CONFLUÊNCIAS NO ESTUDO DA MUDANÇA LINGÜÍSTICA
Carlos Alexandre V. Gonçalves (UFRJ)
0. Preliminares
Desde que Saussure (1912) advogou rígida dissociação
metodológica entre as perspectivas descritiva e histórica
de investigação, a Lingüística passou por uma
espécie de “febre sincrônica”, tornando-se hegemonicamente
descritiva. Depois de Saussure, que inaugurou o que se pode chamar de ‘Programa
da Lingüística Sincrônica’, à diacronia ficou
destinado o papel de “parente pobre” da Ciência da Linguagem.
No Brasil, conforme Mattos e Silva (1988) relata em retrospectiva,
estudos histórico-filológicos na linha de Serafim da Silva
Neto, Souza da Silveira e Mansur Guérios, entre outros, hegemônicos
até a década de 60, tornaram-se rareados: passaram a ser
predominantes pesquisas descritivas sobre o português contemporâneo
e debates sobre aplicação de modelos teóricos (cf.
Altmann, 1994 e Gonçalves, no prelo).
Não fugiu a essa “febre sincrônica” a Sociolingüística
Quantitativa de inspiração laboviana, com base na qual diversos
estudos sobre fenômenos de variação e/ou mudança
foram desenvolvidos através de perspectivas estritamente sincrônicas.
Mesmo para verificar se determinadas variantes lingüísticas
apontavam ou não para mudança em curso, o modelo variacionista
de análise lançou mão, em grande escala, do recurso
Tempo Aparente, baseado no recorte transversal de uma amostra sincrônica
segundo a faixa etária dos informantes (cf., entre outros, os trabalhos
de Labov (1972) e Trudgill (1974), por exemplo).
Em artigo de 1975, intitulado On the use of present to explain the
past, Labov rediscute o recurso Tempo Aparente como ferramenta metodológica
efetiva e eficaz no prognóstico de mudanças em progresso
e promove um equacionamento entre o descritivo e o histórico, encarando-os
como abordagens mutuamente complementares. Dessa maneira, Labov (1975)
defende a idéia de que a mudança, se atestada via Tempo Aparente,
deve ser corroborada através de um encaixamento histórico
no Tempo Real. Em outros termos, é por meio dessa estratégia
metodológica ? que pressupõe utilização de
amostras de epócas diferentes ? que se pode conferir com mais precisão
o prognóstico quer de mudança em progresso quer de estabilidade.
As perguntas teóricas que se podem fazer, tomando por base esse
tipo de abordagem (o Tempo Real) são as seguintes: (a) como recuperar
o vernáculo de estágios mais longínquos de uma língua?
e (b) qual o material de que o analista deve dispor? Se o acesso ao registro
falado em períodos históricos remotos de uma língua
torna-se obviamente inviável, resta ao pesquisador a árdua
tarefa de lidar com a documentação escrita remanescente,
definida por Labov (1982: 20) como a arte de fazer o melhor uso de maus
dados, no sentido de que os fragmentos da documentação escrita
são o resultado de acidentes históricos para além
do controle do investigador.
Com base nas reflexões acima apresentadas, defendo, neste artigo,
a idéia de que o estudo da variação e/ou mudança
em diacronia (isto é, a pesquisa em Tempo Real) está estreitamente
relacionado com determinados problemas e técnicas da Filologia.
Nesse sentido, o trabalho do lingüista variacianista em diacronia
tende a se confundir, muitas vezes, com o do filólogo. Assim, buscando
promover encontro conciliatório entre essas duas disciplinas “co-irmãs”
afastadas ultimamente, procuro mostrar que a Filologia pode auxiliar o
sociolingüista histórico em duas dimensões, fundamentalmente:
(a) na construção de corpora representativos para um estudo
vertical da língua e (b) na definição do chamado “envelope
da variação”, ou seja, no elencamento dos fatores condicionadores.
Passo a descrever, nas seções a seguir, as vantagens de se
aliar a metodologia do filólolo à prática do sociolingüista.
1. Constituição de corpora: o exemplo do banco de dados
diacrônicos
Com relação à formação de corpora
diacrônicos representativos, matéria-prima de toda e qualquer
investigação sociolingüística, é indispensável
o intercâmbio entre Lingüística e Filologia não
só na seleção e no elencamento dos textos que irão
compor os data base, como também na indicação cronológica
das edições de cada texto sobre o qual os dados serão
rastreados, já que cada documento tem sua história
e é necessário conhecê-la, como aponta Mattos e Silva
(1991: 53), para poder avaliar e explicitar as características da
documentação lingüística de cada testemunho sobre
o qual se desenvolverá a análise.
