ASPECTOS
DO FEMININO NO CANTAR DOS TROVADORES:
DAS CANTIGAS DE MULHER CODAXIANAS
AOS LOUVORES AFONSINOS A SANTA MARIA
Maria do Amparo Tavares Maleval (UERJ)
Diversos são os olhares dos trovadores
medievais sobre a mulher. Nos limites que se impõem a uma apresentação
em Congresso, limitar-nos-emos a falar sobre as perspectivas, que sobre
a matéria incidem, observáveis nos gêneros das cantigas
galego-portuguesas recentemente gravadas pelo Conjunto de Música
Antiga da UFF, intitulado Cânticos de amor e louvor (1997). Recuando
para o século XIII, esse meritório grupo de artistas revive
agora o esplendor do nosso trovadorismo ancestral, através de cantigas
de amigo atribuídas a Martin Codax - jogral ou segrel provavelmente
galego, ativo nos meados ou no terceiro quartel do citado século
-, e de cantigas de louvor a Santa Maria de Afonso X - rei castelhano de
1252 a 1284, não apenas fecundo trovador, mas mecenas de uma brilhante
corte de sábios, intelectuais e artistas diversos, na qual elaborou,
ou dirigiu a elaboração, de obras trovadorescas, historiográficas,
jurídicas, e traduções e adaptações
de obras científicas arábicas.
A língua literária de prestígio,
na qual se expressavam todos os trovadores da Península Ibérica,
e mesmo outros de origem diversa, era então o galego-português.
Além do mais, a voga da peregrinatio pelo Caminho de Santiago, a
mais concorrida do Ocidente à época, permitia a interação
entre os trovadores de Provença, mestres na arte de trovar sobre
a “fin’amors”, e a tradição poética autóctone,
a que certamente se filiavam os peculiares “cantos de mulher”, denominados
de amigo.
A canção de amor occitânica,
que teve o seu apogeu no século XII, para no século seguinte
dar lugar às canções marianas, por motivo da perseguição
sofrida pelos trovadores a par dos cátaros, viu-se continuada no
Trovadorismo galego-português pela cantiga de amor, na qual, através
da linguagem feudo-vassálica, se prestava culto à dame sans
merci, que pela sua impiedade, pela sua indiferença provocava no
amador/ servidor/trovador a coita amorosa, principal motivo dos cantares
galego-portugueses, que raramente apontam para a efetivação
da recompensa por parte da senhor. De resto, a dama cultuada alcançara,
na Península Ibérica, um grau de abstração
que a aproximava da Virgem incorpórea, através da qual a
Igreja preconizava a anulação do corpo e dos seus instintos.
Daí muitas serem as cantigas
de loor a Santa Maria, feitas por Alfonso X ou a seu mando, que guardam
um estreitíssimo parentesco com ditas canções profanas.
Entretanto, não faltam as que dotam Maria não apenas de um
corpo, mas de sentimentos humanos, inclusive relacionados aos pecados capitais,
como o ciúme, a vingança e a ira. Nem podemos nos esquecer
que o culto à Virgem, parcamente mencionada na Bíblia, pode
ser interpretado como uma canalização dos cultos pré-cristãos
a poderosas divindades femininas que se estendiam por toda a Europa.
Mas esse corpo, combatido pela Igreja e ridicularizado
nas cantigas d’escarnho e de maldizer - outro dos fecundos gêneros
do Trovadorismo ibérico -, seria louvado e, mesmo, sacralizado nas
cantigas de amigo, as mais genuinamente galego-portuguesas. Daí
a atenção maior que devem merecer nas nossas reflexões.
Já em estudo anterior (MALEVAL, 1992)
lembrávamos algumas das principais características de dito
gênero. A começar da primeira diferença entre as cantigas
de amigo e os demais espécimes explorados pelos trovadores galego-portugueses:
segundo preconiza a Arte poética nos fragmentos que dela restaram
no Cancioneiro de Colocci-Brancuti, hoje da Biblioteca Nacional de Lisboa,
reside no fato de ser feminina a voz primeira que nelas se enuncia. Embora
nem sempre isso ocorra, no entanto caracterizam-se via de regra por um
particular feminismo, principalmente manifesto nas paralelísticas,
que nos evocam as suas raízes celtiberas. Mas não é
essa a única marca que as distancia das cantigas de amor masculinas.
