ENSINO DA LÍNGUA EM CONTEXTO DE MUDANÇA
Maria Eugênia Lamoglia Duarte (UFRJ)
Gostaria de começar esta conferência com um esclarecimento sobre seu próprio título, cuja primeira parte se refere ao “ensino da língua” propositalmente sem o adjetivo materna, que em geral vem acompanhando esse sintagma. Com isso espero deixar claro que quando nos referimos a ensino da língua creio estarmos nos referindo à língua oficial que aprendemos na escola, geralmente e infelizmente “a duras penas”, tendo que lidar com regras e conceitos muitas vezes sem qualquer sentido, que nem sempre conseguimos aplicar. Não me refiro, pois, àquela variedade que adquirimos desde os primeiros meses de idade, a partir dos dados que nos são fornecidos pelos familiares e outras pessoas que nos cercam, num processo natural, que não depende da ação da escola e que já está concluído aos seis, sete anos de idade, não constituindo privilégio daqueles que têm acesso à escola. Esta sim é para mim a língua materna.
Feita essa distinção, passemos a lembrar a natural distância que separa língua oral e língua escrita, a primeira em constante evolução, a segunda, por seu próprio caráter convencional, mais conservadora. Parece, no entanto, que essa distância, no que se refere ao português do Brasil, é mais profunda. Isso fica patente, por exemplo, quando se vai ensinar português para estrangeiros. Já na primeira lição, o professor encontra problemas com as estruturas com o verbo ‘haver’, por exemplo. Ele ensina que o que a gramática diz é que “o certo” é: ‘há muita gente no jardim’, mas diz ao aluno que ele vai ouvir e falar ‘tem muita gente no jardim’. Ensina que “o certo” é ‘você foi ao cinema?’, mas que ele vai ouvir ‘você foi no cinema?’. Ensina que escrevemos/deveríamos escrever ‘nós não a vimos ontem’, mas falamos/ouvimos ‘a gente não viu ela ontem’. Ensina que a gramática prescreve ‘Contaram-me uma história’, mas ele vai ouvir ‘Me contaram uma história’. E nós poderíamos continuar com uma lista interminável de exemplos.
Afinal, essas diferenças são freqüentes em todos os sistemas quando se opõe língua oral à escrita? Se tomarmos o português europeu atual, a resposta será “Não”. Quando se analisa uma amostra do português europeu coloquial, o que se encontra são variações no nível da concordância e da regência, por exemplo, mas está lá o uso do verbo haver existencial, estão lá as ocorrências de próclise com elementos atratores e as ênclises sem atratores, independentemente do nível de escolaridade do indivíduo. E por que o mesmo não se dá aqui? Porque o modelo de norma culta que tomamos era diferente do português efetivamente usado no Brasil. Falemos um pouco de como se constituiu a norma culta entre nós e vejamos por que se criou esse abismo entre o que se fala e o que se ensina (e nem sempre se aprende) na escola brasileira.
Para tanto, eu tomo aqui brevemente as considerações de Pagotto (1998), que nos lembra que a norma culta escrita no Brasil se estabeleceu no decorrer da segunda metade do século passado e se fixou na primeira metade deste século, à imagem e semelhança da norma vigente em Portugal, numa tentativa de uma elite intelectual se manter em oposição aos demais segmentos da população iletrada. Desta forma, à medida que o Brasil se tornava politicamente independente de Portugal, um movimento de dependência cultural tomava força, no sentido de imitar os padrões portugueses. Acontece que o português europeu, ao contrário do brasileiro, passara nos séculos anteriores (particularmente no século XVIII) por um processo de mudança fonológica, com inúmeras conseqüências para a sintaxe.
