O DISCURSO RELIGIOSO NO IMAGINÁRIO DAS PSICOSES

Rogério Mariano da Silva (UFF)

 

Em nossa sociedade o discurso religioso é sinônimo de força, sua presença está em nossos gestos mais despretensiosos. Mesmo que os indivíduos o neguem por motivos diversos, enquanto ideologia, ele é reconhecido e cultuado no espaço social. Apesar das fragmentações do cristianismo, fruto de interpretações cuja proposta é refazer a leitura do texto bíblico apresentando outras perspectivas acerca de seu papel, não há dúvidas quanto à sua influência. Os instrumentos usados no controle dos fiéis vêm sofrendo modificações, no entanto, não diminuem o seu prestígio. Cada vez mais as pessoas o procuram, várias são as causas: doenças, emprego, prosperidade, etc., a fé em Deus “rende” aos fiéis algumas vantagens, entre elas o poder de comunicar-se diretamente com o criador.

Algumas pessoas têm este Dom, ou seja, falar diretamente com Deus, tal fato nos leva ao conceito de reversibilidade, isto é, a possibilidade de troca de papéis na comunicação, onde locutor e ouvinte invertem suas posições, cada qual significando de acordo com o contexto. O discurso entendido como efeito de sentidos entre locutores mostra-nos a maneira como o sujeito se relaciona com a história e o mundo concreto através de uma linguagem comum, surgindo daí crenças e valores os quais estão sendo assimilados pelos diversos grupos sociais, revelando-nos os objetivos de cada um Foucault diz que “por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem, revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder”. (A ordem do discurso, p. 10)

As formações discursivas sofrem constantes intervenções, um verdadeiro controle do que vai ser dito “em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos” (idem, p. 08). Há também a questão da autoridade, o enunciador tem que ser reconhecido como membro de uma sociedade discursiva para que suas proposições sejam aceitas. O discurso religioso funciona de acordo com o já-estabelecido, não havendo espaço para outras leituras dos ensinamentos de Deus presentes na bíblia os quais são divulgados por seus representantes: padres, pastores, pregadores…

O gesto de interpretar um fato é o momento em que a ideologia surge, representando a maneira como o sujeito irá simbolizar a realidade em sua volta. O mundo das psicoses, entendido simplesmente como loucura, têm a nos revelar uma interpretação de um mundo não muito distante de nós, os chamados normais. É importante notarmos, mesmo com as exclusões impostas, há a presença de um imaginário influenciado por uma ideologia que é dominadora de seus atos. O discurso religioso oriundo de uma instituição atuante, ganhará uma leitura vinculada a guerras muito parecidas com as grandes produções do cinema moderno que constantemente reproduzem algumas de nossas preocupações. O texto abaixo, escrito pelo Sr. J.A., um psicótico, nos servirá como exemplo de reversibilidade e vontade de poder absoluto:

 

MINISTRO DAS CONDIÇÕES CLIMÁTICAS

Eu sou agora começo a entender o Dom que Deus me deu através do arcanjo Gabriel. Eu posso destruir as estações de radar colocadas no Peru e na Bolívia pelos americanos, esses filhos da puta. Mas para o meu querido Brasil eu rezarei diariamente para que chova abundantemente no semiárido do nordeste. O arcanjo Gabriel quer pegar os americanos de qualquer jeito e eu transformarei as estações de radar deles em cacos. Eu vejo que o arcanjo Gabriel e eu formamos uma dupla e tanto. As estações de radar americanas foram colocadas lá para espionar o espaço aéreo da Amazônia. Eu e o arcanjo Gabriel as reduziremos a pó. Esperem e verão. Os galenos devem estar levando um pau e tanto dos japoneses . Os brasileiros os estão ajudando. Eles devem estar fazendo poesia com os galenos."