Basta observarmos os caracterizadores das mesmas - amigo/amor - para percebermos
que as primeiras não se pautam pelas regras idealizadoras do amor
cortês: antes, movem-se no âmbito do desejo natural da jovem
pelo namorado, num espaço tantas vezes comprobatório da união
entre a natureza, a magia e a religião, marca de substratos pré-cristãos
que se perpetuavam na Península Ibérica.
Uma das questões que têm sido
revistas pelos especialistas concerne à inferioridade de tais cantigas
em relação às de amor, idéia que decorria principalmente
da preconceituosa oposição popular X culta com que se costumava
diferenciá-las, a partir dos próprios trovadores. Hoje, notadamente
as paralelísticas vêm sendo reabilitadas do desprezo de que
foram vitimadas pelos enaltecedores da maestria occitânica. E vêm
sendo objeto de altos estudos, como, para só citarmos alguns exemplos,
os de Roman Jakobson (1976), que, a partir de minuciosa análise
da “textura poética” de uma cantiga de Martin Codax, qualifica-as
como “magníficas criações” e verdadeiras “jóias
poéticas”; de Ria Lemaire (1987), discípula de Paul Zumthor,
que nelas releva sobretudo o papel ativo da mulher na busca de solução
para os seus anseios erótico-sentimentais; e de Pilar Lorenzo Gradín
(1990), que demarca-lhes o privilegiado lugar na tradição
européia das cantigas de mesmo “código”.
Da ancianidade dos cantos de mulher, lembra
Pilar Lorenzo Gradín (1990), com base em A. Viscardi e Menéndez
Pidal, dão provas as muitas referências que “entre los siglos
VI y IX aparecem dispersas en varios concilios y actas eclesiásticas”,
onde são “reprobadas por su carácter pagano, erótico
y obsceno. Son las cantica diabolica, amatoria et turpia, obscina et luxuriosa
cantica, interpretada por choreis femineis” (LORENZO GRADÍN, 1990,
p. 8). Além disso, servem para marcar-lhes a antiguidade certos
aspectos formais nelas muito explorados, como o paralelismo, e recursos
mnemônicos como o refrão e o leixa-pren, que indiciam vincularem-se
a uma longa tradição oral, anterior ao apogeu occitânico.
Também arcaica é a sua música: desde que divulgadas
parcialmente as notações musicais das cantigas de Martin
Codax, já em 1914 Oviedo y Arce a caracterizava como “melodia simples,
de gosto delicado, de cor e sabor indígenas, evocadoras do céltico
alálá”. Este, conforme anota Manuel Ferreira (1986), questionando
as conclusões de Oviedo y Arce e Santiago Tafall Abad a propósito,
era um “gênero musical arcaico próprio da Galiza”, o qual,
embora de forma não exclusiva, influenciara a composição
de algumas cantigas (FERREIRA, 1986, p. 91-93).
Os documentos escritos mais antigos de tais
espécimes na Europa são poemas profanos, ou parte deles,
mediolatinos e moçárabes. Dentre os primeiros, que via de
regra focalizam o tema da invitatio ao amigo e da desolação
da jovem pela sua ausência, figuram os incluídos nos Carmina
Cantabrigensia, oriundos da Cambridge do século X e manuscritos
no século XI em Canterbury; o diálogo entre namorados que
se encontra nos Carmina Rivipullensia, copiados no Mosteiro de Ripoll,
no século XII; alguns exemplares dos Carmina Burana, cantos dos
goliardos copiados por beneditinos da abadia bávara de Benediktbeurer
no século XII; e um curioso poema de fins do século X, proveniente
do norte da Itália e copiado no Mosteiro de Fleury-sur-Loire no
princípio do século XI, que retrata o temor e, ao mesmo tempo,
a saudade da jovem diante do espectro do falecido amante. Dentre os moçárabes,
figuram nas harjat ou carjas, em árabe vulgar ou dialeto moçárabe,
que são estrofes inseridas, para delimitar-lhes o início
e o fim estrófico, nas mouachahat, poemas em árabe clássico
que remontam à primeira metade do século XI e finais do século
XII, datando o exemplo mais antigo de 1042. Antecedem, portanto, ao Poema
de mio Cid e às canções de Guilherme IX da Aquitânia
- o que levou alguns romanistas a abraçarem a tese árabo-andaluza
para a explicação da origem da lírica trovadoresca.
