FILOLOGIA ROMÂNICA HOJE?
Evanildo Bechara (UERJ, ABF e ABL)
Não posso começar a minha comunicação de hoje sem um agradecimento especial pelo convite feito para participar deste IV Congresso Nacional de Filologia e Lingüística e, especialmente, desta mesa em que se encontram colegas da mais profunda amizade pessoal e intelectual.
Uma vez perguntaram a Gastão Paris, notável mestre francês, discípulo de Frederico Diez e integrante da equipe que favoreceu a introdução da Filologia Românica em França, ao lado de Augusto Brachet, o que ele, Paris, entendia por Filologia. E o mestre não titubeou, respondendo: Filologia é o que eu faço.
Realmente, fazia tudo o que competia, à época, ao campo da disciplina: foi lingüista ao escrever, por exemplo, a história do acento latino nas línguas românicas; foi gramático ao elaborar um esboço do sistema gramatical do francês antigo como introdução às suas antologias dessa fase histórica da língua de Racine; foi editor crítico ao preparar a monumental edição da Chanson de Saint Denis, que ainda hoje guarda seu valor de crítica textual; foi profundo investigador da história literária francesa ao compor sua erudita Histoire poétique de Charlemagne ou a excelente síntese La littérature française au moyen âge.
Numa carta de Ortega y Gasset a Ernesto Roberto Curtius, datada de 1938, dizia o filósofo que a tarefa do filólogo consiste - e só consiste - em entender o texto, e aduzia à sua declaração:
entender um texto quer dizer assenhorear-se, apoderar-se intelectualmente da realidade que esse texto é. É evidente que não teremos captado essa realidade simplesmente porque tenhamos entendido o que signifiquem lingüisticamente as palavras que o compõem, ainda quando esse entendimento seja lingüisticamente completo, isto é, ainda quando tenhamos chegado a entender completamente a idéia ou pensamento que essas palavras enunciam (...) A filologia tem, pois, se, de verdade, quer entender um texto, que entendê-lo como fazer (= Handlung) de um homem.
Não é sem razão que o mesmo Curtius, em artigo de 1944, deplorava a divisão da Romanística em ciência da linguagem e ciência da literatura como ruína da Filologia autêntica.
A resposta dada por Gastão Paris poderia ser também, alusiva ao que faziam, dada por um Leite de Vasconcelos, uma Carolina Michaëlis de Vasconcelos, um Epifânio Dias - em Portugal -, e, entre nós, por um Said Ali, um Padre Augusto Magne, um Sousa da Silveira, um Antenor Nascentes, um Serafim da Silva Neto. De modo que, como bem acentuou o professor Maximiano em sua comunicação, a Filologia dá condições a que o pesquisador possa fazer tudo isso.
Todavia, no ciclo universitário brasileiro, ocorre um problema fundamental: tem-se discutido - e, quase sempre, bem - a identidade nacional do país. Essa identidade nacional se deve estender à identidade cultural e, peça fundamental dessa identidade cultural, a identidade individual. Significa isto que a pessoa, o pesquisador, pode continuar fazendo aquilo que faz se o que faz o convence como critério metodológico e científico, independente das outras manifestações e tendências culturais que ocorrem dentro ou fora da sua universidade.
Em um país com pouca tradição cultural, como o nosso, vivemos constantemente atropelados pelas lições que vêm de fora, quase sempre em ondas sucessivas de novidades e pseudo novidades, forçando-nos a estar sempre antenados com o último ismo. Essas mudanças lamentavelmente estimulam a que muitos abandonem as aquisições e pesquisas que corretamente vinham fazendo as gerações que nos precederam, em troca de novidades às vezes mal assimiladas e piormente transmitidas. Isto se evidencia em alguns aspectos no campo da ciência da linguagem, ao lado de inovações que vieram aperfeiçoar métodos e aprofundar conceitos.
