CONTRIBUIÇÕES E PROBLEMAS NA ELABORAÇÃO DE UM DICIONÁRIO BILÍNGÜE INGLÊS/PORTUGUÊS
Branca Telles Ribeiro (UFRJ-Harvard)
Peonia Viana Guedes (UERJ)
The dictionary is primarily a record of how the words of a language are used by those who speak and write it as their mother tongue.
(Webster's College Dictionary, 1988)
I - Organização, elaboração e edição de um dicionário bilíngüe
Em agosto de 1978, o Prof. Antônio Houaiss reuniu uma equipe de lexicógrafos para propor a elaboração de um dicionário bilíngüe inglês/português, de cerca de 1.500 páginas, sob sua orientação, a ser publicado pela Editora Record, com o título Dicionário Inglês-Português. Esta editora, na época, já detinha os direitos autorais do Portuguese-English Dictionary, de James Taylor, e desejava colocar no mercado uma nova edição do mesmo, acompanhada de um volume complementar, que oferecesse a contrapartida português-inglês. Nesta reunião o Prof. Houaiss propôs que Ismael Cardim supervisionasse e fosse o co-editor do novo volume, além de um dos seus redatores. Para complementar a equipe, convidou as professoras de língua e literatura inglesa e de tradução Peonia Viana Guedes e Branca Telles Ribeiro, o escritor e tradutor Carlos Sussekind, e o tradutor José E. A. do Prado. A equipe teria o prazo de dezoito meses para a elaboração e redação do dicionário, trabalhando três lexicógrafos em tempo integral e dois em tempo parcial, na sede da editora Record. A redação dos verbetes relativos aos prefixos e sufixos a serem incluídos ficaria sob a responsabilidade do próprio Prof. Houaiss que, toda semana, faria a revisão dos verbetes redigidos bem como reuniões de avaliação e planejamento com a equipe.
As reuniões iniciais do grupo estabeleceram os critérios para o trabalho, que incluiam considerações sobre o acervo de referência em língua inglesa e em língua portuguesa. Ficou decidido que, em língua inglesa, seriam utilizados basicamente os dicionários monolíngües Webster's New International Dictionary (da vertente norte-americana) e o Concise Oxford Dictionary (da vertente britânica), com acesso também, para consulta, ao Oxford English Dictionary, em sua versão integral em volume condensado. Como dicionários bilíngües, seriam utizados os dicionários elaborados pelos irmãos Vallandro, Dicionário Inglês-Português (um volume), o Novo Michaelis Dicionário Ilustrado (dois volumes), a Novo Dicionário Barsa (dois volumes, parte integrante da Enciclopédia Britânica). Além desse material, seriam consultados dicionários monolíngües e bilíngües de expressões idiomáticas, gíria e termos técnicos, bem como glossários técnicos especializados em áreas de conhecimento recente, ainda não incorporadas aos dicionários existentes (como, por exemplo, termos de informática, bioengenharia, genética, psicanálise, entre outros). Em língua portuguesa, a fonte principal de referência seria o recém-lançado Novo Dicionário da Língua Portuguesa, do Prof. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. Em casos de dúvida quanto às palavras cognatas seria utilizado o Guia Prático de Tradução Inglesa, de Agenor Soares dos Santos, que estabelecia uma comparação semântica e estilística entre os cognatos de sentido diferente na língua inglesa e na portuguesa.
Outra consideração de relevância foi a organização dos verbetes, quanto a sua forma ortográfica de entrada, o registro de sua transcrição fonológica, sua categoria gramatical, seguida da tradução correspondente nos seus diversos campos semânticos (vinculados especificamente à referência) e pragmáticos (derivados especificamente do seu uso corrente). Ficou decidido que a entrada de cada verbete seria feita por seu registro ortográfico britânico, seguido, quando variante, de sua forma ortográfica norte-americana. A transcrição fonológica foi abolida, pelo entendimento de que os dicionários monolíngües constituem fonte de referência privilegiada para esse tipo de consulta. Quanto à categoria gramatical, foram adotadas basicamente as normas padrão dos dicionários monolíngües. Optou-se, também, pela indexação das palavras derivadas, palavras compostas e expressões idiomáticas no corpo do verbete, seguindo a orientação dos dicionários monolíngües para entradas independentes desses termos.