Mas não sem contestação, por parte dos defensores
da tese médio-latinista, ou dos que, como Scudieri-Rugieri (1962),
consideram haver a poesia andaluza sofrido a influência de remota
tradição lírica galego-portuguesa, disseminada através
dos escravos galegos que para a Andaluzia foram levados. O certo é
que apresentam em relação às cantigas de amigo muitas
coincidências estilísticas (apóstrofes, por exemplo)
e temáticas (o lamento feminino pela ausência do namorado,
as confidentes...). No entanto, a sua ambientação urbana
e o seu erotismo direto, concretizado em comparantes como partes do corpo
e frutos, se contrapõe ao erotismo sutil que através de uma
simbólica cosmogônica se instaura nos cantos de mulher galego-portugueses.
Cânticos femininos se fizeram presentes
ainda, embora minoritariamente, em textos occitânicos e occitânico-catalãs,
bem como em textos do norte da frança dos séculos XII-XIV,
italianos dos séculos XIII-XV e castelhanos dos séculos XV-XVI.
Todavia, apesar de não terem sido exclusivos do (nor)oeste da Península
Ibérica, em nenhuma outra região alcançariam a originalidade
e a fecundidade aí encontrável.
O mais antigo espécime galego-português
é, muito possivelmente, a cantiga “Ai eu, coitada, como vivo em
gram cuidado”, que Carolina Michaëlis de Vasconcelos (1990, p. 593-595)
atribuiu a D. Sancho I, rei de Portugal entre 1185 e 1211. Não discutiremos
dita atribuição, e cremos ser importante frisar que tanto
esta, quanto as demais, num total próximo de 500 cantigas de amigo,
se encontram em documentos apógrafos italianos dos primórdios
do século XVI: o Cancioneiro Colocci-Brancuti, hoje pertença
da Biblioteca Nacional de Lisboa, e o Cancioneiro da Vaticana. A sua localização
espácio-temporal é facilitada pela Távola Colocciana,
índice de autores elaborado pelo humanista italiano Angelo Colocci,
colecionador que deu nome ao mais completo dos cancioneiros, acima citado.
Apenas no Pergaminho Vindel, hoje da Pierpont Morgan Library de N. York,
se encontram as sete cantigas de amigo manuscritas, de Martin Codax, seis
delas acompanhadas das respectivas notações musicais, e cuja
transcrição remontaria a fins do século XIII, inícios
do XIV.
Observando-se as suas características
principais, há que se ter em conta, primeiramente, e como já
foi dito, que é feminina a voz que as enuncia, sendo a sua protagonista,
além do mais, solteira, como indicam os termos pelos quais é
chamada: amiga, meninha, moça, pastor, fremosa, fremosinha, dona
virgo etc. O seu objeto é o amigo ou namorado, ausente e desejado
pela jovem. E apresentam ainda outros elementos narrativos, como amigas/irmanas
e madres, que funcionam como adjuvantes-confidentes, enquadrando-se
em tal função, e ainda como oráculos, Deus e os elementos
da natureza, como os cervos do monte, as flores do verde pino as ondas
do mar de Vigo etc. As mães aparecem por vezes como oponentes à
concretização da entrega amorosa pela qual anseia a fremosinha,
não fora ela a representande do poder / dever familiar, excluída
que é de tal universo a figura paterna. O rei, através do
serviço militar a que obriga os jovens, é o causador da separação
dos enamorados, e, por conseguinte, da dor de que se lamenta a jovem.
Como marca de originalidade das cantigas de
amigo, há que se ressaltar a representação dos elementos
da natureza em que se (con)fundem o significado literal e o simbólico,
principalmente para vincularem o erotismo que a partir deles se insinua.
