VOCABULÁRIO DE COZINHA DO SÉCULO XVI NA
ORIGEM DA LÍNGUA PORTUGUESA EM CONFRONTO COM O LIVRO DE COZINHA DA INFANTA D. MARIACelina Márcia de Souza Abbade (UFBA/UNEB)
Pretende-se fazer um levantamento lexical dos vocábulos relativos à cozinha registrados em um dos primeiros trabalhos acerca da origem da língua portuguesa, onde verificar-se-á até que ponto estão corretas as "origens" propostas por Duarte Nunes Leão para algumas palavras. Á partir desse levantamento, espera-se fazer ainda uma comparação histórica das formas lexicais encontradas nesse texto. Nessa perspectiva, far-se-á o confronto com formas documentadas no Livro de Cozinha da Infanta D. Maria.
1. A ORIGEM DA LÍNGUA PORTUGUESA
DE DUARTE NUNES DO LEÃO
Escritor de várias obras, dentre elas a Origem da Língua Portuguesa, junto à Ortographia da Língua Portuguesa, Duarte Nunes Leão compõe material deveras valioso para aqueles que se interessam pelo estudo do latim e das mudanças que nele ocorreram ao longo do tempo e dos contatos lingüísticos, dando origem às línguas românicas.
As obras de Duarte Nunes do Leão, publicadas em Lisboa, uma em 1606 (Origem da Língua Portuguesa) e a outra em 1576 (Ortographia da Língua Portuguesa), foram reeditadas em 1784, unidas ambas as obras, mantendo-se a mesma originalidade da primeira edição e respeitando-se não só a ortografia, como a mesma pontuação, para que os estudiosos da língua possam recorrer a esta segunda edição, tendo a certeza de que estão buscando a antiga obra desse desembargador e sábio português que tanto contribuiu para o estudo histórico da língua portuguesa.
A Origem da Língua Portuguesa, mostra a língua com um caráter dinâmico, como uma realidade que está em constante mutação. Traz assim a importância do estudo das mudanças lingüísticas, mediante, principalmente, o contato lingüístico. A língua de um povo, através das variações, busca sempre equilibrar-se mediante um desequilíbrio constante, demonstrado através da busca da individualidade lingüística, remontando às suas origens históricas, culturais e etimológicas, buscando sempre, através das variedades, explicar a individualidade. Segundo Maria Leonor Buescu, "a obra de Duarte Nunes do Leão é, pois, um testemunho documental e elucidativo da transição, talvez dramática, do espírito do Renascimento para o espírito barroco, enredado numa nova angústia e numa nova maneira de estar no mundo". Assim, a visão sincrônica e presencialista do Renascimento sucede à visão diacrônica do Barroco.
2. O LIVRO DE COZINHA DA INFANTA D. MARIA
O Livro de Cozinha da Infanta D. Maria é o primeiro livro manuscrito de cozinha portuguesa, conhecido até então. O manuscrito que teria sido levado para a Itália pela infanta faz parte de um grupo de cinco tomos de origem farnesiana e encontra-se guardado na Biblioteca de Nápoles. Consta de setenta e três fólios dos quais quarenta e um foram aproveitados pelos copistas, ficando brancas as folhas sem identificação. Compõem-se de quatro cadernos com sessenta e sete receitas: Caderno dos Manjares de Carne, Caderno dos Manjares de Ovos; Caderno dos Manjares de Leite; Caderno das Cousas de Conservas.
Para o presente estudo, utilizou-se a segunda edição crítica realizada por Giacinto Manupella (MANUPELLA,1967).
3. O LÉXICO DE COZINHA EXISTENTE EM A ORIGEM
DA LÍNGUA PORTUGUESA DE DUARTE NUNES DO LEÃO
Em sua Origem da Língua Portuguesa, Duarte N. Leão apresenta listas de vocábulos portugueses de origem grega, árabe, francesa, italiana, alemã, hebraica e síria, goda e autóctone. Oferece ainda uma lista de arcaísmos, seguido da respectiva correspondência moderna, bem como de plebeísmos.
