ALICERCE SEMIÓTICO VISANDO AUTONOMIA DE LEITURAS
Solange Mello do Amaral
And the text doesn’t exist, semiotically, unless it has an audience, which must set the text in some kind of social relationship, as well as attributing a relationship of text to the world. (Hodge & Kress1991: 60)
CONSIDERAÇÕES GERAIS
A minha trajetória enquanto aprendiz de língua estrangeira nas graduações de inglês e italiano, ambas na Universidade Federal do Rio de Janeiro, aguçou minha busca pelo respeito à leituras autônomas.
Nesta reflexão partindo da Semiótica Social terei como objetivo obter respaldos teóricos que cuidem da construção de uma teoria que fundamente o gênero literário diário, enquanto documento público, considerando aspectos lingüísticos, sociais, políticos e psicológicos e que me permitam atestar a observância da gramática narrativa deste estilo.
Paralelamente, ao concordar que o texto sem o leitor seja um significante que não encontra seu significado, admite-se que o texto seja" um potencial de efeitos que se atualiza no processo da leitura", Iser,1996:15. Logo, cabe ao leitor o direito e a autoridade de validar o texto com sua (s) leitura (s).
A semiótica oferece a perspectiva de um estudo sistemático, abrangente e coerente do fenômeno da comunicação como um todo. Assim sendo, será uma mediadora entre a lingüística que privilegiou a “língua” em Saussure e Chomsky e a pragmática que privilegiou a “fala”.
Indo mais além, a semiótica possibilitará meios de descrever e explicar os processos e estruturas através dos quais o significado é construído. Sendo que os alicerces da semiótica social estão em pressupostos teóricos sobre a ‘sociedade’ e o ‘significado’ que nos remetem dentro de sociedades capitalistas contemporâneas à complexos ideológicos e sistemas logonômicos.
ALICERCES CONCEITUAIS DA SEMIÓTICA SOCIAL
Enquanto os complexos ideológicos existem para manter as relações de poder e solidariedade e representam a ordem social como servindo simultaneamente aos interesses do dominador e do dominado, os sistemas logonômicos implicam uma teoria da sociedade, uma epistemologia e uma teoria das modalidades sociais.
Como os complexos ideológicos, os sistemas logonômicos refletem contradições e conflitos nas formações sociais e têm uma estrutura que consiste de regras gerais expressando a dominação do dominante associada à alternativas que reconhecem a oposição do subordinado.
As palavras chaves da semiótica social são ação social, contexto e uso, e a menor forma semiótica com existência concreta é a mensagem. A mensagem tem uma origem, uma meta, um contexto social e um propósito.
Esta mensagem é orientada para o processo semiótico, que vem a ser o processo social onde o significado é construído e alternado dentro do plano semiótico. Entretanto, a mensagem é sobre alguma coisa que existe fora de si e está ligada ao mundo, sendo seu significado derivado da função representativa ou mimética que ele exerce no plano mimético.
A SEMIÓTICA SOCIAL E O TEXTO
No que diz respeito ao texto, os autores Hodge e Kress (1991) se referem a uma dicotomia que pode ser resumida enquanto o texto visto como produção textual e dentro do plano mimético; e o texto como processo orientado para a noção de discurso, e dentro do plano semiótico.
A necessidade de contrastar a noção de texto à de discurso é destacada, pois o texto, enquanto produto, é só um vestígio de discursos, ao passo que o texto, enquanto um processo, é um fluir de significados em torno da construção de significados do discurso.
“Meaning is always negotiated in the semiotic process, never simply imposed inexorably by an omnipotent author through an absolute code”. (Hodge & Kress,1991: 12)
Peirce enfatizou o conceito de processo no estudo dos signos e os classificou em três tipos principais: ícones (baseados na identidade ou semelhança, como, por exemplo, placas de trânsito); índice (baseados na idéia de causalidade, fumaça como sinal de fogo); e símbolo (uma relação arbitrária). A ação de um signo, não como uma estrutura lingüística ou um código, foi destacada.
