NOTÍCIA SOBRE ALEXANDRE RODRIGUES FERREIRA E SUA OBRA, CONSERVADA NA BIBLIOTECA NACIONAL E NO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO
José Pereira da Silva (UERJ)
Até o terceiro quartel do século XVIII, Portugal não
havia demonstrado interesse na exploração científica
de suas colônias.
Mas, a partir da reforma da Universidade de Coimbra, a ciência
passou a ser mais experimentada do que lida. Por isto, o naturalista
baiano, Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815), foi escolhido pelo Ministro
de Ultramar, por indicação da Universidade em que ele acabara
de se doutorar, e nomeado pela Rainha como “o primeiro naturalista português”.
Coube-lhe a tarefa de organizar e chefiar a Viagem Filosófica pela
Amazônia e Centro Oeste, uma expedição que durou dez
anos, percorreu mais de quarenta mil quilômetros, produzindo centenas
de documentos da maior importância histórica, científica,
filosófica, política etc., sendo integrada por centenas de
participantes, inclusive com mais de cem índios auxiliares, que
eram renovados sempre que fugiam ou sofriam alguma fatalidade.
A equipe de Alexandre Rodrigues Ferreira constituiu a única
expedição científica patrocinada pela metrópole
colonizadora no Brasil, tendo sido parte da comissão encarregada
da demarcação de limites entre os territórios das
coroas de Portugal e de Espanha.
Maior parte dos seus resultados permanece inédita, sendo que
o pouco que se publicou não recebeu o cuidado editorial necessário.
O governo brasileiro comprometeu-se em publicar aquelas fontes de informações
científicas, básicas para o estabelecimento seguro dos primeiros
passos da História da Ciência e da Tecnologia nesses países.
Para isto, D. Pedro II se empenhou diretamente, através do IHGB,
por onde publicou transcrições de alguns documentos, e o
governo republicano já aprovou verbas específicas
para este fim e nomeou equipe de altíssimo nível para realizar
tal empreitada. Mesmo assim, muito pouco se fez.
Agora, sem apoio financeiro do governo e sem qualquer garantia de que
o trabalho será publicado, estamos preparando esse material para
que os futuros pesquisadores possam conhecer a fase inicial e brilhante
da História da Pesquisa no Brasil e em Portugal, e conhecer o grande
herói dessa fase cruenta, o doutor naturalista Alexandre Rodrigues
Ferreira.
OS PROGRESSOS DE ALEXANDRE
Alexandre Rodrigues Ferreira nasceu em Salvador, a 27 de abril de 1756,
onde tomou as ordens menores aos 20 de setembro de 1768, segundo
a vontade de seu pai, Manoel Rodrigues Ferreira, que o havia destinado
desde cedo à vida eclesiástica.
No mês de julho de 1770, alcançava o porto de Lisboa,
como candidato à Universidade de Coimbra, cujos fundamentos sofriam
o embate de agentes remodelados, onde se matricula em outubro.
Ali, mudou de rota acadêmica, tornando-se o “o primeiro brasileiro
em quem se reconhecem todas as características do cientista”, segundo
Guilherme Maurício Souza Marcos de la Penha, e entregou-se inteiramente
ao estudo das ciências recém-admitidas na Universidade, servindo
gratuitamente de demonstrador de História Natural para se aproximar
de Vandelli.
Doutorado, Ferreira já estava ligado à comissão
que lhe daria a glória amargurada, aceitando o convite do Ministro
Martinho de Melo e Castro, em 1778. Não a iniciou imediatamente,
preso a outros empreendimentos, que o levaram à elaboração
de memórias, como a que intitulou Abuso da Conquiologia em Lisboa,
terminada em 1781, que deveria servir de introdução à
Teologia dos Vermes, cujo objetivo fundamental era refrear a dispersão
de esforços em torno da Conquiologia, a que se dedicavam doutos
e simples curiosos.