Uma dessas mudanças se refere ao fato de que a fala portuguesa passou a privilegiar a ênclise, isto é, seus pronomes átonos começaram a se cliticizar da direita para a esquerda, e o português do Brasil teve que se ajustar a um padrão que não era absolutamente o seu. Em outras palavras, nós brasileiros, que não tínhamos sido protagonistas desse processo (uma vez que quem mudou foram eles, não nós!) passamos a ter que obedecer à norma de não começar frase com pronome. Vem daí a clássica história da colocação dos pronomes átonos, a principal bandeira da norma culta no Brasil. E o discurso que se desenvolveu ao longo de toda a primeira metade deste século foi aquele discurso da condescendência, segundo o qual na fala informal, “tudo bem usar a próclise sem atrator”, mas na escrita, “é de rigor”, “impõe-se” a ênclise. Algumas gramáticas chegam a afirmar até que a ênclise é a posição natural dos pronomes em português. Alguns chegam a dizer que o hábito de usar a próclise faz parte da índole dócil do brasileiro em oposição à rispidez do europeu (como se o ladrão que diz ‘me passa o dinheiro’, iniciando a frase com pronome mostrasse alguma docilidade).
Em conseqüência disso, há um abismo entre língua oral e escrita, o que favorece a existência de uma indústria lucrativa do certo e do errado, do “pode” e “não pode”, contribuindo para aumentar um preconceito lingüístico absolutamente irracional. Um dos agentes mais atuantes dessa onda normativista que assola o país (plagiando, com algumas alterações, Stanislau Ponte Preta) chegou a dizer, numa entrevista, que foi ao Maranhão porque tinha ouvido dizer que lá se falava um “bom” português. Vejamos o que ele diz:
Certa vez fui ao Maranhão porque me disseram que lá se falava um português menos contaminado. Pura lenda. Acho que, no cômputo geral, o carioca é o que se expressa melhor sob a ótica da norma culta. Ele não come o “s” quando usa o plural, utiliza os pronomes com mais propriedade, não erra tanto nas concordâncias e tem uma linguagem mais criativa. (Entrevista de Pasquale Cipro Neto a VEJA de 10.09.97)
As palavras do professor mostram que ele é o produto exato dessa cultura preconceituosa que se constituiu ao longo da primeira metade do século XX. Isso se vê no uso do termo “contaminado”, mostrando que ele ignora que todo sistema lingüístico é essencialmente variável; isso se vê nas avaliações sem qualquer fundamento teórico, quando por exemplo ele diz que o carioca não “come” o “s”, quando nós sabemos que todos nós “comemos” o “s”, uns mais outros menos. Aliás, os trabalhos pioneiros sobre a queda do -s como marcador de plural foram feitos por Marta Scherre, com base justamente na fala de cariocas. Quanto ao fato de o carioca ter “uma linguagem mais criativa”, é difícil saber o que isso significa: como é possível ser criativo e se expressar melhor sob a ótica da norma culta ao mesmo tempo, como quer o tal professor? Aliás, uma coisa que esse senhor parece não saber é que o Brasil, de norte a sul, de leste a oeste, tem uma surpreendente unidade no que se refere à sintaxe. (Mas vejam bem, unidade não significa uniformidade!) Trabalhos realizados em universidades por todo o país têm revelado essa unidade. As diferenças mais notáveis se situam no campo da fonética e do léxico.
A essa altura, os que me ouvem devem estar se perguntando: mas o que tem isso a ver com o tema em discussão? Ou ainda: devemos agora pregar uma espécie de desobediência lingüística, uma revolta contra a norma culta estabelecida? Naturalmente que não. Se eu lembro esses fatos é porque estou falando para colegas e para futuros professores de língua portuguesa, que não podem deixar de ter em mente as razões dessa distância enorme que separa a escrita padrão do uso da língua entre nós. Assim, o ensino da língua portuguesa na escola - que na minha opinião é erroneamente chamado de ensino de língua materna, repito, já que a língua materna, essa o aluno quando chega à escola já adquiriu sem dor - o ensino de língua portuguesa oficial deve ser feito com os cuidados semelhantes aos utilizados no ensino de uma segunda língua, deixando claro ao aluno que se trata de uma modalidade diferente da que ele habitualmente usa e que se presta justamente à escrita e, em raras ocasiões, à fala.