By semiosis I mean an action, an influence, which is, or involves, a co-operation of three subjects, such as a sign, its object and its interpretant, this tri-relative influence not being in any way resolvable into actions between pairs. (Peirce in Hodge & Kress,1991, 20).
A semiose enquanto um processo passível de gerar possibilidades infinitas de livres associações vê o sentido como um processo intrínseco, com seu papel sócio cultural dado pelo sujeito.
O texto é a realização material do sistema de signos e o contexto é um elemento crucial do significado dentro da dimensão semiótica. Tomando como exemplo os sinais de trânsito, podemos observar que além dos três significados: pare, siga e pare/siga, os signos carregam outros sentidos além de seu conteúdo mimético: implicam um comportamento previsível por parte de outros motoristas.
Logo, o contexto é a chave do texto e suas funções podem resumidas como:
O contexto da semiose é organizado como uma série de textos, com os significados relacionados à categorias de participantes e suas relações.
O comportamento dos participantes é controlado pelo sistema logonômico que opera através de mensagens sobre a identidade deles e suas relações significando status poder e solidariedade.
Participantes em semiose tipicamente transmitem uma grande profusão de mensagens em um número de códigos sobre o status da troca, eles próprios e papéis de outros.
Onde a troca semiótica não envolve contato direto por todos os participantes, os produtores tendem a incluir instruções especificando produtores, receptores e contextos na forma do texto deles.
A série de mensagens que organiza uma série semiótica vai implicar uma versão generalizada de relações sociais. Isto é, cada ato semiótico tem um estilo conteúdo ideológico. (Hodge & Kress, 1991:40)
Refletindo sobre a influência do entendimento do contexto em favor da autonomia da leitura, quero destacar que estes significados podem estar relacionados às diversas leituras que os sujeitos sociais podem fazer.
Considerando que os sujeitos sociais sofram o controle do sistema logonômico: o texto enquanto produção lingüística opera sem dúvida com relações de poder e solidariedade com o leitor - quanto maior for o poder dado ao leitor, maior será sua relação de solidariedade com o texto, e maior será sua semiose, sua comunicação com o texto.
Dentro de suas abordagem sobre estilo como ideologia, Hodge & Kress comparam a organização de atos individuais de semiose (processo pelo qual o sentido é construído e trocado) por sistemas de significantes de poder e solidariedade, com relações entre grupos em uma formação social, onde esses sistemas de significantes são essenciais na operação de sistemas governando atos semióticos.
Uma série de signos dentro de um grupo define sua versão específica de relações sociais. Os sentidos que esses signos comunicam são um fator importante dentro da ideologia do grupo. .À estes fatos que atuam como marcadores do sentido que o grupo quer comunicar, Hodge & Kress chamam de metassigno.
Os metassignos são deflagrados em mensagens e continuamente se referem e monitoram relações sociais de participantes semióticos, ou seja participantes que querem comunicar a ideologia do grupo a que pertencem.
Uma palavra que é tradicionalmente usada para descrever este fenômeno é ‘estilo’ - que no entender da famosa frase de Buffon: “Estilo, é o próprio ser”.
Importante notar como o estilo é tratado por diferentes disciplinas a ele associadas: crítica literária e história da arte tratam o estilo como um e fenômeno não social; e a ‘estilística’ desenvolveu-se de uma mistura da crítica literária e da lingüística e não abandona o aspecto social.
Segundo Widdowson (1984:4) a estilística pode oferecer um caminho intermediário entre a língua e a literatura, e a lingüística e a crítica literária através de um processo gradual que pode instrumentalizar o leitor para partindo seja do texto enquanto exemplo de língua ou de literatura possa chegar à lingüística e a crítica literária.
Associada ao estilo destaco a gramática no que se refere à fenômenos que também podem ser metassignos na medida que distinguem o discurso de uma elite, uma classe ou uma nação, criando entre seus componentes uma série de marcas de fidelidade social (solidariedade, identidade do grupo e ideologia).
Essas marcas no estilo e na gramática se referem a relações no plano da semiose (a produção de sentido), e não no plano mimético (o que é referido). Logo, podem parecer arbitrárias ou sem sentido, enquanto que elas carregam consistentes sentidos ideológicos, que se tornam evidentes pela referência ao plano semiótico.