Tendo como finalidades específicas, nas palavras de Chaves de
Melo (1981: 7), a fixação, a interpretação
e o comentário dos textos, o trabalho do filólogo é
indispensável à constituição de corpora escritos
de estágios remotos de uma língua. Além da datação
precisa de cada obra, o analista deve, também, (a) descobrir se
os textos constituem verdadeiros apógrafos ou se são edições
que passaram por copistas; (b) verificar, no caso de edições
compiladas, se os copistas foram fiéis ou se inseriram modernismos
nos textos, modificando lingüisticamente o documento; (c) concluir
se são obras vernáculas ou traduções e, nesse
último caso, verificar se houve interferência da língua
original na tradução; (d) a partir do texto, conhecer a história,
os usos e os costumes e, enfim, a cultura da época em que foi escrito;
e, finalmente, (e) verificar se as obras são edições
originalmente escritas na data de edição ou se, na verdade,
são cópias de códices anteriores. Esses fatores, se
não levados em consideração, podem interferir decisivamente
na análise dos fenômenos estudados e, inclusive, enviesar
e invalidar os resultados da pesquisa.
Os “cuidados filológicos” acima enumerados tendem a minimizar
a distância entre o oral e o escrito, já que visam, em última
instância, à recuperação dos padräes de
língua falada desses períodos mais longínquos da língua.
Sigo, portanto, na thilha de Labov (1982: 20), a fim de “fazer o melhor
uso” possível dos “maus dados” fornecidos pela “língua do
papel”.
Com o intuito de buscar documentos de fala mais naturais, tentando
evitar o viés da língua escrita, o lingüista tem de
adotar estratégias para rastrear seus “melhores” dados. Assim fizeram
alguns pesquisadores ? “valentes aventureiros” da nau que conduz à
travessia dos revoltos mares da diacronia (cf. Gonçalves, 1993).
Rosa (1995), por exemplo, trabalhou apenas com manuscritos portugueses
do séculos XV e XVI para analisar o fenômeno da pontuação.
Decat (1989) optou pelo uso de cartas e diários dos séculos
XVIII e XIX como data base para investigar construções de
tópico. Na mesma linha, Mollica (1995) utilizou documentação
literária dos séculos XIII e XIV para verificar se o (de)queísmo
era latente na história do português.
Dessa maneira, para analisar um fenômeno variável seguindo
perspectiva vertical de investigação, o trabalho do lingüista
não pode se desvincular da prática filológica, já
que ela oferece subsídios para, em primeira instância, constituir
um banco de dados confiável, matéria-prima imprescindível
a qualquer estudo variacionista.
Acreditando que essa união no nível diacrônico,
mais que necessária, traz fortes saldos teóricos e metodológicos,
constituí um banco de dados que visa a servir de acervo para um
estudo comparativo da língua portuguesa, desde sua formação
como idioma neolatino até o século XIX. Essa amostra, denominada
de Banco de Dados Diacrônicos (doravante BDD), é, na verdade,
refinamento de um primeiro levantamento bibliográfico estabelecido
por Gonçalves & Botelho (1991) e por Gonçalves (1992).
O BDD está originalmente constituído de 48 obras, divididas
eqüitativamente em seis estágios de tempo diferentes (do século
XIII ao XIX, como no Quadro (01) a seguir), a fim de poder avaliar a trajetória
de um fenômeno variável longitudinalmente no Tempo Real. Como
toda amostra sociolingüística, o BDD foi também estratificado.
Além da variável ‘tempo’, a estratificação
levou em conta uma variável discursiva * o gênero *, muito
embora outras variáveis também pudessem ser controladas,
como, por exemplo, (a) ‘estilo da obra’, (b) ‘origem do autor’ (rural/urbana)
e (c) público-alvo. Para cada período histórico controlado,
distribuí as obras em função dos três gêneros
discursivos maiores (Brecht, apud Aguiar e Silva, 1976): narrativo, dramático
e lírico1. A seleção dos textos foi feita levando-se
em conta também a maior possibilidade de variação.
Assim, obedecidos os cuidados filológicos apontados, o elencamento
dos textos foi feito de acordo com os seguintes critérios:
(a) optei por trabalhar, sempre que possível, com narrações:
crônicas, romances, narrativas religiosas e alegóricas, ensaios,
teatro e poemas históricos. Obras dessa natureza funcionam como
relatos oralizados de fala, tornando-se, portanto, mais próximas
do uso real da língua;
(b) preferi estabelecer os corpora recorrendo a textos com maior grau
de oralidade, preferencialmente aqueles em que os autores dessem fala a
personagens, buscando flagrar o vernáculo da época;
(c) selecionei obras com menor grau de formalidade e de temáticas
mais populares que atingissem a um público mais geral;
(d) escolhi somente textos que tivessem as primeiras edições
disponíveis, procurando evitar obras corrigidas por copistas. Quando
isto não foi possível, optei pelas edições
críticas que publicassem os códices mais antigos. No Quadro
(01) a seguir, são arrolados os textos que compõem o BDD2.