Discutiu o costume generalizado, atribuindo à ciência
o serviço à economia e declarando, como súdito de
monarca pobretão, que “o grau de aplicação que
merece uma ciência mede-se pela sua utilidade”, diretriz que
seguirá, convicto de subordinar as cogitações científicas
ao interesse material.
Entretanto, maiores provas daria do seu desprendimento pessoal. Tanto
que, quando acadêmico, desistira da gratificação que
lhe cabia como demonstrador de História Natural e, depois de formado,
aceitou encargos correlatos à comissão que lhe fora confiada,
trabalhando cerca de cinco anos no Real Gabinete sem pleitear qualquer
recompensa pecuniária.
Mas não tinha a intenção de banir o estudo dos
minúsculos seres das cogitações dos sábios,
como declara: “Por conclusão do que tenho dito, um protesto faço,
de que não é o meu projeto abolir esta Parte da História
Natural.”
Coerente com a doutrina que sustentara perante os colegas da Academia,
condensou as normas que deveriam guiar os expedicionários da Viagem
Filosófica. E, embora o objetivo fosse a “utilidade da Pátria”,
não tarda o naturalista em manifestar o seu amor ao estudo dos fenômenos
da natureza.
Embora fosse vantajosa a chefia assemelhada ao comando militar, já
no referido regulamento tratara de evitar qualquer causa de desavença.
Em seguida, prescreveu que as atividades deveriam começar no próprio
dia de embarque, por meio da pesca adequada, cujos produtos seriam imediatamente
preparados, de acordo com a técnica recomendada por Vandelli.
Acostumado a esses trabalhos, executados ao sair da Universidade, aplicaria
o mesmo critério da minuciosidade precisa, em proporções
muito mais vastas, quanto ao espaço e tempo.
Os exemplares preparados seriam acondicionados para a remessa, e os
outros receberiam os cuidados reclamados pela sua condição.
Os desenhistas completariam então os seus serviços.
O relatório mensal registraria a marcha realizada e o resultado
da colheita.
Enfim, recorda: “Eis aqui em suma quanto em seu nome se devem comprometer
os filósofos: lisonjeia ao público desde já uma bem
fundada esperança; fica da parte dos eternos desígnios do
Primeiro Ser e da diligência que eles puseram no seu trabalho o tornarem-se,
depois de imensas fadigas, úteis ao Rei, benéficos a si mesmos
e amáveis à Sociedade”.
NA AMAZÔNIA
Iniciou suas pesquisas Belém, a única cidade da Região,
enquanto lhe preparavam meios de transporte para o Marajó,
embarcando a 7 de novembro.
Não o diz claramente, mas o encanto lhe ilumina os traços
rápidos, inteiramente dedicados à missão oficial.
Sua vista se afogava na mata espessa, sem flores a esse tempo. Aqui
e acolá, árvores carregadas de frutos proporcionaram-lhe
exemplares, que colheu para a remessa ao Gabinete Real, na charrua em que
viera.
Esboçou com simpatia o quadro apresentado a seus olhos:
Além de outras plantas e árvores comuns a todas estas
ilhas, como são aningas e tabuas, mangues, xiriúbas, mamorixana,
cebola brava, ambaúba, embira branca, lombrigueira, sumaúma
e outras, cujos nomes sistemáticos, já em grande parte constam
da flora guianense e, a seu tempo constarão desta do Pará,
quando me for possível retificar as minhas observações.
Honram igualmente as suas margens diversas qualidades de palmeiras dispensadoras
de uma primavera sempre leda. A verdura nelas e em quase todas as
árvores do país, é imortal. Estão em
seus ramos os papagaios, os periquitos e alguns sugüins, arremedando
e contrafazendo tudo quanto vêem e ouvem ao espectador que os observa.
Não faltam nos alagadiços lontras, capivaras e diversos ratos
aquáticos além de jacarés!
