A
LECTIO DIVINA COMO PROCESSO ARGUMENTATIVO
NO TRATADO MEDIEVO CASTELO PERIGOSO
João Antonio de Santana Neto (UCSal / UNEB)
0 INTRODUÇÃO
Para que se possa avaliar bem a mensagem do Castelo Perigoso,
é de todo recomendável um breve exame do contexto histórico
da época em que surge a obra, considerando os acontecimentos capazes
de provocar o surgimento de um texto de natureza tão complexa como
o Castelo Perigoso. Tal complexidade, calcula-se, só pode ser mais
abrangentemente vista, se se levar em conta a origem e o destino de seu
texto.
A Idade Média não significa somente o estabelecimento
da Europa em suas bases romana e cristã, mas também a geração
do mundo moderno, pois diversos proto-renascimentos ocorreram no período
medievo e observa-se que os homens geniais da Renascença formaram-se
todos na chamada Baixa Idade Média. Atualmente não
há quem não reconheça que as matrizes do Renascimento
saíram todas da Idade Média. Ora, dentro desses parâmetros
é que se percebe a revivescência dos sentimentos religiosos
do século XV.
A concepção da Idade Média como a Idade
das Trevas nasceu da hostilidade contra a religião católica,
pois nesse período o cristianismo foi todo poderoso, e essa prevenção
e tal hostilidade são expressas claramente por Voltaire no seu Essai
sur les Moeurs “que com um ar de Resumo de história universal é
antes de tudo um requisitório contra a Igreja”.
É consabido que a Idade Média cobre um período
histórico bastante longo, pois suas origens datam do final do Império
Romano (começo do século V), estendendo-se até o século
XV, com a instalação da Renascença Italiana, preparada
pela Idade Média. Só no século XVIII esses limites
foram aceitos e, então, irradiados da França para toda a
Europa. De qualquer maneira, a época que diretamente interessa é
a Baixa Idade Média ou Idade Média Tardia ou Última
Idade Média, em que se situa o ambiente propício ao aparecimento
de obras da natureza do Castelo Perigoso. Podem-se agora sobrepor a esse
quadro histórico traços pertinentes à descrição
da produção cultural escrita , a que se designará,
no século XVIII, Literatura.
A busca do homem pela transcendência ao divino, nesse
período, pode ser representada pelo Te Deum; pela lírica
cristã do Ocidente (hinos da Igreja), introduzidos por Ambrósio;
pelas cartas de monges e frades; pelas Cantigas de Santa Maria, de Afonso
X; pelo teatro religioso (dos Milagres e Mistérios), entre tantas
obras.
Dentro desse quadro, há um espaço para obras místicas
como o Castelo Perigoso. Trata-se de um espaço ocupado por um estilo
de vida contemplativa, e fazem-se necessários alguns esclarecimentos
mais específicos para a compreensão da origem e do destino
dessa obra.
Os primeiros monges foram anacoretas que, ouvindo o chamamento
divino, viveram na solidão, longe do mundo. Se em seguida a instituição
monástica evoluiu para dar nascimento ao tipo beneditino, o gosto
pela vida eremítica, implantado no ocidente, representado pela figura
do anacoreta, não desapareceu durante os primeiros séculos
da Idade Média. Houve mesmo um amplo movimento em busca da solidão,
na esperança de ganhar o céu expondo o corpo aos tormentos
do frio, do calor, do jejum. São Romualdo, contemporâneo de
São Nilo (910 - 1005), reuniu em uma ordem, a dos Camaldulenses,
os eremitas de Camaldoli e os cenobitas de Val de Castro. Na metade do
século XI, São Pedro Damião considerou a vida eremítica
como a única forma possível de renúncia total ao século
que perseguia o monarquismo. A ordem cluniacense, apesar do seu imenso
prestígio, era incapaz de satisfazer as almas desejosas de penitência
e de mortificação. O trabalho intelectual não podia
acomodar-se às exigências de um ascetismo que almejava alcançar
os limites mais extremos.