E isso nos leva a uma outra questão: qual é afinal a língua escrita padrão no Brasil hoje? A gramática normativa retrata com fidelidade os fatos dessa modalidade? Uma confrontação entre os resultados das pesquisas que temos realizado e uma observação da escrita padrão sugere que a distância entre o que se fala e o que se escreve nos jornais e revistas de circulação nacional é grande, mas não tão grande quanto mostram nossas gramáticas. Muitas daquelas observações feitas por alguns gramáticos em notas de rodapé, como sendo ocasionais “desvios” cometidos pelos “incuráveis” brasileiros, são hoje a norma. À medida que novas gerações de escritores e jornalistas vêm surgindo, usos nacionais vão se sobrepondo aos lusitanos num processo que é lento, claro, mas que vai ganhando terreno. Como diz o Professor Bechara (1999:567), há fenômenos ainda não aceitos pelos gramáticos “apesar da insistência com que penetram na linguagem das pessoas cultas”.
Observem, por exemplo, os trechos a seguir, extraídos da língua padrão veiculada em jornais e revistas de circulação nacional. Comecemos pelos casos de regência verbal. Qualquer observador atento verá que há uma variação muito grande no uso do verbo assistir, ora com complemento regido de preposição ora como transitivo direto, aparecendo na passiva ou com seu complemento representado pelo clítico acusativo:
Assista a um filme como ele deve ser assistido (Anúncio em VEJA, 31.05.2000)
Malhação é daqueles programas de televisão que deveriam exibir, antes de cada capítulo, uma mensagem do Ministério da saúde advertindo que ele faz mal à saúde. Mas, sinceramente, assisti-lo nestes dias vale qualquer risco. Afinal, quando o espectador terá a oportunidade de ver novamente, na mesma cena, estes dois gigantes da arte de representar que são Alexandre Frota e Luciano Szafir. (Xexéo, JB, 14.05.99)
Freqüentemente o contrário acontece: verbos transitivos diretos aparecem com um clítico dativo, como ilustram os exemplos a seguir, em que o autor, ao retransmitir mensagens de leitores, passa por um desses usos sem perceber e na mesma coluna lhe faz uma crítica:
“Meu caríssimo Xexéo, há quanto tempo não lhe azucrino..." Começava assim um dos e-mails desta semana. Leitor nunca azucrina. (Xexéo, JB, 7.4.99)
“Existe alguma razão evidente para o personagem de José Wilker usar o pronome lhe indevidamente? São exemplos recentes: Eu lhe amo, eu lhe encontrei." A leitora tem razão. E Aguinaldo Silva prometeu que nessa novela todo mundo ia falar corretamente. Mas personagem nordestino de novela da Globo sempre fala eu lhe amo. Sabe-se lá por quê. (JB, 7.4.99)
É claro que nós sabemos por quê. Nosso sistema de pronomes clíticos vem passando por um longo processo de mudanças há já bastante tempo. Alguns chegam a estar praticamente ausentes da língua oral, como o acusativo e o dativo de terceira pessoa (“o” e “lhe”), este último resistindo na segunda pessoa, possivelmente para evitar o “te”, talvez por cerimônia.
Ainda ilustrando essa instabilidade na regência de certos verbos, temos o exemplo a seguir, em que o autor, a propósito dono de um estilo muito formal, no mesmo parágrafo usa o verbo implicar com duas regências:
Uma mudança no formato dos jornais implica obrigatoriamente em uma mudança de concepção. E dada a preferência que a nossa imprensa mimetizou da TV, implicará uma alteração de teor. (Alberto Dines, JB, 10.07.99)
Com relação à ordem dos clíticos, parece que estamos passando por um momento muito especial. Se por um lado a próclise em início absoluto de oração já começa a vencer todas as bravas resistências, por outro temos observado uma ocorrência de ênclise nos contextos em que se esperaria a próclise, contrariando o uso habitual no Brasil. Seria a vitória da insistência do ensino normativo?