Considerações quanto à indexação de termos técnicos, neologismos, termos coloquiais e de gíria, levaram a equipe a decidir por uma análise de cada caso. Duas questões nortearam as decisões da equipe: 1) a ocorrência desses termos nos dicionários de referência consultados; 2) a ocorrência desses termos exclusivamente em dicionários e/ou glossários especializados. No primeiro caso, todos os termos foram indexados; no segundo, prevaleceu a decisão do supervisor da equipe. O registro da tradução do verbete em seus diversos campos semânticos - literário, jurídico, náutico, botânico, por exemplo - bem como pragmáticos - figurado, coloquial, gíria, vulgar, entre outros - foi objeto de análise da equipe.
Finalmente, a distribuição do trabalho de elaboração do dicionário foi feita pela divisão, entre os membros da equipe, dos verbetes indexados sob cada letra do alfabeto. Desta forma, cada lexicógrafo foi responsável por um conjunto de letras, cuja extensão variou de acordo com o número de verbetes indexados nos dicionários de referência e de consulta. Cabe ressaltar que, no período de elaboração do dicionário em questão, foram utilizadas fichas de 15 cm x 10 cm, datilografadas (sem cópia) em máquinas Olivetti, alfabetadas, revistas pelo lexicógrafo e pelo editor, e guardadas em caixas na sala de trabalho.
A orientação para a organização e elaboração do Dicionário Inglês-Português descrita acima foi cumprida, com exceção do prazo, estabelecido inicialmente para 18 meses e extendido para 21 meses. Os problemas de edição, entretanto, modificaram substancialmente o perfil do dicionário apresentado pela equipe no final do projeto. Previsto e executado para volume único de 1.500 páginas, o mesmo sofreu um corte radical de quase 600 páginas. Dentre as principais modificações, foram suprimidas as formas ortográficas britânicas, e a entrada dos verbetes foi feita exclusivamente pela forma ortográfica do inglês norte-americano. Assim, um verbete que apresentava duas ou quatro formas diferentes de entrada, dependendo de ser palavra simples ou composta, ficou reduzido a uma forma única de entrada. Mais significativamente, no corpo dos verbetes nem todas as exemplificações de uso de determinadas formas foram mantidas, tendo sido reduzida, portanto, a abrangência dos campos semânticos e pragmáticos pretendida originalmente. Na tentativa de redução do volume, vários verbetes foram eliminados na fase de edição, da qual os lexicógrafos não participaram. Os problemas de edição, ligados a questões de execução da obra e das exigências de mercado, fizeram com que o Dicionário Inglês-Português da Editora Record fosse publicado em somente em 1982. Apesar de sua redução, esse dicionário permanece, em suas muitas edições, o mais extenso bilíngüe inglês/português e constitue valiosa fonte de referência para estudiosos e tradutores. Baseado na primeira edição, foi elaborado, por Ismael Cardim, o Mini-Dicionário Inglês-Português da Editora Record.
II - Considerações sobre o inventário de termos novos nos dicionários monolíngües e bilíngües
Quais os pressupostos que servem de embasamento para a inclusão de termos novos, de uso específico ou próprio da gíria no dicionário monolíngüe?
Qualquer inventário lexical - seja ele um acervo, um glossário, um manual de terminologia, ou mesmo um dicionário - terá de proceder em uma delimitação ou recorte dos termos a serem relacionados. Neste sentido, além do vocabulário dito "padrão" da língua falada ou escrita (língua culta), temos também terminologias mais específicas, que traduzem universos sociais e linguísticos próprios. Incorporar esta terminologia mais fugaz, mais efêmera, meio fronteiriça entre a fala padrão e a fala não padrão constitui tarefa de delimitação complexa.
Por exemplo, o Dicionário Random House, Webster College Edition, edição de 2000, acabou de incorporar 300 novas palavras oriundas da gíria norte-americana. Por que 300 e não 450 ou 280? Qual é a origem destas palavras em termos de subculturas ou regionalismos? Por que razão esses 300 termos foram considerados suficientemente relevantes para serem inventariados? Como definiram "gíria"? Os lexicógrafos norte-americanos tiveram de resolver tais questões para estabelecer critérios de natureza sociolinguística.