Vale lembrar que Duarte N. Leão tem posição divergente de outros estudiosos com relação aos empréstimos lingüísticos na Península Ibérica. Para ele, diferente de Antônio Nebrija e de João de Barros (estudiosos da Língua Portuguesa), por exemplo, a Península Ibérica, e logo as línguas aí existentes, foi helenizada antes de ser romanizada. Duarte defende a tese de que os povos da Península Ibérica falaram e escreveram grego antes de conhecerem o latim. Com relação aos árabes, para Duarte N. Leão a influência desses povos na Península é considerada exclusivamente no aspecto lexical. Com relação às línguas francesa e italiana, Duarte N. Leão considera a transmissão de conceitos e vocábulos devida ao contato entre os povos, defendendo assim o fato de as línguas evoluírem mediante o contato lingüístico existente entre elas. Duarte N. Leão condiciona sempre os fatores histórico-culturais às mudanças lingüísticas. Com relação ao castelhano, defende a situação de bilinguismo. Com relação às outras línguas, Duarte diz que as importações só ocorreram quando houve a necessidade de se buscarem termos novos.
Enfim, Duarte N. Leão considera a evolução lingüística mediante ao contato lingüístico e assim encontram-se dois conceitos: evolução e corrupção, que se tornam até certo ponto ambíguos ao estudar-se mais detalhadamente a sua conceituação lingüística. Embora admita tantos empréstimos para a língua portuguesa, considerando natural e pertinente esse fato ocorrer com tantas línguas, com relação à influência germânica, Duarte considera corrupção e não empréstimo, o que acaba por contradizer a sua teoria no que diz respeito aos empréstimos.
Apesar da ambigüidade, o fato de Duarte N. Leão admitir empréstimos lingüísticos, é de grande importância na sua conceituação lingüística. Sua obra, embora ambígua, é sem dúvida corajosa aceitando a variação lingüística, considerando-se o pensamento lingüístico europeu da época onde se valorizava a etimologia devido, em parte, a inexistência do comparatismo lingüístico, que só viria a constituir-se no século XIX. A promoção aos empréstimos lingüísticos virá favorecer e estimular a legitimidade dos parentescos lingüísticos que estão bem presentes nas listas vocabulares que fazem parte da Origem.
A seguir, o léxico de cozinha encontrado nessas listas será mostrado para que se faça uma comparação com os vocábulos existentes no Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, que é do mesmo século.
Capítulo VIII - Alguns vocábulos tomados dos latinos que pela corrupção que se deles fez estão obscuros |
ARROZ BAIXELLA CEUADA CRAVO MEXER MOLHO |
Capítulo IX – Dos vocábulos que tomamos dos gregos |
TRAGAR |
Capítulo X – Dos vocábulos que os Portugueses tomarão dos Árabes |
AÇAFRÃO AÇUCAR ALBARRADA ALCACHOFRE ALFINETE ALGUIDAR ARROBA ARRATEL AZEITE AZEITONA BACIO BERRINGELLA BOLO CUSCUZ ESPINAFRA FATIA IAUALI ROMÃA |
Capítulo XI – Dos vocábulos que os Portugueses tomarão dos Franceses |
BACIO CALDEIRÃO CANIUETE COLHER COPA ESCOAR ESCUMAR FACA LEIXAR LEITÃO MOSTARDA PASTA PASTEL PRATO POSTA SOPA TALHAR TASSA/TAÇA TOALHA TRINCHAR ou CORTAR VIANDA VINAGRE |
Capítulo XII– Dos vocábulos que tomamos dos Italianos |
FATIA MANJAR PRESUNTO TOALHA VIANDA |
Capítulo XIII – Dos vocábulos que temos tomado dos Hebreos e Syrios |
ABOBORA ADUBO/ADUBAR ALETRIA AZEDO AZEITE BACIO BOLO CALDO CARAMELO CEUADA COGUMELO FATEIXA FRUTO GARFO GEMA DE OUO GRAL JANTAR LAPARO MANTEIGA MOLHO POSTA DE CARNE OU COUSA PRATO ROMAÃ TACHO TALHA TOUCINHO VACCA |
Nos capítulos seguintes, Capítulo XIIII – Dos vocábulos tomados dos Alemães, Capítulo XV - Dos vocábulos que ficarão dos Godos, Capítulo XVI - Dos vocábulos que os Portugueses tem seus nativos que não tomarão de outras gentes que nós saibamos, Capítulo XVII – De alguns vocábulos antigos Portugueses, que se achão em escripturas e sua interpretação e Capítulo XVIII – De alguns vocábulos que vsão os plebeios, ou idiotas que os homens polidas não deuem usar, não se encontrou nenhuma lexia que se referisse ao léxico de cozinha.