No ponto de vista de Voloshinov (1973), a língua é normalmente dialógica, pois é onde há a competição de vozes e de interesses. Onde a língua é monológica, o autor acredita que esteja havendo uma supressão ativa da diferença, e ainda a possibilidade da diferença por forças sociais opressivas.
Deste modo, textos monológicos são regidos por regras logonômicas severas que não permitem a oposição ou mesmo a participação dos não poderosos. Como exemplo podemos nos remeter aos textos científicos.
O sentido do texto monológico é uma ideologia de poder absoluto. Porém, o sentido de textos dialógicos ou pluralistas admite a existência de vários tipos de oposição, resistência e negociação dentro de um grupo. Esse pressuposto teórico me reporta à relação do leitor com o texto que pode ser de submissão ou de autoridade.
Por um leitor submisso, entendo o que tenta recuperar o discurso das entrelinhas do texto. Aquele que acessa as informações dadas, ajusta-se e acomoda-se. Em contrapartida, há o leitor que em vez de acomodar-se ao texto, projeta seu próprio esquema no que lê, e faz com que o texto se enquadre em seus padrões de significação.
A DIACRONIA DOS PROCESSOS SEMIÓTICOS
Retomando a dimensão social dos estudos lingüísticos não tratados por Saussure, há o nome do sociolingüista William Labov que integrou a questão histórica e lingüística com um único pressuposto: as mesmas forças e processos que criam pequenas diferenças em um curto espaço de tempo dentro de uma comunidade lingüística, produzirão grandes diferenças que constituirão línguas separadas em um longo espaço de tempo.
Labov (1978) chamou de sentidos subjetivos as marcas, cujos julgamentos feitos sobre os falantes eram baseados em marcas subjetivas. Assim sendo, as diferenças e as coincidências formam um padrão que se encaixa em um processo no qual um grupo de metassignos tem diferentes valores para diferentes grupos.
A cultura de um grupo tem a mesma função para ele do que os metassignos em códigos individuais. Logo, a cultura é um complexo que consiste de metassignos em um percurso de códigos (fala, vestuário, comida, literatura, etc.) com um núcleo comum de sentidos.
Os sentidos dos signos nunca são neutros e objetivos. Eles sempre são parte de uma estratégia semiótica que determina seu efeito e sentido social. Então, é importante observar igualmente signos relativamente simples e signos difusos, metassignos e significantes de metassignos para analisar os efeitos de um texto. Todos os significantes de um texto atuam primeiramente no plano da semiose para criar um alto nível de solidariedade entre o artista/escritor e seu público/seus leitores.
Ao tentar associar ao estilo o conceito médico de sintomas, a semiótica social não conseguiu credibilidade. Por outro lado, os sociólogos trabalham com os signos do que é viável e com a análise de formas sociais, embora usando diferentes métodos e pressupostos.
Durkheim é um exemplo pelo seu estudo sobre suicídio (1970) sendo um texto clássico de sociologia que ao mesmo tempo em que revela aspectos sociológicos reconhece características da semiótica social.
O suicídio é um símbolo dramático de ruptura e colapso, logo foi um índice conveniente para o enfoque de Durkheim. Ele acumulou dados que lhe permitiram relacionar taxas e tipos de suicídio com tipos de grupos sociais.
As dimensões de poder e solidariedade foram correlacionadas com as taxas e tipos de suicídio e o colapso da coesão e formas de regras da sociedade.
Segundo Durkheim, há uma diferença entre solidariedade mecânica- onde os vínculos sociais são fortes mas não são complexos ou muito organizados; e a solidariedade orgânica-onde há um grande nível de diferenciação e subordinação.
A teoria de estruturas sociais de Durkheim foi mais desenvolvida que sua teoria de sistemas significantes. Assim sendo, tornou-se necessário recorrer à teóricos de língua para complementar a teoria social. Basil Bernstein (1971) foi um bom começo. Reconheceu na língua inglesa o que chamou de “linguagem alta” (códigos elaborados: sintaxe complexa, orações subordinadas, vários tipos de transformação e clareza de sentido) e “linguagem baixa” (código restrito: sintaxe simples, variedade restrita de formas lingüísticas e sentido implícito). Esta nomenclatura se relaciona à organização social tanto ao nível de classes sociais quanto ao nível de organização familiar.