Antes de direcionarmos nossas atenções para as psicoses, iremos destacar algumas questões ligadas ao discurso religioso. Refiro-me á relação que o falante mantém com o sagrado, onde a vontade de poder absoluto domina toda a história. Neste contexto ter os poderes de Deus, concedidos através do anjo Gabriel, é ser capaz de controlar o tempo e derrotar os seus maiores inimigos. Orlandi diz:

Essa vontade aponta para a ultrapassagem das determinações (basicamente de tempo e espaço): ir além do visível, do determinado, daquilo que é aprisionamento, limite. (A linguagem e seu funcionamento, p. 253)

A conquista do Dom divino revelou um objetivo bem diferente do que nos acostumamos a ver, normalmente os sujeitos buscam os milagres e as revelações que são formas de ilusão de reversibilidade e a condição para o funcionamento do discurso religioso. O rompimento da dissimetria entre planos temporal e espiritual, caracterizada pelo desejo de poder absoluto, marca a usurpação do lugar, isto é, ser o próprio Deus.

Os valores constitutivos no discurso religioso ganham nas psicoses um outro valor, mostrando uma outra relação com o sagrado. Todavia essa nova perspectiva nos coloca diante do valor de verdade do enunciado, ou seja, o falso e o verdadeiro passaram a integrar as conclusões a respeito do discurso: a interpretação. Todorov num ensaio sobre o discurso psicótico chama atenção para esse ponto, em que o psicótico, segundo sua definição, é apresentado como um indivíduo que não tem condições de reproduzir o mundo exterior com fidedignidade:

Desde Bleuler até Hervey Ey, passando por Freud, diz-se que a psicose implica numa degradação da imagem que o indivíduo faz para si do mundo exterior. Se a psicose em geral é uma perturbação da relação entre o eu e a realidade exterior, o discurso psicótico será um discurso que fracassa em seu trabalho de evocação dessa realidade, dito de outro modo, em seu trabalho de referência.

Mais adiante, o autor diz:

O discurso do paranóico (psicótico) é muito semelhante, enquanto discurso dito normal; a única diferença importante reside no fato de os referentes evocados não terem forçosamente para nós existência real. (Idem, p. 76)

É difícil para mim, falar da existência de certos fenômenos que ocorrem no cotidiano. No texto do Sr. J.A, há idéias que fazem parte do imaginário de muitas pessoas . Assim, podemos dizer que há uma desconstrução da referência nula e do existir que nos foi anteriormente mostrado. Ao acompanharmos a seqüência da história produzida pelo mesmo psicótico será possível destacarmos mais elementos a fim de uma discussão:

 

OS GALENOS

São uns filhos da puta que pensam que todo o mundo que é diferente deles são uns loucos. O que pensar de uma raça que gosta de organizar mentes mortas. Eles querem conquistar essa maravilha aqui pela força das armas. Eles estão de olho no nosso ouro e os nossos materiais . E não querem acordo. Os japoneses estão se pegando com eles pelo sistema solar agora. Eu o J.A. dei uma idéia: fazer um aparelho que se parece com um avião e quando chega a determinada altitude muda para propulsão atômica. Um extraterrestre do bem disse para um galeno: os semi-aviões são invenção dele e vocês não sabem nada contra ele. Ao que o galeno respondeu: eles não são grande coisa. O piloto dormiria um sono induzido mecânica e quimicamente controlado. E pergunto se o objetivo seria descoberto pelo computador de bordo. A comida seria liofilizada como foi para a aventura daquele brasileiro que passou meses no gelo, preso. Esses aviões sairiam do chão como aviões comuns e depois mudariam para propulsão nuclear a determinada altitude. Um meio muito mais rápido e barato de se chegar no espaço próximo da terra."

Vários discursos surgem dos textos até aqui vistos, com isso podemos afirmar que algumas concepções ideológicas se fazem presente. Lembremos que as ideologias exercem um papel fundamental na produção de significados. Na definição apresentada por Orlandi, ela (ideologia) é inconsciente, efeito da relação através de uma memória, interdiscurso, passa a controlar as formações discursivas. Para comprovarmos esta tese basta que voltemos ao primeiro texto onde facilmente constatar-se-á nossa assertiva. O Sr. J.A. inicialmente utiliza-se de um momento religioso em que o anjo Gabriel, o mensageiro divino, lhe concede os poderes para travar o combate. Outras figuras surgem no decorrer da história e com elas: o sentimento antiamericano, a defesa de nossas riquezas naturais e a alta tecnologia japonesa mostrando-nos as posições sujeito assumidas nos discursos.