Frequentemente os critérios para a inclusão de termos novos podem advir de questões triviais -- tais como o número máximo de verbetes ou entradas permitidas no dicionário, que no Random House, orienta-se para uma edição mais concisa, dirigida à população estudantil.
De interesse para a nossa discussão, vejamos algumas das questões linguísticas. Frequentemente o critério de seleção está correlacionado ao índice de frequência do uso da nova forma linguística, assim como a sua distribuição e aceitação em diferentes comunidades de fala. Por exemplo, o Random House inventariou o termo "edge" na acepção de "cutting edge" com a variante "bleeding edge" ou "the edge (thing)" para qualificar produtos ou atividades "de ponta"; o uso deste termo (assim como a queda da forma "cutting" em "cutting edge") ocorre em diversas comunidades de fala nos EUA (filiadas ao universo da mídia, da indumentária, da gastronomia), além da ocorrência do processo linguístico de simplificação, com a redução ou eliminação de formas (neste caso a forma "cutting" é eliminada) - processo hoje corriqueiro na fala apressada do dia a dia.
Assim, a forma "the edge" ou "bleeding edge" advém da gíria. Integrando um dicionário como o Random House, tais formas passam a ter uma aceitação no inventário lexical de língua inglesa. Essa escolha tem consequências sociais. Alguns usuários acreditam que aceitar a gíria e inventariá-la em dicionário reforça (ou endossa) o seu uso, o que pode ter repercussão social no caso, por exemplo, dos jovens negros norte-americanos que vêem no dicionário a forma "bleeding edge" abalizada, logo aceita. Deduzem, portanto, que a sua utilização na fala do dia a dia e em uma entrevista profissional, por exemplo, é algo "convencional". O candidato pode (e frequentemente é) reprovado na entrevista por utilização de fala "inadequada" ou "não padrão". O problema assinalado aqui trata da complexa delimitação entre "gíria" e "fala não padrão". Trata da repercussão social dos inventários lexicais de palavras não abalizadas e incorporadas na "língua padrão" dos dicionários.
Esta questão de problemática social foi respondida pelo lexicógrafo do dicionário da Random House assinalando que cabe ao dicionário inventariar formas linguísticas em uso corrente. Caberá aos jovens desenvolverem no seu processo educativo a competência comunicativa que lhes dirá quando e onde utilizar o termo de maneira adequada. As decisões do lexicógrafo no que tange o que acrescentar ao inventário lexical do dicionário e o quanto acrescentar estão relacionadas a questões de natureza sociolinguística que dizem respeito ao uso destas novas formas que expressam novos fenômenos, novos sentimentos e atitudes, posturas sócio-culturais não convencionais.
Ocorre, portanto, uma análise crítica na delimitação de gíria, linguagem coloquial, linguagem não padrão. Por um lado a gíria é fala informal e expressa uma linguagem não padrão; por outro lado, temos fala informal que não constitui gíria (como, por exemplo, a resposta a pergunta "Will she be here tonight?" "No. she ain't coming."). Os termos ingleses "gadget", "cyberspace", beatnik", "junk food", "wacko", entre outros, originaram-se de gíria e passaram a ser empregados por um número cada vez maior e mais convencional de pessoas. Ou seja, tais formas deixaram de ser de uso restrito de algumas comunidades de fala específicas (por exemplo, no caso de "cyberspace" a forma surge no âmbito dos aficcionados da informática) e passam a circular por várias e múltiplas comunidades de fala. Assim, a trajetória de um termo de gíria está diretamente correlacionada ao seu uso. O quanto um termo como "couch potato" - e atualmente "mouse potato" - foi divulgado, ganhou novos adeptos (circulando na mídia, no meio estudantil, no meio profissional, etc.) - recebendo aceitação além do seu grupo de origem - definirá a sua entrada e permanência no dicionário.
A questão fundamental para definir a entrada de uma palavra no dicionário e de sua qualificação (gíria, coloquial, linguagem técnica) passa pela análise sociolinguística do uso corrente do termo. A inclusão de novas formas nos dicionários norte-americanos ocorre anualmente quando se trata das edições universitárias ("college editions") - o que facilita uma permanente revisão, atualização, adição e corte de palavras. Assim, aquelas formas consideradas mais efêmeras são retiradas do dicionário enquanto outras, em uso mais corrente, são acrescentadas. O dicionário passou a ser redefinido como uma obra de referência que sofre constantes mudanças e atualizações. Atualmente, a edição de um dicionário nos EUA representa a construção de um acervo vocabular bem mais dinâmico e sujeito a mudanças do que há 20 anos atrás.