Antes que o prezado amigo ou a encantadora senhora peguem da pena para escrever uma carta fulminando minha ignorância, me apresso a dizer que a palavra passarídeo não existe, embora eu ache que devia existir. É como borboletáceo, criação famosa de um vestibulando de Medicina, em Salvador, nos mitológicos tempos em que os vestibulares não eram unificados e faziam-se provas orais. (J. Ubaldo Ribeiro, 2000:95)
Ninguém deu-se ao trabalho de examinar o papel do Tribunal de Contas nesse ou em outros descalabros. Ninguém lembrou-se de juntar o caso à deplorável situação do Judiciário... (Dines, JB, 05.08.2000)
O que esses dados sugerem é que a norma culta não é uniforme, que a língua escrita também é variável, embora em menor escala que a oral, porque ela é produzida por seres vivos, que adquirem sua linguagem nas mesmas condições que os não escritores e, por mais que tentem seguir uma norma presumível, que consta dos manuais de redação, acabam por se “trair” em algum momento. Na realidade, pode mesmo se tratar de uma questão de sensibilidade do escritor/jornalista para a realidade lingüística de seu país. Caso ele não mude, corre o risco de não ser entendido. A esse propósito, eu vou citar aqui um trecho de Graciliano Ramos, já bastante conhecido de todos mas bem ilustrativo:
“Eu não lia direito, mas arfando penosamente conseguia mastigar os conceitos sisudos: ‘A preguiça é a chave da pobreza’ - ‘Quem não ouve conselhos raras vezes acerta’ - ‘Fala pouco e bem: ter-te-ão por alguém’.
Esse Terteão para mim era um homem, e não pude saber que fazia ele na página final da carta. As outras folhas se desprendiam, restavam-me as linhas em negrito, resumo da ciência anunciada por meu pai.
- Mocinha, quem é o Terteão?”
Hoje dificilmente encontramos a mesóclise na mídia impressa, ficando suas ocorrências mais limitadas a alguns textos acadêmicos (apesar de nossas gramáticas a considerarem “de rigor” quando o verbo se encontra no futuro e não há um “atrator”). Mesmo ensaístas e cronistas, dos mais formais aos mais informais, costumam evitá-la:
Pare-se um pouco para pensar e se verificará que esse imposto está menos destinado a melhorar a saúde dos pacientes do que a do bolso dos donos de hospital. (Toledo, Veja, 19.06.96)
Talvez conseguissem que suas barrigas roncassem em uníssono. Mas aí, lhes faltaria a retórica. (Veríssimo, JB,27.04.96)
E o interessante é que os que tentam a todo custo seguir essa norma idealizada relativa à “colocação” pronominal acabam “cometendo” hipercorreções, como é o caso dos exemplos em que há ênclise apesar de aparecer um atrator.
Além de mostrar que a língua escrita é variável, os dados aqui exibidos revelam ainda que nós não temos uma descrição eficaz e realista da norma culta escrita. Poucos são os corajosos que assumem a realidade da mudança lingüística e deixam de atribuir as diferenças entre a norma culta brasileira e a européia a uma mera questão de estilo formal versus informal. E, enquanto esses fatos não forem registrados por nossas gramáticas, a partir dos dados da escrita padrão, os professores continuarão a se sentir entre a “cruz e a espada”, e, com receio dos concursos e vestibulares, vão acabar por ignorar o uso efetivo em favor de um uso idealizado.