Ferreira descreve detalhadamente as particularidades da vida civil,
eclesiástica e militar, antes de esboçar o panorama físico
daquela região opulentamente adubada pelos rios benfeitores, relacionados
pelo critério das navegabilidade. Não pôde
conter a condenação do sistema seguido pelos plantadores,
que transformavam a sua colheita em bebida: “Até é vergonha
dizer-se que em terra onde se planta a cana, não há um arrátel
de açúcar que não seja comprado na cidade”.
Testemunhou o despovoamento dos campos, que atribuiu à matança
desordenada de reprodutores, pelos novos fazendeiros, a quem foram distribuídos
os estabelecimentos pastoris confiscados aos jesuítas.
Assim que arranjou amostras suficientes para a primeira remessa, retornou
a Belém e redigiu a memória, de 20 de dezembro de 1783, que
assim começa:
Escrever a História Filosófica e Política da Ilha
Grande de Joanes, por outro nome, o Marajó; individuar os produtos
naturais que há e podem haver na dita ilha; presentar de cada
um deles uma descrição circunstanciada e tão circunstanciada
como merecem as suas propriedades, os seus usos e a suas aplicações;
em todas elas espreitar a natureza e rastejar, quanto podem, a razão
e os sentidos corporais, mistérios infinitos. Tanta obra em
tão pouco tempo é um projeto vasto para os talentos vastos;
digno pela sua vastidão dos altos desígnios de V. Excia.,
mas por isso mesmo infinitamente superior ao meu talento, que V. Excia.
sabe quão limitado é e quão nulo o maior grau de alcance
a que ele chega.
Enquanto permanecia em Belém, não perdia as oportunidades
de examinar tudo quanto lhe chamasse a atenção, como foi
o problema agrícola, sobre a qual refletiu na monografia Estado
Presente da Agricultura do Pará, e sobre os índios que, libertos
do senhor, passaram à jurisdição dos diretores, cuja
ganância seria mais abusiva, constatando “que mais escravos ficaram
os índios, depois da declaração de sua liberdade,
do que antes da declaração.”
Em certo ponto, denuncia, parafraseando Aublet: “Cultivar a terra neste
país é, por assim dizer, descascá-la.”
Deficiência de trabalhadores, dispersão da energia na
espoliação das “drogas do sertão”, a insegurança
do transporte, tudo concorria para o atraso injustificável.
Segundo Ferreira, a agricultura é uma ciência que ensina
a cultivar a terra para tirar dela o maior proveito possível.
Por si, as produções da terra são o bem mais real
que todas as minas, o fundamento mais sólido dos Estados e a verdadeira
base do comércio.
ASPECTOS PARAENSES
Antes de prosseguir rumo ao Rio Negro, teve a oportunidade de mostrar-nos
os usos e costumes locais em sua Miscelânea Histórica para
servir de Explicação ao Prospecto da Cidade do Pará,
de 1784.
Quanto aos índios, carregou de tons escuros a palheta: “a preguiça
e a crápula são seus vícios hereditários”.
Não poupou as classes graduadas: “A medicina por todo o Estado
tem mais charlatães do que a política na Itália.”
Menos inculto não se revelava o clero: “explica-se-lhe a Teologia
Moral, toda fundada na Escritura, e não se lhe explica a Escritura;
isto é esperar frutos de uma árvore que não tem raízes”.
À míngua de condições propícias, “o
artigo da Literatura do Pará está quase em branco.”
Tudo merecia referência ou reflexões, evidenciando-se
o contraste entre o jovem doutor e o ambiente paraense, que lhe não
satisfazia as aspirações inovadoras. Entretanto, como nem
sempre assinava ou datava suas anotações, dificulta-se cronologia
dos seus manuscritos, quando não abre margem a dúvidas mais
sérias.