S
e
c
1 2 -14 Crônica Geral de Espanha
L. Cintra Testamento de D. Affonso II
A. AJ. da costa Livros de linhagem
Anônimo A linguagem dos Foros de Castella
L. Cintra A Demanda do Santo Graal
A. Magne O Cancionei-ro da Ajuda
M. Braga Cantigas d'escár-nio e maldizer
R. Lapa Chrónica d'elmy valeroso Rey D. Affonso
F. Ledsm
Sc1 4
-
15 O livro de Esopo
J. L. Vascon-cellos Leal conselheiro
Dom Duarte Tomada de Ceuta
G. E. de Azurara O livro das aves
N. Rossi
(ed.) Boosco deleytoso
A. Magne Chrónica d'el Rey Ioham I
Fernão Lopes O livro de falcoaria
R. Lapa O livro dos officios
J. M. Piel
s
e
c
16 Auto das Lágrimas
D. Bernardes Livro das saudades de Menina e Moça
B. Ribeiro Peregri-naçon
F. M. Pinto Comédia Intitulada Os Estran-geiros
Sá Miranda O soldado prático
Diogo do Couto Década primeira da Ásia
João de Barros Auto da barca do inferno
Gil Vicente Comédia Eufrosi-na
J. de Vas-concellos
s
e
c
17 A arte de furtar
Anônimo O fidalgo aprendiz
F. M. Melo Arte de cavalaria de gineta e estardiota
A. G. Andrade Histórias de Futuro
Pe. Antônio Vieira A vida de F. Bartolomeu dos Mártires
F. L. Souza Histórias Proveytozas
G. Trancozo Auto do Livra-mento
Anônimo Obras Poéticas
G. de Mattos
s
e
c
1
8 Teatro Novo
Correia Garção A monja e o rouxinol
M. Figueiredo Guerras do alecrim e mangerona
A. J. Silva Licore
D. R. Quita O secretário portuguez
F. J. Freire O Hyssope
A. Cruz Silva Resposta Apolo-gética
Pe. L. Kaulen A vida de Esopo ou Ezopaida
A. J. da Silva
s
e
c
1
9 Os Maias
Eça de Queirós O condenado
C. C. Branco O juiz de paz na roça
M. Penna A capital federal
A. de Azevedo Fallar a verdade e mentir
A. Garret Duas filhas
A. P. Cunha Cahiuo o ministé-rio
F. Júnior O Cortiço
Aluísio Azevedo
Quadro (01): As Obras que compõem o Banco Diacrônico de
Dados
A princípio, o BDD seria constituído de sete diferentes
estágios de tempo, pois pretendia estabelecer um corpus para cada
século. Como a documentação disponível é
relativamente pequena no chamado Português Arcaico (Vasconcellos,
1959), optei po dividir as obras desse período histórico3
em dois corpora distintos. Essa divisão corresponde, grosso modo,
às propostas de periodização da língua portuguesa
estabelecidas por Silva Neto (1950), por Vázques Cuesta & Mendes
da Luz (1971) e por Cintra (1959).
Embora utilizem denominações diferentes para a subperiodização
do Português Arcaico, os três autores acima referendados procedem
à mesma delimitação temporal: o primeiro período
estende-se do século XIII às primeiras décadas do
século XV (1214-1420, aproximadamente) e o segundo, vai daí
até as primeiras décadas do século XVI (1421-1536/1540).
Essa divisão, além de necessária por não haver
documentos disponíveis para os três séculos que compõem
o Português Arcaico, permite comparar possíveis diferenças
no afetamento de determinado processo de variação e/ou mudança
nesses dois estados, oferecendo subsídios inclusive para confirmar/infirmar
a subperiodização. Mais uma vez, observa-se que conhecimentos
histórico-filológicos se fazem necessários ao sociolingüista
diacrônico.
Ainda com relação ao BDD, selecionei, nos dois primeiros
estados de tempo, tanto fontes chamadas primárias (os próprios
manuscritos existentes) quanto fontes secundárias, de acordo com
a taxionomia de Mattos e Silva (1989). Na verdade, essa documentação,
como aponta Mattos e Silva (1991: 29), é o espólio de que
dispõe o pesquisador, já que ele tem de submeter sua análise
à documentação remanescente. Para os demais séculos,
escalonei somente fontes primárias.