Indo mais além, Bernstein desenvolveu um par análogo para descrever como diferentes sistemas de educação se organizam e transmitem conhecimento: “grade” (a natureza da classificação do sistema, força e fraqueza das fronteiras e da preservação da fronteira, que podemos ver como dentro do plano mimético); e “grupo” (relações de indivíduos ao grupo em estruturas do plano semiótico).
A MODALIDADE E O PROCESSO COMUNICATIVO
A análise de um texto, com o enfoque da semiótica social, deverá ser feito no nível logonômico porque é neste nível que se dá o estudo de fatos e forças sociais que determinam o comportamento.
Dentro de um ponto de vista semiótico, verdade e realidade são categorias que marcam um acordo ou um desafio sobre o estado temporário do sistema semiótico. O que varia é o uso da modalidade para afirmar a segurança do sistema de classificação afirmando sua verdade ou seu estado como realidade, ou para questionar a segurança do sistema, desafiando seu status enquanto verdade ou realidade.
A modalidade expressa afinidade ou falta de afinidade entre emissor e receptor via uma afirmação sobre o status do sistema mimético. Assim sendo, afinidade é um indicador das relações de solidariedade e poder: um alto nível de afinidade indica a expressão de solidariedade entre participantes; um baixo nível de afinidade indica que diferenças de poder estão em questão.
Algumas categorias em foco são tempo, história, causalidade e gênero. Há uma equação de modos realísticos de representação com uma modalidade de alta afinidade, realidade e fato. Por outro lado, a falta de precisão de detalhes pode relacionar-se a distância ao nível de interesse e de tempo.
Os termos fundamentais desta categorização são poder e solidariedade: conhecimento compartilhado e o processo de compartilhá-lo confirma a solidariedade. Entretanto, o controle do conhecimento acentua relações de poder.
Os significantes das modalidades são construídos a partir de categorias ideológicas dos planos semiótico e mimético. Logo, modalidade e ideologia interagem: a ideologia prescrevendo valores da modalidade e a modalidade legitimando valores ideológicos.
A IMPORTÂNCIA DA DIMENSÃO DIACRÔNICA
A semiótica social deve aceitar a dimensão diacrônica como sua parte integrante, deve dissolver as fronteiras entre diacrônico e sincrônico a favor de um único campo. Toda estrutura semiótica existe inevitavelmente no tempo e no espaço e todo processo semiótico acontece nestas dimensões.
Dentro deste campo, a história oferece estruturas e transformações que podem ajudar a explicar a natureza e as tendências de interpretações a atos individuais. Transformações não são operações somente ligadas à estruturas de sentido. Ao levar leitores a uma exploração de possíveis paradigmas de afirmativas, isto é de explorações dos sistemas miméticos, as trans formações projetam vários sentidos que se tornam significativos por si sós.
Com o enfoque da semiótica social com o objetivo de usá-la como respaldo teórico para a construção de uma teoria semiótica do diário assim como uma gramática narrativa que o permeie, concordo com Hodge e Kress (1988: 259) quando assumem ser essencial entender como os leitores se posicionam frente ao texto devido ao resultado de sua entrada na semiose. Há uma oscilação entre leitores conscientes que são capazes de reconstruir os textos para propósitos próprios, e leitores que ficam a mercê de onde o texto os posicione.
Este pressuposto teórico também aparece elucidado por Widdowson (1979) quando o escritor assume a existência de um leitor e passa a manter com ele um diálogo dentro de sua produção literária.
Finalmente, revisitando a síntese que fiz em minha dissertação de mestrado (1996:10) tentando equacionar a relação leitor-texto-autor através das teorias lingüísticas (onde hoje incluo também as teorias literárias), os modelos de leitura e as estratégias de leitura, ressalto a macro importância da semiótica como que pairando por toda a equação.
BIBLIOGRAFIA
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