Podemos dizer que até os anos 70, contávamos no Brasil com uma geração de professores universitários e pesquisadores que, nas ciências da linguagem, desenvolviam tarefas de bom alcance internacional e nacional. Assim, no campo da Etimologia, além do Dicionário de Antenor Nascentes, que é um divisor de água na especialidade, contávamos com os estudos do Padre Augusto Magne, Pinheiro Domingues, Serafim da Silva Neto e, mais recentemente, Antônio Geraldo da Cunha. No domínio dos estudos históricos - história interna e externa do português - tínhamos as pesquisas de Ismael de Lima Coutinho, Mansur Guérios, Padre Magne, Serafim da Silva Neto, Silveira Bueno e, sobretudo, Manuel Said Ali, embora pertencente a uma geração anterior. Nos estudos gramaticais, brilhavam os nomes de Mário Barreto, Sousa da Silveira, Martinz de Aguiar, Mário Pereira de Sousa Lima, José Oiticica, Rocha Lima, Wilton Cardoso. Nos estudos medievalísticos e de versificação apareciam os trabalhos de Padre Magne, Serafim da Silva Neto, Celso Cunha. Na teoria da linguagem e filões adjacentes, Joaquim Mattoso Câmara Jr. e Sílvio Elia. No estudo das línguas indígenas e africanas, Mansur Guérios (com seu discípulo, felizmente ainda em plena atividade, Aryon Dall’Igna Rodrigues), Edson Carneiro, entre outros. Na Romanística, Padre Magne, Serafim da Silva Neto, Sílvio Elia, Theodoro Henrique Maurer Jr., Isaac Salum, Eduardo Pinheiro, Heinrich W. Bunse.
Praticamente, toda essa plêiade de investigadores não conta hoje com continuadores, porque a emergência de outras disciplinas - todas importantes - empanou esses veios de estudos e pesquisas, muitas vezes apaixonadamente críticos, consideradas ultrapassadas: análise do discurso, pragmática, lingüística cognitiva, gramática gerativa e transformacional, sociolingüística, psicolingüística, neurolingüística... E por último a língua falada - em detrimento da língua escrita - elevou-se ao galardão de praeceptrix linguisticae.
Todos esses domínios - os “velhos” e os novos - são dignos de atenção, e todos - cada um dentro do seu alcance e dos seus limites - carregam preciosas informações ao complexo fenômeno da linguagem.
De todas as disciplinas, talvez a maior injustiça recaia na gramática normativa, de caráter prescritivo, pelo muito que contribui para a orientação pedagógica de sala de aula, tendo à frente o professor de língua materna. Despreza-se a função deôntica da linguagem, com que os antigos gregos e romanos tiveram particular atenção e cuidado, no estabelecimento do trivium: gramática, dialética e retórica.
Também, por incompreensão danosa, se abandonaram as perspectivas históricas, em cujo estrago perdeu o amparo a Filologia Românica.
Assentada a poeira do turbilhão inovador - e principalmente porque os efetivos resultados de tantas novidades foram muito menores do que descobriu o manto diáfano da fantasia... -, a preocupação com a investigação da historiografia lingüística vem aos poucos e lentamente mostrando que os antigos tinham seus méritos, e o que faziam não constituía desdouro à exatidão científica. E, assim, tais estudos e pesquisas precisavam ser retomados pelas gerações universitárias mais jovens.
Aliás, a bem da verdade, cumpre que se diga que muitos países não desprezaram a contribuição dos antigos: foram mais inteligentes porque, não desdenhando os estudos históricos, receberam as novas disciplinas e as souberam praticar sem exclusividade.
Em se tratando de língua portuguesa, há muito o que ainda investigar, quer no domínio do seu campo particular, quer no domínio da Filologia Românica, com que ela se aproxima e se individua de suas irmãs neolatinas. Há sim, portanto, um voto de lucidez e de esperança na resposta à pergunta que serviu de assunto a estas considerações: Filologia Românica hoje? Sim, Filologia Românica hoje.