Ultimada a sua missão em Belém, prosseguiu, Amazonas
a dentro, munido de lisonjeira portaria do Capitão-General, que
ordenava a todas as autoridades sob sua jurisdição lhe atendessem
às requisições, partindo de Belém a 19 de setembro
de 1784 e chegando a Barcelos a 2 de março de 1785.
Ali, os astrônomos e engenheiros constituíam insigne constelação
de sábios, a quem deveu a Amazônia as suas primeiras observações
científicas. Alguns ainda lá se achavam quando Ferreira
desembarcou. Outros, já ausentes, deixariam o resultado de
suas pesquisas.
Ao Rio Branco consagrou os seus esforços, refazendo o serviço
de Antônio Pires da Silva Pontes, em 1786.
DIÁRIO DE VIAGEM
Quando se recolhia a Barcelos, depois de cada excursão, a colheita
de amostras e as observações ilimitadas, era-lhe necessário
reduzi-las a escrito mais concatenado do que as simples notas avulsas.
Dali se originaram quase todas as Participações que constituíram
o Diário da sua viagem e as monografias destinadas a acompanhar
as remessas, que não cessava de despachar para Lisboa, sem nada
lhe escapar ao campo de observação.
Fiscal inflexível, chamava às contas tanto os subalternos
quanto os graduados: “Isto, que escrevo e informo, não são
notícias adquiridas pelo que se me diz ou vejo escrito; o Estado
em todas as suas repartições é o livro de si mesmo,
e cada dia que por ele viajo é uma página que folheio” (Sexta
Participação, de 14/06/1786). E dava a cada um a recompensa
a que fizesse jus. Não seria o general que se vangloria de
triunfos alcançados pela dedicação e competência
dos seus conduzidos.
No intervalo das “Participações”, elaborava
o naturalista as memórias avulsas, que denotavam ampla curiosidade
pesquisadora, servida por incomum capacidade de trabalho. Como
os decoradores que esboçam croquis dos aspectos que aproveitarão
algum dia nas suas composições de maior porte, anotava em
folhas esparsas as linhas principais do que julgava conveniente anexar
às remessas contínuas de amostras para o museu.
Observações zoológicas, etnográficas e botânicas
em profusão colhem-se de tais escritos, que não visavam aprofundar
esclarecimentos.
Mais detido exame reclamam os ensaios de maior tomo, que conseguiu
ultimar, embora nem sempre presos à missão de naturalista
viajante, como são a Memória sobre a Marinha Interior (26/03/1787)
e a Participação Geral do Rio Negro (28/10/1787). Ambos
avultam na bibliografia ferreireana, em que o autor logrou imprimir o cunho
de sua personalidade científica e desenvolvê-la mais do que
seria de esperar de quem não cessava a sua labuta de colecionador
diligente.
Eis o que escreve na dedicatória que faz do primeiro:
“Quando me ponho a olhar dos centros destes sertões para
o Estado presente da Europa culta, onde a marinha interior e exterior das
nações, que algum dia aprenderam de nós, está
sendo árbitra, que decide da guerra e da paz; do comércio
ativo ou passivo, da riqueza ou indigência dos povos, e, para dizer
com a energia de um poeta, onde “o tridente de Netuno é o cetro
do mundo”, e chegando eu mesmo a reconhecer que ela é a mola real
desta chave mestra de todas as outras colônias portuguesas em o Novo
Mundo, cujo desenvolvimento, conquistas, navegação, fundada
no valor, na piedade e no zelo da fé dos nossos reis excedem tudo
quanto há de grande e de serviço, na história das
nações marinhas, ofereço a V. Excia. em benefício
da defensa deste Estado e do aumento do seu comércio, este como
sinal do muito ou pouco patriotismo que em mim se acha...
PELO RIO NEGRO
Se ao redigir a monografia a respeito da Marinha Interior, tinha o
naturalista os olhos em Martinho de Melo, quando planejou compendiar em
uma só memória o que houvesse de mais interessante em dezenas
que escrevera acerca de aspectos do Rio Negro, pôs a mira em João
Pereira Caldas.