Distanciam-se, dessa foram, da natureza estereotipada do exórdio
primaveril da canção provençal, por representarem,
antes do mais, a natureza mágica, que congrega em si a religião
e a sexualidade. Para só lembrarmos um exemplo, tal se percebe nas
cantigas de fonte de Pero Meogo, onde o tardar da jovem na fonte é
numa delas justificado por terem sido as águas “turvadas” pelo cervo
do monte, símbolo que é decodificado pela mãe, a qual
denuncia estar a filha a “mentir por amigo”, desvelando-se a consumação
do ato amoroso, uma vez que a fonte era símbolo da fecundidade feminina,
e o cervo, da virilidade masculina (AZEVEDO FILHO, 1995, p.86-92).
A ambientação que a partir das
ermidas, fontes e mar, lugares de encontro dos enamorados nelas tão
recorrentes, se instaura, tem levado ao estabelecimento (desnecessário)
de subgêneros para tais cantares, a saber: cantigas de romaria, marinhas,
barcarolas... Estas, no entanto, se distanciam dos modelos estrangeiros
de ditas espécies, o mesmo ocorrendo com relação a
albas e pastorelas.
No tocante à forma, embora
hajam entre elas até mesmo cantigas de maestria, valeria ressaltar
o paralelismo enquanto seu meio de expressão mais característico
e que, conforme já demonstrado por Ria Lemaire (1987), veicula os
conteúdos mais reveladores do papel feminino ativo dos primórdios,
e que se vai tornando passivo à medida em que se aproximam os poemas
dos modelos franceses. Consistia dito paralelismo na repetição
de palavras e/ou variações sintático/semântico/fonológicas,
via de regra observável em cantigas de 6 a 8 estrofes, que na verdade
se reduzem à metade, se levada em conta a unidade de sentido de
cada par de estrofes. O refrão e o leixa-pren eram aí recursos
freqüentes, constituído esse último a retomada do verso
final da cobla anterior para início de novo talho. Por seu caráter
mnemônico, indiciam o caráter oral de tais composições.
É curioso observar, o que é
facilitado pela reunião dos seus espécimes feita por José
Joaquim Nunes (1928, 1973), que, dentre as que mais finamente dão
conta do universo simbólico que remete à cosmogonia dos substratos
autóctones, e onde se marca de forma inconfundível o papel
da mulher na sedução amorosa e nos processos iniciáticos
de uma “metafísica” da sensualidade, são quase que invariavelmente
galegos, ou presumivelmente galegos, os seus autores ou recolhedores da
tradição oral. Dentre eles destacaríamos, a título
de exemplo, Meendinho - oriundo talvez de Vigo, cujo nome aparece ligado
à antológica “Sedia m’eu na ermida de San Simion...”, que
tão excelentemente ilustra o sincretismo religioso de então;
Pero Meogo, que Carolina Michaëlis de Vasconcelos identificou como
sendo um notário compostelano, e que imortalizara, de forma magnífica,
a “fontana fria” e os “cervos do monte”; Airas Nunes, clérigo
compostelano de “Bailemos nós já todas três, ai amigas...”,
bailia também recolhida da tradição por João
Zorro; Paio Gomes Charinho, almirante pontevedrense de “as flores do meu
amigo...”, e Martin Codax, jogral que eternizara, para todo o sempre, as
oraculares, excitadoras e ritualísticas “ondas do mar de Vigo”.
Deste nos ocuparemos a seguir, por terem sido as suas cantigas de amigo,
juntamente com algumas cantigas de loor à Virgem, recolhidas no
CD que mencionamos.
Como dissemos anteriormente, as cantigas de
Martin Codax são extremamente importantes, por serem as únicas
de caráter profano da época cujas notações
musicais permaneceram praticamente intactas no chamado Pergaminho Vindel,
descoberto em 1914. Lembramos, a propósito, que o chamado Pergaminho
Sharrer, encontrado na Torre do Tombo em 1990 pelo pesquisador que o denomina,
Harvey Sharrer, contendo sete cantigas de amor de D. Dinis, encontra-se
bastante danificado e incompleto.