A França, durante os últimos anos do século
XI, foi arrebatada por uma corrente eremítica, que encontrou um
terreno particularmente propício. Em todas as regiões se
produziu um movimento de construção de ermidas que acabou,
em certos pontos, com a fundação de monastérios, nos
quais o trabalho intelectual foi substituído pelo trabalho manual,
o qual “cansa o corpo, e por diversas mortificações que acabam
por domá-lo”. Essa era a crença em voga na época.
O trabalho de Albert Pauphilet (1968) que reconheceu no texto
de La Queste del Saint Graal um tratado de espiritualidade cisterciense
tornou-se clássico. A obra de Pauphilet faz uma análise sumária
da Queste como sendo o Evangelho de Galaaz. A seguir, à pergunta
que se faz: “o que é a busca do Graal?” responde com a descrição
do quadro da vida cristã: o dogma, a política da Igreja,
a moral, vícios e virtudes, o combate moral. Analisa em seqüência
o espírito monástico, Cister, Cister e a busca do Graal,
dentro dessa perspectiva novamente o dogma, a política da Igreja,
depois a pregação, o ascetismo e o misticismo guerreiro.
Traça um perfil das ordens militares e considera a Queste o “romance
de Cister”, apontando o que chama de cenas cirtercienses da Queste, chegando
a considerar Lancelote e o noviciado cisterciense.
A importância que a vida ermitã tinha pode ser atestada
na produção cultural da Idade Média através
do papel que essas pessoas desempenhavam em textos como: Perceval ou le
roman du Graal, La mort le roi Artur, Amadis de Gaula, A Demanda do Santo
Graal, o que aliás Pauphilet leva às últimas conseqüências
como vê-se com Lancelote e o noviciado cisterciense. Nessas obras,
cabia aos ermitães, aos homens bons ou aos homens probos aconselharem
os cavaleiros, desvendarem os sonhos, visto que para realizarem as grandes
aventuras há condições que são a ausência
de pecado e o não envolvimento com os sabores do mundo.
A busca do isolamento e da contemplação levou à
criação de diversas ordens monásticas, entre elas
ressaltando-se, nesse trabalho, a Ordem de Cartuxa (à qual pertenceu
Frère Robert) e a Ordem de Cister (à qual pertencia o monastério
de Alcobaça, responsável pela versão portuguesa).
São Bruno, religioso que viveu muito tempo na França,
nasceu em Colônia por volta de 1030 e morreu em Serra de São
Bruno, perto de Catanzaro, Itália, a 06 de outubro de 1101.
Por suas origens e seus costumes que se consolidaram em suas regras, usualmente
denominadas Consuetudines e adotadas oficialmente por todas as cartuxas
em 1127, a Ordem de São Bruno (Cartuxa) é rigorosa
e humilde.
Os cartuxos são uma mescla de cenobitas e eremitas. Eremiticamente
vivem em celas individuais e independentes, com seu lugar para estudo e
oração, seu local de trabalho, seu depósito de carvão
e lenha e um pouco de terra para cultivo. Cenobiticamente reúnem-se
no coro para rezar longa e solenemente as matinas e laudes à meia-noite,
para a missa conventual e para as vésperas; as demais orações
fazem em particular. Juntam-se também à mesa em dias festivos,
ainda que em silêncio, e em recreação comum nos dias
que permite a Regra. Os irmãos leigos vivem em comunidade, sob a
direção do padre procurador.
Sua liturgia sensível, austera, despojada de elementos
decorativos e musicais, data do século XIII e é particularmente
original nas matinas e nas vésperas. O cartuxo reza também
o Ofício da Virgem diariamente e o de defuntos, à exceção
de certas festividades. Por ser a vida do cartuxo muito dura, não
se admite nela quem não houver completado os vinte anos, idade militar,
conforme dizem as Consuetudines, pois, para lutar nesses campos de Deus
contra os inimigos da alma, primeiro deve-se provar a coragem. Nunca provam
carne; vivem a pão e água, mais ou menos como os cistercienses.
De todas as Ordens medievais é a única que nunca necessitou
de reforma: Carthusia nunquam reformata, quia nunquam deformata .