Concluída pelo modo que melhor a pôde circunstanciar em
todas e em cada uma das 13 participações que constituem um
corpo de História Geral e Particular do Rio Negro, informa-nos de
tudo o que julga mais útil de saber sobre aquela parte, que continuou
a ser navegado e colonizado por portugueses, delineando e concluindo a
volumosa monografia que ainda hoje se lê com deleite e proveito.
Ferreira menciona mais de 60 grupos indígenas, a que faltava
até mesmo a identidade lingüística, com
os seus variados dialetos. E como as povoações nem
sempre se constituíam de famílias da mesma origem, em cada
uma delas se ouviam vozes poliglotas, interpretativas do linguajar de cada
componente etnográfica. Depois, examina-lhes as superstições,
os costumes, os ornatos, bailes, instrumentos de toda espécie.
Indispensáveis à história do povoamento da Amazônia
são os três capítulos em que sintetiza as suas idéias
a respeito da formação da variedade racial, que se elaborava
naquele cenário portentoso. Outros ainda se assinalavam pela
abundância de informações, como o referente à
agricultura, cujo atraso atribuiu a várias causas.
Aponta com franqueza as deficiências do comércio, entravado
pela ganância, pelas dificuldades de transporte e pela escassez
de manufaturas. Relaciona o que vira a respeito da utilização
das tartarugas para o preparo de banha e manteiga dos ovos, da cerâmica,
dos tecidos de palhinhas ou fibras vegetais e da fabricação
da aguardente de cana, apesar da proibição oficial.
Imbuído do imperialismo econômico metropolitano, contraria
a orientação oficial, visto que em exportar das colônias
as matérias primas para lhes reexportar, depois de manufaturadas,
consiste o ganho real e certo; sugerindo recolher tão somente o
maior número de suas produções, reservando para os
braços do reino manufaturar aquelas que para lá pudessem
transportar.
Tinha, em elaboração, a minuta acerca do Rio Branco,
do café, do tabaco e de alguns animais, faltando-lhe folga para
lhes dar a forma final e entregá-las ao copista, das quais se conhece
apenas o Tratado Histórico, capítulo desenvolvido do que
seria a obra completa, acompanhado de notas esparsas. As outras,
ao que nos conste, perderam-se de todo, sumindo do espólio literário
do naturalista.
A demora em Barcelos permitiu-lhe concluir vários ensaios iniciados
e de mandar o jardineiro Agostinho Joaquim do Cabo colecionar plantas e
peixes no Uaracá e no Solimões. Quando lhe chegou a
desejada resolução que o afastaria para Mato Grosso, pôde
vangloriar-se dos serviços realizados na Amazônia.
O RIO MADEIRA
Apesar de atormentado pelos aborrecimentos que lhe causava a resistência
passiva dos índios, não se descuidou Alexandre Rodrigues
Ferreira de completar a memória relativa ao Madeira, iniciada em
Barcelos, quando se preparava a expedição, cujo extrato é
datado de 30 de janeiro de 1789. Ao menos, a parte histórica
da memória, cuja cópia datou em Santo Antônio, ao levantar
acampamento, não é provável que tenha sido redigida
em meio das preocupações que o molestavam, dificultando-lhe
consulta aos livros, que lhe proporcionariam informações
em profusão.
O restante, sem dúvida, foi elaborado durante as demoras forçadas,
resultantes das deserções ininterruptas, a começar
da oferta a Martinho de Melo, ainda enaltecido como protetor da “Filosofia
Natural”. Aí, não oculta o seu projeto de ensaísta,
que visa a constituir no futuro, com as monografias parciais, o panorama
do conjunto. Ele acreditava que todas aquelas diferentes partes unidas,
quando o mandasse a Prudência e a Circunspecção no
escrever, formariam o corpo inteiro de semelhante obra, onde pormenoriza
informes que lhe testemunham o conhecimento das obras anteriores à
sua.