Voltando às composições
codaxianas, verifica-se, no citado pergaminho, que a pauta só não
acompanha uma delas, Eno sagrado, en Vigo. Aí, aliás, afastando-se
dos postulados da Arte de trovar já mencionada, um narrador fala
sobre o bailado de uma virgem numa festa religiosa, situando-a na localidade
galega de Vigo. Nas seis cantigas restantes, vemos delinear-se a história
de um namoro, através da voz da sua protagonista, que ora se dirige
às ondas do mar (Ai ondas, que eu vin veer, Ondas do mar de Vigo),
ou a Deus (Ai Deus, se sab’ora), expressando o seu anseio pela falta de
notícias do amigo (namorado), ora à mãe (Mandad’ei
comigo), à irmã (Mia irmana fremosa) ou às amigas
(Quantas sabedes amar), falando dos seus planos para o reencontro.
Tal amor se concretiza carnalmente, segundo os indícios de alguns
versos, sobretudo de refrãos, ou das sugestões imagéticas
da poesia - do banho de amor nas ondas simbolizadoras da libido despertada
à sagração do corpo no bailado, ao redor de um templo
cristão, num claro sincretismo com ritos pré-cristãos
sacralizadores da sexualidade, propiciadora da vida e, portanto, da continuidade
do grupo, constantemente ameaçado por pestes, fomes e guerras. E
ainda, evidenciam o hibridismo das formas artísticas embrionárias
da época, onde a poesia lírica se une à narrativa
e a recursos mais próprios da arte dramática, como o discurso
direto, associando-se também à música, ao canto e
à dança.
Quanto às cantigas de Santa Maria,
que em seus mais de 400 espécimes documentados se dividem em canções
de louvor e narrativas de milagres, também corroboram tal hibridismo.
Além de constituírem um dos mais importantes testemunhos
da música monofônica medieval, também o são
da poesia e do canto religiosos, bem como da pintura, uma vez que os manuscritos
são profusamente ilustrados por preciosas miniaturas, que não
apenas se prestam à descrição de músicos, cantores
e instrumentos da época, como à narrativa dos milagres, a
modo das histórias em quadrinhos de hoje.
As composições marianas que
aparecem no CD, seguindo a ordem em que aí se apresentam,
contém: a primeira delas, um Prólogo, que fala da Arte Poética
a ser seguida para o trobar, e estabelece a matéria das cantigas
- o louvor e os milagres -, promovendo a substituição do
canto/culto à mulher das cantigas de amor pelo da Virgem, portanto,
a canalização do amor profano para o divino; a segunda Des
oge mais quer eu trobar, faz o panegírico da Senhora honrada, bendita
e sagrada, revivendo a sua história, desde a saudação
pelo Anjo Gabriel, o nascimento de Jesus em Belém, a visitação/adoração
dos Reis Magos, as novas de Madalena sobre a Ressurreição
do Filho, até o alçamento de Maria aos Céus, onde
advoga pelos fiéis; a terceira, Virga de Jesse, fala dos seus padecimentos
pelos pecadores, enfatizando a sua função de intercessora
junto ao Filho e as lutas contra o demo, como guarda e amparo dos humildes,
concluíndo-se pela profissão de fé do trovador; a
quarta, Rosa das rosas, louva a beleza, alegria, piedade e caridade protetora
da Virgem, digna de ser amada e superior à dame sans merci do amor
cortês, desprezando o trovador por ela todos os outros amores; a
quinta, Santa Maria, / strela do dia, reitera a sua função
de guia para a luz / para Deus, mostrando-a como a companhia mais desejável
para a alma em direção ao Paraíso; a sexta, Entre
Av’ e Eva, enfatiza a diferença radical entre Eva, a causa da perdição
do homem, da sua expulsão do Paraíso, e Ave (Maria), a sua
salvação, a sua recondução até ele.
Enfim, as cantigas selecionadas para formarem
dito CD mostram, na perspectiva textual/contextual, os polos em que se
movia o homem da época no tocante ao feminino, relacionado à
religiosidade e ao amor. De um lado, a naturalidade das jovens sequiosas
de amor, que transformam a ermida em lugar de encontro - herança
de cultos pré-cristãos dedicados à fecundidade. De
outro, a canalização do amor terreno para o divino, promovido
pela Igreja, que coloca Maria no centro da devoção, apesar
dos silêncios da Bíblia e do patriarcalismo judaico-romano
que lhe serviu de base, indiciando mais uma vez a força dos substratos
culturais atuantes na Europa medieval, povoados por deusas poderosas.
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