4. O VOCABULÁRIO DE COZINHA
DA ORIGEM DA LÍNGUA PORTUGUESA,
EM CONFRONTRO COM AS FORMAS DOCUMENTADAS
NO LIVRO DE COZINHA DA INFANTA D. MARIA
Das setenta e nove formas lexicais referentes ao léxico de cozinha encontrados na Origem da Língua Portuguesa, doze se repetem, logo, tem-se um total de sessenta e seis lexias relativas à culinária no livro de Duarte Nunes Leão. Dessas sessenta e sete lexias, trinta e nove são encontradas também no Livro de Cozinha da Infanta D. Maria. Além dessas formas, encontram-se ainda duas outras semelhantes ou derivadas. Outros vinte e seis vocábulos existem apenas na Origem.
Das formas encontradas nos dois textos, tem-se:
ABOBORA, AÇAFRÃO, AÇUCAR, ADUBO/ADUBAR, ALBARRADA, ALETRIA, ALFINETE, ALGUIDAR, ARRATEL, ARROBA, ARROZ, AZEDO, AZEITE, BACIO, BOLO, CALDO, CANIUETE, CARAMELO, CEUADA, COLHER, CRAVO, FATIA OU PEDAÇO, FRUTO, GEMA DE OUO, GRAL, LAPARO, LEIXAR, MANTEIGA, MANJAR, MEXER, PASTEL, POSTA DE CARNE OU COUSA, PRATO, SOPA, TACHO, TOUCINHO, TOALHA, VACCA, VINAGRE.
As formas semelhantes ou derivadas são:
ESCUMAR, TALHAR
E, as formas lexicais referentes à culinária, encontradas apenas na Origem de Duarte Nunes Leão são:
ALCACHOFRE, AZEITONA, BAIXELLA, BERRINGELLA, CALDEIRÃO, COGUMELO, COPA, CUSCUZ, ESCOAR, ESPINAFRA, FACA, FATEIXA, GARFO, IAUALI, JANTAR, LEITÃO, MOLHO, MOSTARDA, PASTA, PRESUNTO, TALHA, TRAGAR, TASSA/TAÇA, TRINCHAR ou CORTAR, ROMÃA, VIANDA.
A classificação lexical foi feita com base na teoria do campo lexical, proposta por Eugenio Coseriu, onde o campo lexical é determinado dentro de estruturas lexemáticas no qual os lexemas constituem um sistema de oposições. Dividiram-se as sessenta e seis palavras encontradas em dez macro-campos lexicais, conforme se pode ver no quadro abaixo:
GENÉRICOS |
adubo/adubar, fruto, vianda |
FRUTAS, LEGUMES E HORTALIÇAS |
Abóbora, azeitona, beringela, cogumelo, espinafre, romã |
INGREDIENTES |
Arroz, cevada, gema de ovo |
SABOR |
Azedo |
UNIDADES DE PESO E MEDIDA |
Arratel, fateixa, fatia ou pedaço, posta de carne ou cousa |
UTENSÍLIOS |
Albarrada, alfinete, alguidar, bacio, baixela, caldeirão, canivete, colher, copa, faca, garfo, gral, prato, tacho, talha, tassa/taça, toalha |
ALIMENTOS PREPARADOS |
Aletria, bolo, caldo, caramelo, cuscuz, manjar, molho, pasta, pastel, presunto, sopa, toucinho |
CONDIMENTOS |
Açafrão, açúcar, alcachofra, azeite, cravo, manteiga, mostarda, vinagre |
CARNES |
Javali, láparo, leitão, vaca |
AÇÕES |
Escumar, escoar, jantar, leixar, mexer, talhar, tragar, trinchar ou cortar |
5. AS "ORIGENS" DAS FORMAS ENCONTRADAS
Com relação às origens das formas documentadas por Duarte Nunes Leão, percebe-se que a algumas formas é atribuída uma origem dupla ou até mesmo tripla, como é o caso de bacio. Após análise feita a alguns dicionários da Língua Portuguesa como os de J. Corominas (Corominas,1991), José P. Machado (Machado, 1967), Antenor Nascentes (Nascentes, 1932) e A. G. Cunha (Cunha, 1997), percebe-se que, nem sempre, as origens propostas por Duarte coincidem com os outros estudos realizados. Seu trabalho, entretanto, deixou grandes contribuições para todos os estudiosos da nossa língua.
A seguir, mostrar-se-á um quadro com a origem das lexias propostas por Duarte Nunes Leão, em confronto com a origem etimológica comprovada atualmente.