É nesse ambiente que se vai encontrar Frère Robert,
monge cartuxo, que escreveu o tratado Castelo Perigoso para sua prima Soeur
Rose, pertencente à Ordem de Fontevrault. Essa ordem, destinada
às mulheres, também é eremítica e foi fundada
por Roberto de Arbrissel. Teve êxito e recrutou numerosos seguidores
entre os dois sexos. As jovens mulheres, sobretudo, mostravam-se desejosas
de segui-lo e ávidas de contrair as núpcias espirituais com
Cristo, as quais ele convidava. Tudo isso acabou, em 1101, com a fundação
do monastério feminino de Fontevrault, aprovado pela Santa Sé
em 1105. A Ordem inspirou-se na Regra Beneditina. Mais de uma centena de
mosteiros foram instalados na França, muitos na Espanha e três
na Inglaterra. Sua clientela era principalmente constituída por
filhas da aristocracia. Na própria Abadia de Fontevrault, que deu
nome à Ordem, existem oito túmulos reais de Plantagenetas
ingleses, incluindo o de Henrique II (1133-1189); o de sua esposa, Leonor
de Aquitânia (1122-1204); o de seu filho Ricardo I Coração
de Leão (1157- 1199) e o de sua nora Isabel de Angoulême,
esposa de João Sem Terra. Infelizmente não se pode
precisar quando e em qual viveu Soeur Rose.
A Ordem de Cister nasceu no convento de Cîteaux (ant. Cistercium,
França), em 1098, e teve como fundador o monge beneditino São
Roberto de Molesme (1027-1111). A decadência e o mundanismo de Cluny
provocaram um movimento de regresso às origens, a partir do Mosteiro
de Cister, na Borgonha. O movimento de Cister é a aplicação
mais rigorosa da Regra de São Bento, contra a sua deformação
por Cluny. Os primeiros cistercienses estabeleceram-se longe das povoações,
em lugares não habitados e não cultivados, vivendo exclusivamente
do trabalho de suas mãos. As abadias cistercienses eram eficazes
centros de exploração agrícola devido à obrigação
do trabalho manual e à necessidade de cada mosteiro viver com recursos
econômicos próprios.
Uma das mais importantes abadias cistercienses foi a fundada
por São Bernardo em Claraval (Clairvaux), em 1115. São Bernardo
estabeleceu relações com o quinto Prior Geral da Grande Cartuxa,
Guígues, propiciando o início da permuta de manuscritos entre
as duas ordens. Os cistercienses portugueses e galegos procediam, por filiação,
do ramo de Claraval.
O Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, fundado em 1153,
teve a sua doação feita aos monges franceses de Claraval
e a ocupação do território, segundo Saraiva (1983:
268), parece ser a motivação principal do rei, visto
que era quase deserto e ainda ameaçado de ataques muçulmanos.
Afonso Henriques fez a doação a São Bernardo, seus
irmãos (em religião) e sucessores, com a condição
de que, se o abandonassem sem autorização real, nunca mais
o recuperariam. Nos últimos tempos de Sancho I, o Abade de
Alcobaça é, juntamente com o Prior de Santa Cruz, o Arcebispo
de Braga e o Bispo de Coimbra, um dos eclesiásticos de que se rodeia
o rei enfermo. E a terceira geração dos reis transferiu para
Alcobaça o panteão real. Da biblioteca da abadia, que se
tornou com o correr dos séculos a maior de Portugal na Idade Média,
provém toda a tradição manuscrita portuguesa do Castelo
Perigoso - mss. 199 e 214, editada por Santana Neto (1997).
No século XIII, Alcobaça desliga-se de Cister,
pedindo dispensa de ser visitada pelos delegados e deixando de participar
nas Congregações Gerais da Ordem. Tal fato foi facilitado
pelo Grande Cisma do Ocidente, quando o rei de Portugal e Cister seguiram
papas diferentes. No reinado de D. Fernando, os abades deixaram de ser
eleitos pelos monges e passaram a ser nomeados pelos reis.