Acredito, portanto, que, somadas as ferramentas metodológicas
próprias a esses dois campos do saber (Filologia e Lingüística),
haverá mais confiabilidade científica e melhores condições
para a análise dos fenômenos lingüísticos a investigar
e, conseqüentemente, maior saldo teórico e aumento do saber
acumulado.
2. Definindo o envelope da variação
Além de oferecer condições ideais para a constituição
de corpora representativos, a Filologia pode auxiliar o (socio)lingüista
variacionista na busca de grupos de fatores, ou seja, na seleção
de parâmetros de natureza por assim dizer “filológica” que
também podem ser usados para definir o envelope da variação.
Neste artigo, examino com mais vagar fatores “filológicos” que podem
ser chamados de “internos” (parâmetros lexicais), de acordo com a
taxonomia estabelecida por Gonçalves (1993 e 1994). Essa análise
não descarta, entretanto, a possibilidade de serem controladas também
variáveis filológicas “externas”, que, a meu ver, podem ser
relevantes no controle de fenômenos de variação ou
câmbio lingüístico. Entre outros parâmetros, podem
ser analisados, por exemplo, (a) o público-alvo a que se destina
o texto e (b) o perfil sociogeográfico dos autores. No caso específico
de obras do gênero dramático, em que personagens do cotidiano
têm fala, pode ser relevante o controle das variáveis extralingüísticas
já clássicas no Variacionismo, como, entre outras, (i) sexo,
(ii) origem, (iii) etnia, (iv) profissão e (v) classe social. O
filólogo pode dar informações precisas acerca desses
dados. Passo a expor, agora, os resultados das variáveis que reuni,
em Gonçalves (ops. cits.), sob o rótulo genérico de
‘léxico-etimológicas’.
Examinando os processos de aférese e prótese da vogal
[a] na história do português (os fenômenos aparecem
exemplificados em (01) e (02) a seguir, respectivamente), propus três
grupos de fatores condicionadores que potencialmente pudessem influir na
inserção e/ou no cancelamento desse segmento inicial: (a)
origem, (b) idade, (c) via de acesso do vocábulo na língua.
Com isso, pude chegar a uma leitura digamos “filológica” dos fatores
condicionadores detectados no encaixamento das mudanças. Confiram-se
os exemplos:
(01) Se me Deos feze fremozo, darme bomdade, se lhe ?prouver.
(Demanda do Santo Graal, século XIII, p.375)
(02) E poderen melhor chorar os seus pecados/e te/ iren sas almas mais
Assessegadas. (O Livro das Aves, século XIV, p. 217)
Visando a ampliar o leque de parâmetros adotados em Difusão
Lexical, seguindo a trilha de Wang (1969) e Wang & Cheng (1977), entre
outros, denominei os três parâmetros controlados de ‘léxico-etimológicos’.
Tais variáveis podem ser descritas como lexicias na medida em que
dizem respeito à “vida” das palavras, envolvendo, assim, aspectos
de sua própria identidade como item lexical, já que revelam,
em última instância, sua nacionalidade, sua idade e o veículo
utilizado (se via erudita ou popular) na migração para a
língua portuguesa.
Os itens foram subcategorizados em (a) latinos, (b) gregos, (c) de
outras línguas e (d) de origem obscura, segundo a variável
‘origem do vocábulo’. Por outro lado, com relação
ao parâmetro ‘idade do vocábulo’, os mesmos itens foram considerados
(a) antigos (os já existentes na história da língua
desde sua formação), (b) de meia-idade (os que entraram na
língua entre os séculos XIV e XVI), (c) contemporâneos
(os de entrada posterior ao século XVI) e (d) novíssimos
(os de ingresso no século XIX). Por fim, com relação
à ‘via de acesso do vocábulo’, subdividi os itens em (a)
de origem erudita e (b) de origem popular. Considero de origem erudita
o vocábulo que não viveu em tradição ininterrupta
na língua, sendo utilizado, inicialmente, em círculos eruditos,
mais precisamente na linguagem literária, especialmente na poética
(cf. Lausberg, 1989). As palavras “populares”, diferentemente, percorreram
todas as fases de desenvolvimento da língua, tendo, assim, tradição
ininterrupta na história do idioma.
Dois dos parâmetros léxico-etimológicos propostos
* ‘idade’ e ‘via de acesso’ * não foram suscetíveis de tratamento
segundo a metodologia da interseção lexical , já que
muitos itens de origem erudita e de idade não-antiga obviamente
não figuram nas primeiras fases históricas da língua.