LEXIA |
DUARTE NUNES LEÃO |
ETIMOLOGIA COMPROVADA |
ARROZ |
Obscura |
Árabe |
BAIXELLA |
Obscura |
Catalã |
CEUADA |
Obscura / hebréia e síria |
Latina |
CRAVO |
Obscura |
Obscura |
MEXER |
Obscura |
Latina |
MOLHO |
Obscura / hebréia e síria |
Latina |
TRAGAR |
Grega |
Obscura |
AÇAFRÀO |
Árabe |
Árabe |
AÇUCAR |
Árabe |
Árabe<sânscrito |
ALBARRADA |
Árabe |
Árabe |
ALCACHOFRE |
Árabe |
Árabe |
ALFINETE |
Árabe |
Árabe |
ALGUIDAR |
Árabe |
Árabe |
ARROBA |
Árabe |
Árabe |
ARRATEL |
Árabe |
Árabe |
AZEITE |
Árabe/ hebréia e síria |
Árabe |
AZEITONA |
Árabe |
Árabe |
BACIO |
Árabe/ francesa/ hebréia e síria |
Latina |
BERRINGELA |
Árabe |
Árabe, talvez castelhano |
BOLO |
Árabe / hebréia e síria |
Latina, derivado de bola |
CUZCUZ |
Árabe |
Árabe |
ESPINAFRA |
Árabe |
Árabe |
FATIA |
Árabe / italiana |
Árabe |
IAUALI |
Árabe |
Árabe |
ROMÃA |
Árabe/ hebréia e síria |
Latina |
CALDEIRÀO |
Francesa |
Latina |
CANIUETE |
Francesa |
Provençal<germânico |
COLHER |
Francesa |
Francesa<latim |
COPA |
Francesa |
Latina |
ESCOAR |
Francesa |
Latina |
ESCUMAR |
Francesa |
Latina (medieval) |
FACA |
Francesa |
Obscura |
LEIXAR |
Francesa |
Latina |
LEITÃO |
Francesa |
Latina, derivada de leite |
MOSTARDA |
Francesa |
Francesa |
PASTA |
Francesa |
Latina<grego |
PASTEL |
Francesa |
Francesa |
PRATO |
Francesa / hebréia e síria |
Francesa < latim vulgar <grego |
SOPA |
Francesa |
Francesa |
TALHAR |
Francesa |
Latina |
TASSA/TAÇA |
Francesa |
Árabe |
TOALHA |
Francesa / italiana |
Provençal < gótico ou frâncico |
TRINCHAR OU CORTAR |
Francesa |
Francesa |
VIANDA |
Francesa / italiana |
Francesa |
VINAGRE |
Francesa |
Catalão, deriv. Latim vinum acre |
MANJAR |
Italiana |
Francesa |
PRESUNTO |
Italiana |
Latina |
ABOBORA |
Hebréia e síria |
Latina |
ADUBO/ADUBAR |
Hebréia e síria |
Germânica |
ALETRIA |
Hebréia e síria |
Árabe |
AZEDO |
Hebréia e síria |
Latina |
CALDO |
Hebréia e síria |
Latina |
CARAMELO |
Hebréia e síria |
Latina |
COGUMELO |
Hebréia e síria |
Latina |
FATEIXA |
Hebréia e síria |
Árabe |
FRUTO |
Hebréia e síria |
Latina |
GARFO |
Hebréia e síria |
Latina, grego |
GEMA DE OUO |
Hebréia e síria |
Latina |
GRAL |
Hebréia e síria |
Francesa < latim medieval |
JANTAR |
Hebréia e síria |
Latina |
LAPARO |
Hebréia e síria |
Obscura |
MANTEIGA |
Hebréia e síria |
Pré-românica |
POSTA DE CARNE OU COUSA |
Hebréia e síria |
Castelhana |
TACHO |
Hebréia e síria |
Obscura, talvez árabe |
TALHA |
Hebréia e síria |
Latina |
TOUCINHO |
Hebréia e síria |
Latina < céltico |
VACCA |
Hebréia e síria |
Latina |
Dessas sessenta e sete formas lexicais encontradas, conclui-se, após a análise realizada que vinte e duas etimologias propostas por Duarte coincidem com a etimologia comprovada atualmente, são as que estão em negrito no quadro acima. Observa-se que os vocábulos de origem árabe e francesa são os que não deixam dúvidas com relação às suas etimologias. Duarte não atribui a nenhuma lexia encontrada no corpus em questão a origem latina, insistindo em uma origem hebréia e síria para as palavras que são na sua maioria de origem latina. Porém, nem mesmo essas divergências conseguem desmerecer a grandiosidade e o valor da obra de Duarte Nunes Leão.