A conhecida polêmica encabeçada pelos cistercienses
e cartuxos, sobretudo no século XII, contra o luxo e o emprego de
meios figurativos na decoração das igrejas (seda, ouro, prata,
vitrais coloridos, esculturas, pinturas, tapetes) tinha como objetivo concentrar
os fiés na piedade e na prece. São Bernardo, Alexandre Neckman,
Hugo de Fouilloi se lançaram com veemência contra essas superfluitates.
Entretanto, em todas estas condenações a beleza e a graça
dos ornamentos nunca é negada; são condenadas justamente
por reconhecerem o seu atrativo irresistível, inconciliável
com as exigências do lugar sagrado.
A Idade Média mística, ao desconfiar da beleza
exterior, refugia-se na contemplação das Escrituras ou no
gozo dos ritmos interiores da alma em estado de graça. Fala-se,
a esse propósito, de uma estética socrática dos cistercienses,
fundada na contemplação da beleza da alma.
São Bernardo explica a que os monges renunciaram abandonando
o mundo. Lançando-se contra os templos vastos e suntuosos, São
Bernardo fornece uma imagem da igreja de Cluny. O fato estético
não é posto em discussão; é criticado, ao contrário,
o seu emprego em fins extraculturais, com propósitos inconfessáveis
de lucro, uma vez que tanta riqueza teria sido disposta para atrair outras
e ajudar o afluxo de donativos às igrejas.
Os rigoristas polemizavam sobre algo em que percebem todo o fascínio,
positivo e perigoso. Naturalmente a contraposição entre beleza
exterior e beleza interior é tema na época. Entretanto, a
fugacidade da beleza terrena é sempre percebida com um sentimento
de melancolia. Frente à perceptível beleza exterior, a única
garantia é dada pela beleza interior que não morre, e, ao
recorrer a essa beleza, a Idade Média opera, no fundo, uma recuperação
do valor estético frente à morte.
Contudo, no auge da polêmica rigorista, apareceu também
o sentimento da beleza humana e da natureza, em uma mística que
superou o momento do ascetismo disciplinar para resolver-se em mística
da inteligência e do amor serenado. Na mística dos vitorinos,
a beleza natural aparece reconquistada em toda a sua positividade. A contemplação
intuitiva, vista por Hugo de São Vítor, era uma característica
da inteligência que não se exercitava apenas no momento especificamente
místico, mas também podia voltar-se para o mundo do sensível;
logo a contemplação era um perspicax et liber animi contuitus
in res perspiciendas .
O homem medieval vive em um mundo povoado de significados, referências,
supra-sentidos, manifestações de Deus nas coisas, em uma
natureza ligada a uma linguagem heráldica. Trata-se de uma disposição
para prolongar a atividade mitopoética do homem clássico,
através da elaboração de novas figuras e referências
em harmonia com o ethos cristão. É uma nova sensibilidade
ao sobrenatural, ao sentimento do maravilhoso que a tardia antigüidade
clássica já havia perdido.
Essa tendência mítica pode ser talvez explicada
se se pensar no simbolismo medieval como um paralelo popular e fabular
da fuga do real. Na versão simbólica, a natureza, até
nos seus aspectos mais temíveis, torna-se o alfabeto com o qual
o criador fala da ordem do mundo, dos bens sobrenaturais, dos passos a
serem dados para a orientação ordenada no mundo, objetivando
adquirir prêmios celestiais.
Paralelamente, processa-se a elaboração de um pensamento
cristão que procura dar conta da positividade do ciclo terreno como
itinerário para o céu. Contudo, a fabulação
simbólica serve para recuperar aquela realidade que a doutrina nem
sempre consegue aceitar e fixa, através dos signos compreensíveis,
aquelas mesmas verdades doutrinais que podem resultar difíceis em
sua elaboração culta.
Desde o início, o cristianismo educa para a tradução
simbólica dos princípios de fé. Fizera-o por motivos
prudenciais, escondendo, por exemplo, a figura do Salvador sob a aparência
do peixe, para fugir, através da criptografia, aos riscos de perseguição;
no entanto, apresentava uma possibilidade imaginativa e didascálica
que devia resultar congenial ao homem medieval.