Na concepção de Todorov o discurso psicótico quanto à produção de sentidos fracassa devido à sua incompatibilidade com o modelo semântico imposto pelo mundo dos ditos normais. No entanto, procuramos mostrar que os dizeres nas psicoses não são quaisquer um; portanto, os sentidos existem. Há como em qualquer texto uma relação com a exterioridade a qual surge através de uma memória. Memória esta que traz à tona as diversas maneiras de simbolizar a realidade em volta de nós. É claro que o interlocutor, o outro, estará atento à forma como dada realidade será apresentada e o seu veredicto é fundamental para que os sentidos ganhem direito à circulação plena.

A necessidade de compreender o que está sendo dito é quem determina a qualidade, ou melhor, a aceitação do discurso. A função leitor-ouvinte é totalmente seletiva porque há o interesse de se estar em contato com aquilo que o agrada e lhe é familiar. O desconhecido, o que foge do seu mundo semântico, é simplesmente excluído. O discurso entendido como efeito de sentidos entre locutores obedece às várias ideologias as quais integram as formações discursivas, levando o sujeito-falante ao x ou y, não deixando margem para variações. O sujeito pragmático, isto é, cada um de nós, os simples particulares face às diversas urgências de sua vida, tem por si mesmo uma imperiosa necessidade de homogeneidade lógica... (Discurso: estrutura ou acontecimento, p. 33).

Busca-se em cada dizer um já-dito, a pura e simples repetição. Há no meu entender um compromisso de não se frustrar o outro com relação aos sentidos, os quais já foram antecipados pelo leitor. Os espaços para o novo, o estranho, têm que ser mínimos a fim de evitar a rejeição do discurso. O texto do Sr. J.A., nos faz (re)pensar essas condições, sendo as oposições verdadeiro e falso, razão e loucura motivos a mais para uma reflexão cuidadosa. Esperava-se do que foi visto um imaginário conhecido, ou seja, um Dom divino a serviço da cura ou da salvação de almas. Um sujeito fiel aos dogmas cristãos, pronto para reproduzir os ensinamentos bíblicos, mantém a estabilidade semântica do discurso religioso.

A fuga da leitura autorizada e do comportamento-modelo que a instituição religiosa estabelece fez com que o discurso, através de signos de ruptura, causadores de estranhamento, ganhasse um significado outro, em que ficou evidente o aparecimento de um imaginário que não está tão distante do conhecido. É comum nos depararmos com estas cenas todos os dias, em filmes e relatos de pessoas que juram ter contato com o desconhecido, enfim uma série de imagens que mexem conosco. Até que ponto é possível estabelecer a partir daí um limite entre loucura e razão, falso e verdadeiro?

Partindo do que Todorov chamou de referência nula e deformação da realidade, procurei mostrar que os dizeres psicóticos possuem sentidos e que estão ligados à história e ao mundo concreto, apesar de suas singularidade e suas diferenças. O gesto de interpretação nas psicoses não está vinculado ao nada, o psicótico enquanto indivíduo possui uma vida social, e por isso exposto aos mais variados discursos que se reproduzem através de sua linguagem. O catolicismo, uma sociedade de discurso reconhecida, sai do familiar, do conhecido, para fazer parte de uma leitura que visa não denegrir suas normas, mas sim nos colocar diante de um imaginário bem próximo de nosso cotidiano, e o lugar para essas observações não poderia ser outro senão o discurso.

 

BIBLIOGRAFIA

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no College de France pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Trad. de Laura Fraga de Almeida Sampaio. 4 ed. São Paulo : Loyola, 1998.

NOVAES, Mariluci. Os dizeres nas esquizofrenias : uma cartola sem fundo. São Paulo : Escuta, 1996.

ORLANDI, Eni Pulcinelli. A linguagem e seu funcionamento : as formas do discurso. Campinas : Pontes, 1987.

------. Interpretação : autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis : Vozes, 1996.

------. Gestos de leitura : da história no discurso. Campinas : Unicamp, 1994.

PÊCHEUX, Michel. O discurso : estrutura ou acontecimento. Trad. por Eni Pulcinelli Orlandi. Campinas : Pontes, 1990.

TODOROV, Tzvetan . Os gêneros do discurso. Trad. por Elisa Angotti Kossovitch. São Paulo : Martins Fontes, 1980.