Eu gostaria de ilustrar a falta de sintonia entre a descrição gramatical e o fato lingüístico com a questão do clítico acusativo de terceira pessoa, o nosso pronome oblíquo átono o. São inúmeros os trabalhos centrados na língua oral que mostram estar esse clítico em franco processo de extinção, sendo substituído pelo pronome pessoal do caso reto, pelo próprio Sintagma Nominal repetido ou simplesmente por uma posição vazia, a que se tem chamado de objeto nulo. Assim, num comentário sobre a Maria, teríamos com maior probabilidade uma resposta como (b), (c), (d), em vez de (a):
(a) Eu não a vejo há muito tempo.
(b) Eu não vejo ela há muito tempo.
(c) Eu não vejo a Maria / essa menina há muito tempo.
(d) Eu não vejo - há muito tempo.
Observem que em (d), o verbo não muda sua transitividade. O ouvinte interpreta a sentença preenchendo a posição do objeto com o antecedente no contexto discursivo. Qualquer falante do inglês, francês, italiano ou espanhol aqui presente sabe que isso não ocorre nessas línguas, que devem obrigatoriamente preencher a posição do objeto. E eu devo dizer que, embora possível no português europeu, essa construção em (d) é bastante marginal e só ocorre em contextos sintáticos iniciais, nunca em contextos subordinados. A construção em (b) igualmente não aparece no português europeu. Agora observem os resultados de trabalhos sobre a representação do objeto direto anafórico no português falado em várias partes do Brasil:
Realizações do objeto direto anafórico em pesquisas sobre língua oral
(tabela adaptada de Averbug, 2000)
Observe-se que o índice mais alto de uso do clítico acusativo é de 5%. Em todas as amostras analisadas, o objeto nulo é a forma preferencial para a representação do objeto direto anafórico. Faltam-nos, é claro, pesquisas sobre outras regiões do Brasil, mas pode-se dizer que uma criança adquirindo a linguagem nessas regiões pesquisadas não terá entre os dados a que é exposta para construir sua gramática a presença do clítico acusativo. Ao contrário de uma criança portuguesa, que ouve clíticos em profusão e os adquire naturalmente, a criança brasileira não adquire o clítico acusativo de terceira pessoa. Ela vai aprender a usá-lo durante o processo de escolarização e, a julgar pelos dados da tabela acima, vai limitar seu uso à escrita ou à fala muito formal.
É exatamente isso que mostra Corrêa (1991), cuja pesquisa revela que o aparecimento do clítico acusativo de terceira pessoa se dá primeiro na escrita para só então começar a surgir na fala. E como se dá essa recuperação do clítico acusativo pela escola? O trabalho de Averbug (2000) é revelador. Numa pesquisa baseada em textos produzidos por alunos de séries finais, desde o CA até a Universidade, a autora revela que, à medida que o nível de escolaridade sobe, cresce o uso do clítico acusativo e cai o uso do pronome pessoal do caso reto (nominativo). Observem-se os resultados no gráfico a seguir:
Representação do objeto direto anafórico segundo a escolaridade (%)
(Gráfico 3.2 de Averbug, 2000:58
Observe-se que, à medida que cresce o nível de escolaridade, cresce o uso do clítico e cai o uso do pronome pessoal do caso reto, que chega a desaparecer na escrita dos universitários. Assim, o processo de escolarização consegue levar o aluno a usar o clítico e inibe o uso do pronome nominativo. Mas veja-se que esse êxito é relativo e que o uso dos SN anafóricos e o uso do objeto nulo, embora diminuam, se mantêm como estratégias importantes para representar o objeto anafórico. Naturalmente, essa recuperação do clítico pela escola não se dá sem problemas, o que é esperado, pois uma estrutura ausente da fala será vista pelo aluno como algo absolutamente novo. Em estruturas simples (“Eu o vi”) essa recuperação é bem mais fácil do que em estruturas complexas, como as que envolvem verbos transitivos predicativos (“Eu a acho sensacional”) e causativos (“Mandei-o sair”) e tempos compostos (“Não a tenho visto”) entre outras (cf. a esse respeito Duarte 1989).