Se é tão fácil para os simples converter
em imagens as verdades que conseguem compreender, aos poucos os próprios
elaboradores da doutrina, os teólogos, os mestres traduzem
em imagens as noções que o homem comum não aferiria,
caso tivessem mantido o rigor da formulação teológica.
Tal pensamento desencadeia uma grande campanha que visa a educar os simples
pelo deleite da figura e da alegoria, através da pintura quae est
laicorum litteratura . A decisão foi tomada no sínodo de
1025.
Como se observa, a mentalidade simbolística inseria-se
no modo de pensar medieval, pois há o hábito de proceder-se
segundo uma interpretação genética dos processos reais,
obedecendo a uma cadeia de causas e efeitos.
Dois fatos dominavam a vida religiosa nesse período: a
extrema tensão da atmosfera religiosa e a marcada tendência
do pensamento em representar-se através de imagens.
A alegoria, operada como hermenêutica, é uma técnica
de interpretação, decifrando significações
tidas como verdades sagradas, ocultas na natureza sob a aparência
das coisas e também na linguagem figurada das Escrituras, revelando
um sentido espiritual. As coisas, então, passam a ser consideradas
como signos na ordem da revelação. Deve-se, então,
considerar três aspectos: a presença de Deus nas coisas sensíveis;
a presença de Deus nos seres espirituais; a presença de Deus
na alma humana.
É, então, sob todos esses elementos que o tratado
Castelo Perigoso é escrito por Frère Robert, lido por Soeur
Rose e suas companheiras de claustro, adaptado e traduzido para o português.
1 A UTILIZAÇÃO DA LECTIO DIVINA
No tratado Castelo Perigoso, percebe-se claramente a ideologia
regiliosa cristã medieva, uma vez que a prática se faz através
e sob uma ideologia, e só há ideologia através do
sujeito e para sujeitos, e representa a relação imaginária
de indivíduos com suas reais condições de existência.
Tomando como base a asserção que “Deus define-se a si mesmo
como sujeito por excelência, aquele que é por si e para si
e aquele que interpela seu sujeito”, tem-se o fato de que há uma
condição absoluta para se por em cena sujeitos religiosos
cristãos: “só existe essa multidão de sujeitos religiosos
possíveis porque existe um outro Sujeito único absoluto”
(Orlandi, 1996: 241). Deus, então, é o sujeito e os homens,
criados à Sua imagem e semelhança, são os seus interlocutores-interpelados,
os seus espelhos e os seus reflexos. Assim, o homem é interpelado
como sujeito (livre) para que aceite (livremente) a sua sujeição.
No discurso religioso, o locutor pertence, então, ao plano
espiritual (o Sujeito, Deus) e o ouvinte faz parte do plano temporal (os
sujeitos, os homens). Conseqüentemente, esse tipo de discurso apresenta
a dominação do plano temporal pelo plano espiritual. Entretanto,
a assimetria não admite a reversibilidade, ou seja, os homens não
podem ocupar o lugar do locutor porque este é o lugar de Deus.
Quando se diz que “a voz de Deus se fala no padre”, tem-se o mecanismo
de incorporação, denominado mistificação, a
qual consiste na “subsunção de uma voz pela outra (estar
no lugar de), sem que se mostre o mecanismo pelo qual essa voz se representa
na outra” (Orlandi, 1996: 244). A subsunção relaciona-se
com o simbólico, com o domínio da disciplina e das instituições.
Logo, o representante da voz de Deus não pode modificá-la,
visto que há regras estritas em que a apropriação
é permitida. A voz é regulada pela Bíblia, pela Igreja,
pelas cerimônias religiosas.
Entre os dualismos que caracterizam a religião,
tem-se homem / natureza, espírito / matéria. A articulação
entre as ordens temporal e espiritual torna-se possível devido aos
dualismos apresentados. Para tanto, a alma religiosa deve assumir as qualidades
do espírito, objetivando relacionar-se com o Sujeito (Deus). Tal
relação só é possível devido à
fé, a qual constitui-se o móvel para a salvação,
ou seja, devido à condição humana em relação
a Deus, separada pelo pecado, a fé é a possibilidade de mudança,
“é a disposição de mudar em direção
à salvação” (Orlandi, 1996: 250).