Tais escolhas, transportadas para o usuário brasileiro, de língua portuguesa, implica em repensar o que inventariar nos dicionários bilíngües. Dois problemas se colocam: 1) a questão da vulnerabilidade dos termos de gíria, da linguagem coloquial, dos termos técnicos que podem ser efêmeros e, portanto, se mal selecionados, inúteis para o usuário até mesmo na data de publicação do dicionário; 2) a dinâmica dos dicionários estrangeiros, sua permanente atualização vs. a produção mais estática dos dicionários brasileiros que não são (como os norte-americanos) atualizados a cada ano.
Para o usuário de um dicionário bilíngüe ter acesso e conhecimento dos termos em uso corrente provenientes de gíria, linguagem coloquial, jargão, ou variante dialetal, e saber utilizá-los corretamente, representa saber inserir-se em uma ou mais comunidades de fala específicas da língua inglesa (quer nos EUA, na Inglaterra, ou em outros países de língua inglesa). A responsabilidade do lexicógrafo é veicular no verbete a origem do termo, seu uso e definição no grupo.
Vejamos alguns exemplos no Dicionário Inglês-Português, da Editora Record. O nosso interesse aqui é discutir esses exemplos tendo presente que o dicionário foi publicado em 1982, e podemos, portanto, analisar a inclusão destes termos há 20 anos.
Exemplo (1) - gíria: a palavra "fuck" entrou no dicionário como termo de gíria vulgar, com várias acepções que evitaram sua tradução corrente como substantivo e verbo "foda"e "foder".
Exemplo (2) - linguagem coloquial: a palavra "crack" foi registrada em suas várias acepções de sentido literal e figurado, que incluíram o sentido de "loucura" e "maluquice", já sinalizando uma conotação próxima ao uso da palavra que define um tipo de droga em uso corrente atualmente.
Exemplo (3) - termo técnico: a palavra "cyber" entrou exclusivamente no verbete "cybernetics" para definir a ciência "cibernética". Um dicionário atualizado teria de incluir termos derivados em uso corrente, como, por exemplo, "cyberspace". Por outro lado, termos técnicos indexados, como "cyclic code", "cyclic shift" provenientes da área de informática, podem estar atualmente em desuso uma vez que a tecnologia desta área avançou radicalmente nos últimos anos.
Exemplo (4) - variante dialetal: a palavra "cool", oriunda da fala dos negros norte-americanos e, especificamente, do jazz, passou a integrar a fala padrão coloquial em expressões como "that's cool, man"; há 20 anos atrás, esta expressão revelaria o uso de um dialeto social (como a fala dos negros norte-americanos), e situaria o falante.
Em caso de reedição do Dicionário Inglês-Português da Editora Record, seria necessário estabelecer a relevância de determinadas formas linguísticas, quando e por que retirar e/ou acrescentar novos termos. Entraria aqui a questão do cotejo entre os dicionários monolíngües e bilíngües atualizados e dos novos glossários existentes nas diversas áreas do conhecimento. Ao considerarmos a inclusão de novos verbetes, seria recomendável definir a questão da gíria, do jargão, do registro e o quanto extender o verbete além dos termos relacionados nos dicionários disponíveis.
O Dicionário Inglês-Português da Editora Record, organizado e editado pelo Prof. Antonio Houaiss há vinte e dois anos atrás integra um conjunto de obras de referência de grande relevância como, por exemplo, a Grande Enciclopédia Delta-Larousse (em 12 volumes), a Enciclopédia Mirador Internacional (em 20 volumes), e o Pequeno Dicionário Enciclopédico Koogan-Larousse (um volume). O Prof. Antonio Houaiss, apaixonado pela filologia, lexicologia, e tradução, bem como pelo ensino da língua portuguesa, abriu caminhos que permitiram às gerações seguintes criar, aprimorar e aprofundar, com o auxílio das mais avançadas tecnologias, novas obras de referência tão necessárias para profissionais, estudiosos e usuários da língua portuguesa e de línguas estrangeiras.