-se no enunciatário com mais força o termo que aparece primeiro. Assim, o objetivo é gravar a estranheza do enunciador na mente do enunciatário, o que é feito através do recurso sintático da inversão da ordem direta do enunciado, ou seja, da topicalização. Os enunciados seguintes reforçam a mesma idéia: o questionamento da ré, as cogitações a respeito da ocorrência da irritação facial da autora, a despreocupação em procurar assistência médica especializada.

O parágrafo seguinte (linhas 173 – 183) é inteiramente dedicado à ré, ou melhor, a justificar as atitudes da ré, para demonstrar a “seriedade da empresa”. Os enunciados são na maioria dinâmicos (deslocou-se; convidando-as; agiu; deixou), visto que narram o procedimento da ré assim que tomou conhecimento do fato. O último enunciado é estativo e, assim como antes, tem o objetivo de, concluindo, apresentar uma interpretação das atitudes narradas.

O último parágrafo da fundamentação (linhas 184 – 186) é curto e é o único responsável pela conclusão. Como demonstrado, houve conclusões parciais. Mas este parágrafo apresenta explicitamente, através da conjunção portanto, a conclusão do texto da fundamentação, e até da sentença toda, pois, como dito, a decisão é uma parte meramente formal do texto da sentença. É outro conjunto marcado pelas negações, a primeira delas – “A autora não tem razão alguma” – marcada pelo advérbio de negação por excelência e reforçada pelo pronome indefinido. Seria ainda mais forte se o pronome fosse por natureza negativo (nenhuma), o que é permitido na língua portuguesa, apesar de causar reflexões filosóficas (duas negações equivalem a uma afirmação), o que o enunciador quis afastar, certamente. As outras duas negações são simples, mas estando as três pospostas, fica na mente do enunciatário: não, não e não!

Além disso, o ponto de interrogação entre parênteses ao final merece destaque. A sentença toda cingiu-se a analisar o dever ou não de a ré indenizar a autora pelos danos causados, ou seja, em nenhum momento questionou-se a existência ou não dos danos morais que a autora alega ter sofrido ao suportar as pilhérias dos amigos. Aqui se questiona se esse dano realmente existiu, primeiro pelo adjetivo “eventuais” associado ao substantivo transtorno. Eventual é aquilo que “depende de acontecimento incerto” (Aurélio). Depois pelo nome amigos, colocado entre aspas, e pelo ponto de interrogação, que coloca em dúvida se aqueles que a fizeram sofrer tamanha dor moral podem realmente ser chamados amigos. São recursos gráficos que passam a ter um significado importante no texto.

Ao final surge a decisão que preenche a fórmula padrão: determinar a procedência ou improcedência da ação, com a cumulação da sanção à parte vencida. É o grande assujeitamento do enunciador, que está sempre lutando entre um instintivo querer mostrar sua posição e um racional desejo de ser imparcial.

5. CONCLUSÕES

Uma das características responsáveis por levar os enunciatários a acreditarem decisão do juiz é a imparcialidade. Entretanto, essa imparcialidade é apenas aparente. Todo e qualquer enunciador está sempre comprometido com transmitir uma mensagem subjacente ao texto superficial. Assim, superficialmente o texto pode ser imparcial e isento, mas profundamente o texto transmite sim a ideologia do enunciador, influenciada pela sua formação discursiva.

Quando o enunciador se permite utilizar adjetivos ou alterar o sentido original de uma palavra para utilizá-la a seu serviço está, na verdade, deixando-se inserir no texto. Apresenta-se ilusoriamente como imparcial quando a imparcialidade é impossível. A análise mais atenta da forma como as palavras são utilizadas é que nos conduz a detectar suas reais intenções.

A partir da análise de um texto jurídico como o apresentado, bem como de alguns outros que já compõem o corpus de nossa pesquisa, pode-se perceber que, apesar de seguirem uma forma obrigatória, os enunciadores têm, principalmente dentro da fundamentação, liberdade de organização do seu texto. Fazem-no, entretanto, de maneira semelhante. Vão passando gradativamente dos fatos para a análise, o que fica evidenciado pelo caráter dinâmico/estativo dos verbos.

Depois que os fatos estão todos apresentados, e que se inicia a apresentação da análise em si, as características aspectuais dos verbos que compõem o discurso deixam de ser perfectivas e pontuais e passam a ser imperfectivas e durativas. Para que fique ainda mais claro: a dinamicidade impera no início do texto e vai dando lugar para o surgimento da estatividade.

A argumentação está presente no texto todo, obviamente, mas o espaço onde os argumentos passam a evidenciar-se, a realmente querer convencer o interlocutor, coincide com aquele em que a estatividade passa a tomar corpo. Assim, pode-se, em princípio, fazer uma associação entre argumentação e estatividade em textos jurídicos.

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[1] “Seria, portanto, um pseudo-argumento destinado a camuflar a irracionalidade de nossas crenças, fazendo que sejam sustentadas pela autoridade de pessoas eminentes, pelo consentimento de todos ou do maior número”. (p. 348)