Os resultados das variáveis léxico-etimológicas (ou
“filológicas”) podem ser vislumbrados no Gráfico (I) a seguir:
Gráfico (I): As variáveis ‘léxico-etimológicas’
e os processos de aférese e de prótese do [a] (Gonçalves,
1993: 131)
Pelo Gráfico (I), observa-se que os vocábulos latinos,
os de origem popular e os mais novos na língua são os mais
propulsores quer da variação em aférese, quer da variação
em prótese. Nesse sentido, funcionam como “barreiras lexicais” os
itens emprestados de outras línguas, os de entrada antiga no Português
(os chamados ‘de meia-idade’ e ‘velhos’) e os de ingresso via erudita.
Com base nesses resultados, pude propor o chamado ‘Princípio
de Imanência no Sistema’ (cf. Gonçalves, 1993), segundo o
qual itens lexicais por assim dizer “nativos” tendem a constituir barreira
lexical, resistindo, pois, ao impulso inovador. É como se a língua
imprimisse neles uma espécie de invólucro, tornando-os resistentes
e, de certo modo, infensos à ação da mudança.
Princípio de Imanência no Sistema (PIS): Além de
a mudança fazer inspeção a características
lexicais (como à classe a que o vocábulo pertence ou à
freqüência do item na língua), também pode ser
sensível a fatores de natureza histórico-etimológica,
haja vista que categorizações como [+/- antigo], [+/- emprestado]
e [+/- erudito] podem atuar decisivamente na propagação da
mudança. Ao que tudo indica, os valores positivos de tais parâmetros
funcionam como barreiras lexicais, tornando os itens assim categorizados
resistentes à ação da mudança. Por outro lado,
os valores negativos fazem com que os itens assim caracterizados sejam
as vítimas mais indefesas do processo.
Todo esse trabalho lexico-etimológico só se torna viável
graças aos legados de filólogos e de gramáticos históricos
(gramáticas históricas, dicionários etimológicos
e obras do gênero). Dessa maneira, indicações filológicas
se tornam imprescindíveis num trabalho de tal envergadura. A Filologia
pode, pois, complementar a análise sociolingüística,
na medida em que permite auxiliar a prever condições lingüísticas
possíveis para o espalhamento e para a difusão das mudanças
lingüísticas.
Diferentemente de análises variacionistas em sincronias contemporâneas,
é necessário que o sociolingüista diacrônico,
além dos conhecimentos de teorias e metodologias próprias
à pesquisa quantitativa, também tenha certo conhecimento
de princípios metodológicos e técnicas da Filologia.
Assim, conforme o próprio Labov (1975: 829) assinala, não
é tarefa simples resolver problemas históricos por causa
da fragmentação dos documentos remanescentes, mas mesmo assim,
acrescenta, nós podemos fornecer algumas interpretações
plausíveis através de princípios que tenham total
suporte empírico e assim iluminar o passado através do presente
assim com iluminamos o presente através do passado.
3. À guisa de conclusão
A hegemonia da pesquisa descritiva (ou “febre sincrônica”) parece
estar chegando ao fim. A Sociolingüística e a Gramática
Gerativa, por revelarem interesse na questão da mudança,
talvez tenham sido responsáveis pela volta da diacronia à
pauta dos estudos da linguagem. O crescente interesse pela diacronia no
Brasil dos anos noventa parece ser reflexo do que aconteceu nos Estados
Unidos e na Europa dos anos oitenta (cf. Altmann, 1994). De fato, estudos
de natureza histórica estão voltando à baila no cenário
da Lingüística Brasileira, reatando, nas palavras de Faraco
(1991: 6), o fio tão drasticamente rompido na década de 60.
Iniciam essa retomada as contribuições de Tarallo (1991),
Ilari (1992), Faraco (op. cit.), Roberts & Kato (1993) e Mattos e Silva
(1988, 1991 e 1994), entre inúmeras outras.
No meu entender, o viés de pesquisa que está sendo agora
resgatado irá trazer abordagens renovadas para os estudos históricos,
iluminando o passado através do presente, como diria Labov (1975).
O presente artigo se insere nessa linha de investigação e
se propôs a oferecer pequena contribuição ao reflorescimento
de pesquisas de tal porte no Brasil. Enfatizo, entretanto, que essa volta
ao passado pode ser melhor retratada quando se aliam, na investigação
de fenômenos de variação e/ou mudança em Tempo
Real, ferramentas da Filologia a procedimentos e técnicas analíticas
próprias da pesquisa em Sociolingüística Variacionista.
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