A fé também constitui o elemento separador entre
os fiéis e os não fiéis. A fé é um dom
divino, o homem com fé tem mais poder. Contudo, a fé não
elimina a assimetria e não pode modificar a não-reversabilidade
do discurso religioso.
No tratado Castelo Perigoso, a ideologia é percebida como
um sistema lógico e coerente de representações
(idéias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam
e prescrevem aos membros da cristandade o que devem pensar e como devem
pensar, o que devem valorizar, o que devem sentir, o que devem fazer e
como devem fazer. Para tanto, é utilizado o argumento de autoridade,
que usa atos ou juízos de uma pessoa ou de um grupo de pessoas como
meio de prova a favor de uma tese.
Para o estudo da argumentação, o argumento de autoridade
é extremamente importante, não se podendo, mesmo quando se
lhe contesta o valor, descartá-lo como irrelevante. Às vezes
parece-se atacar o argumento de autoridade, mas é a autoridade invocada
que é questionada.
As autoridades são as mais variadas: o parecer unânime,
a opinião comum, os cientistas, os filósofos, os Padres da
Igreja, os profetas, a física a doutrina, a religião,
a Bíblia.
Geralmente o argumento de autoridade completa a argumentação
em vez de constituir a única prova. A seleção das
autoridades é elaborada conforme coincida ou não com a opinião
do enunciador.
Outra característica textual fundamental para a edificação
do destinatário impõe-se, além dos exempla: a presença
da lectio divina. Trata-se das referências à Bíblia
e aos Padres da Igreja, que funcionam como o argumento de autoridade que
objetiva fundamentar “as verdades inquestionáveis”. No Tratado Castelo
Perigoso, as autoridades invocadas são específicas: suas
opiniões corroboram com as do sujeito (Frère Robert), a autoridade
delas é reconhecida pelo(s) interlocutor(es) ao(s) qual(is) o tratado
se destina (Soeur Rose e suas companheiras, e o povo cristão). Apresenta
uma série de referências diretas e indiretas a outros textos:
Bíblia – 226, Padres da Igreja – 147, Textos medievais religiosos
– 48, Provérbios – 11, Filósofos da Antiguidade - 3,
Textos medievais não-religiosos – 1.
O cristianismo deu “máxima consagração ao
livro. Era a religião do livro santo. Cristo é o único
Deus que a arte antiga representava com um livro” (Curtius, 1979: 322).
Desde a sua origem, o cristianismo sempre produziu escritos sagrados, documentos
de fé, como os Evangelhos, os Atos dos Apóstolos, o Apocalipse;
atos dos mártires e vidas de santos; livros litúrgicos. No
Êxodo (c. 31, v. 18) tem-se que as Tábuas da Lei foram “escritas
pelo dedo de Deus”; em Isaías (c. 34, v. 4) figura uma visão
escatológica : “os céus se enrolarão como um livro”.
Inúmeros são os exemplos em que os profetas recebem a ordem
divina: scribe hoc ob monumentum in libro (Êxodo, c.17, v.14)
ou sume tibi tabulam grandem et scribe in eo stilo hominis (Isaías,
c. 8, v. 1). A exemplo do Velho Testamento, encontra-se no Apocalipse (c.
6, v. 14): caelum recessit sicut liber involutus. Também em outras
passagens do Novo Testamento, Lucas mostra Jesus, aos doze anos, entre
os doutores da lei, no templo e depois de ressuscitado, quando “explica
as Escrituras aos discípulos de Emaús”. João (c. 8,
v. 6) apresenta Jesus a escrever com o dedo na areia. Paulo compara a congregação
com uma carta: epistola estis Christi... scripta non atramento, sed spiritu
Dei vivi, non in tabulis lapideis, sed in tabulis cordis carnalibus
(II Cor., c. 3, v. 3). Os livros decidem, finalmente, sobre o destino da
alma na vida futura (Apoc., c. 20, v. 12 e seg.). Segundo Curtius (1979:
323), desde o século V os gregos já conheciam a idéia
de um livro de Deus no céu, no qual são inscritos os pecados.