De qualquer forma, o que o gráfico mostra é que uma descrição honesta da língua escrita não pode ignorar que o uso de SNs anafóricos e de uma posição vazia são estratégias legítimas, ao lado do clítico, para representar o objeto direto anafórico hoje na língua escrita. Da mesma forma, um curso de formação de professores não pode ignorar a realidade lingüística brasileira.
Já há muitas pesquisas sobre o português falado no Brasil e esses resultados têm revelado uma grande semelhança no que se refere à sintaxe do português brasileiro em todo o território nacional. Muitas pesquisas sobre a escrita padrão estão igualmente sendo realizadas. É preciso que a Universidade faça com que essas pesquisas cheguem aos que atuam nas salas de aula para que possam tornar o ensino mais atual e eficaz. É claro que isso envolve, além de um trabalho organizado, uma mudança de mentalidade, e mudanças de mentalidade não ocorrem da noite para o dia. Mas devemos nos esforçar para encarar com realismo o fato inexorável de que, assim como mudam os homens, também mudam os sistemas lingüísticos, e tentar não agir como agem alguns, para quem uma palavra não pode ser usada porque ainda não aparece nos dicionários (quando sabemos que os dicionários só registram uma nova palavra depois de ela passar a ser usada); uma estrutura não é legítima porque ainda não foi registrada pelas gramáticas, embora apareça com freqüência na escrita padrão.
É preciso, pois, que nós, professores e futuros professores de língua portuguesa, tenhamos consciência de que (a) a distância natural que separa língua oral e escrita é agravada no caso do português brasileiro pelas condições sob as quais se fundou a norma culta no Brasil e (b) a falta de uma descrição do padrão escrito torna essa distância bem maior do que ela de fato é. O que nós vimos aqui brevemente permite chegar à conclusão de que diferenças nascidas já há muito tempo, e forçadas a se conter por um normativismo exagerado e irracional, já não conseguem mais se conter dentro dos limites que lhes impuseram e começam a se firmar em nosso sistema.
Só com essa consciência, vamos obter êxito no processo de facilitar ao aluno o acesso a uma variedade que ele ainda não domina e saber em que aspectos devemos investir esforço e tempo, deixando para mais tarde o trabalho de lidar com fatos gramaticais que já não fazem parte do que é realmente o padrão atual. Nesse sentido, sim, estaremos contribuindo para munir o aluno de uma outra ferramenta de que ele ainda não dispõe - a língua portuguesa oficial - que constitui, juntamente com a língua materna, que ele domina tão bem quanto qualquer outro brasileiro que jamais entrou numa sala de aula, um instrumento de identidade cultural, em meio a tantas outras formas de expressão da cultura de um povo. E a escolha dos autores nesse trabalho que se realiza na escola é fundamental. É preciso levar isso em conta particularmente nos primeiros anos escolares sob pena de acontecer ao aluno o mesmo que aconteceu com Graciliano ao ler os conselhos do pai. Um autor sensível às mudanças por que passa nosso sistema é Luís Fernando Veríssimo, de quem eu cito aqui um trecho bem a propósito do tema que discutimos, retirado da dissertação de mestrado de Cavalcante (1999):
E tenho conseguido me manter inocente de grandes pecados ortográficos e gramaticais desde então, pelo menos se você não for um fanático sintático. Vez que outra um leitor escandalizado me chama a atenção para alguma barbaridade que eu prefiro chamar de informalidade, para não chamar de distração ou ignorância mesmo. Afinal, se a gente não pode tomar liberdades com a própria língua... E nenhum pronome fora do lugar justifica a perda de civilidade. (Veríssimo, O Globo, 19.04.99)
Para concluir, eu gostaria convidar os que me ouvem a ajudar a descrever o verdadeiro português padrão brasileiro, citando Kato (1999:221): “Parece estar na hora de a lingüística resgatar o estudo da língua escrita como objeto (...) contribuindo assim para a área da aquisição e da aprendizagem e para um melhor entendimento do que ocorre nas nossas escolas”.
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