Durante a Idade Média, vários são os exemplos
em que existe uma relação vital entre mártires e santos
da Igreja com imagens relacionadas ao livro. Assim sendo, as referências
à Bíblia e aos Padres da Igreja funcionam como a lectio divina,
revelando o argumento de autoridade.
Nessa concepção do argumento de autoridade há
um ambíguo achatamento de emissor, significado, significante e referente
na Sagrada Escritura:
enquanto Logos, Cristo é o emissor das Escrituras, que porém são discurso e, por isso, Logos e falam do Logos-Cristo como seu referente último; mas falam Dele de modo indireto, mediante significados indiretos, discursos (?????), que é preciso interpretar. Mas o primeiro intérprete da Lei, o comentador por excelência, é ainda Cristo como Logos (todo comentário é imitatio Christi e na luz do Logos todos nos tornamos ???????) (Eco, 1991: 229-30).
O argumento de autoridade, segundo Ducrot (1987: 140) e Koch (1984:
148), utiliza os atos ou julgamentos de uma pessoa ou de um grupo de pessoas
como meio de prova a favor de uma tese. Trata-se de um procedimento retórico
que existe quando, a propósito de uma proposição p,
ocorre ao mesmo tempo que: a) indica-se que p já foi, é ou
poderia ser objeto de uma asserção; b) apresenta-se esse
fato como valorizando a proposição p, isto é, como
reforçando-a, acrescentando-lhe um peso particular.
A organização argumentativa de um discurso depende
das imagens mútuas que se pressupõem fazer emissor e receptor;
depende das imagens que se pressupõem fazer emissor e receptor sobre
o referente; depende, em último lugar, dos atos de linguagem que
o emissor realiza em seu discurso. É o conjunto que permite a cada
um justificar-se na sua função pragmática, isto é,
na relação com um fim determinado que o emissor visa a obter
no receptor. Essas imagens podem ser equacionadas segundo uma perspectiva
interpessoal na qual o emissor entende que o direito à palavra ou
a apropriação da palavra lhe garante uma posição
de domínio sobre o próprio receptor e segundo uma perspectiva
dos pressupostos que tem sobre o receptor, isto é, daquilo que considere
que o receptor deve ter como válido e indiscutível.
Nessa perspectiva, o argumento de autoridade, a lectio divina,
conduz o receptor à aceitação da sua proposição,
pois, segundo Lausberg (1982: 105), a persuasio também pode manifestar-se
na criação por um consentimento afetivo do árbitro
da situação (receptor), considerando-se que o consentimento
afetivo pode preencher possíveis lacunas da convicção
intelectual. Distinguem-se dois graus de afeto: ethos e pathos.
O grau mais suave de afetos chama-se ethos. Trata-se da influência
afetiva, pretendida e exercida pelo emissor sobre o receptor, com a finalidade
de nele exercitar afetos suaves, visando a obter a benevolentia.
O grau mais violento de afetos chama-se pathos. Trata-se da influência
afetiva, pretendida e exercida pelo emissor sobre o receptor, com a finalidade
de nele exercitar, favoravelmente à proposição, afetos
violentos (movere, comovere). Este grau afetivo leva à ação,
através do impulso imediato, e consiste na adesão do espírito
à proposição apresentada. O centro do domínio
em que se aplica o pathos reside no genus sublime.
2 CONCLUSÃO
No tratado Castelo Perigoso, quer na sua vertente pessoal (emissor
- Frère Robert / receptores - Soeur Rose e companheiras),
quer na sua vertente genérica (emissor - Frère Robert [Igreja]
/ receptores - cristandade), o argumento de autoridade presta-se como fundamental
à persuasão, visto que representa, conforme mencionou-se
anteriormente, a lectio divina, a verdade inquestionável.
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