Acredita-se que não se extraiu cópia completa dela, como
também ocorreu com as suas referidas minutas sobre o café,
o tabaco, o cacau e monografias zoológicas. Por isto, sua
edição será feita a partir de diversos fragmentos
ou pequenos textos dispersos.
A descrição do Rio Madeira bastaria, porém, para
compensar os sacrifícios dos expedicionários, que ainda poderiam
averbar a seu crédito as remessas expedidas da Cachoeira de Santo
Antônio, que se constituíam de 52 volumes de produtos naturais
e 63 desenhos.
OBSERVAÇÕES ZOOLÓGICAS
Por essa época, surgiu-lhe a oportunidade de retocar a monografia
em que enfeixava suas observações zoológicas,
colhidas nas excursões pelos rios Amazonas, Negro e Madeira: Observações
gerais e particulares sobre a classe dos mamais observados nos territórios
dos três rios, das Amazonas, Negro e da Madeira. Datou-a em
Vila Bela, aos 29 de fevereiro de 1790, ligando a sua obra à remota
capital mato-grossense.
Em verdade, nenhuma outra é mais expressiva das qualidades e
defeitos do naturalista, cujo saber, bebido em leituras constantes e robustecido
pela contribuição pessoal, aí se derramou à
larga, superior a qualquer restrição imposta pelo título.
Em certo ponto, enumerando enxames de marimbondos, mutucas, mosquitos,
dá relevo à formiga, “de que há muitas espécies,
e que os tapuias mesmos chamam reis do Brasil, pelo supremo império
que exercita em tudo quanto são plantações, é,
com efeito, uma das pragas do país”.
Volta à explanação, pelo estudo da ordem I dos
Primatas, onde se incluía o homem.
Tratando dos índios, nota que não os enfeava nenhum defeito
físico e que, entre eles, “a agilidade excede à força”.
Por isso, o negro é mais forte para o trabalho de enxada e o índio
mais ágil para o serviço das canoas. Os índios,
“alimentados ou não, são inimigos do trabalho, porque o não
podem fazer, quando faltos de alimento, e porque não querem, quando
abastecidos dele”.
Suas principais causas são as cinco seguintes: 1ª - não
se habituaram ao trabalho desde cedo; 2ª - a falta de ferramentas
e animais auxiliares; 3ª - a prodigalidade da natureza;
4ª - a facilidade de obter tudo de que necessitasse com pequeno esforço;
5ª - a liberdade do comércio dos dois sexos, onde, quando
e como apetecer.
É admirável que “por motivo de uma dor, se não
ouve gemer um índio, antes é capaz de sofrer a amputação
de um braço ou de uma perna, sem dar o menor suspiro.”
Tratando do peixe-boi, preocupa-se com a sua extinção,
lembrando que a sua pesca não teve qualquer regulamentação
até então e que um peixe-boi deve gastar anos para chegar
ao seu devido crescimento, mas em todos eles se arpoam indiscriminadamente
todos os que aparecem, não se distinguindo o tempo em que as fêmeas
andam prenhes, arpoando-as prenhes ou não. Elas, que não
parem mais de um filho por ano. E os filhotes tirados do ventre das
mães para nada servem. Não se distingue o tempo da
criação, porque antes é felicidade para o arpoador
surpreender o filho para arpoar a mãe. Não se distingue
a idade porque, pequenos e grandes, todos são arpoados. Por
isto, não deve causar admiração a sua raridade em
alguns lagos onde eram pescados em boa quantidade até recentemente.
SUAS VISITAS ÀS GRUTAS MATO-GROSSENSES
Às vésperas de São Pedro, surdo aos convites para
folganças tradicionais, partiu, com a sua comitiva, em busca da
vila em que primeiro se condensaram bandeirantes, entre Coxipó e
o Cuiabá. A viagem morosa, como exigia a preocupação
de aumentar as colheitas de amostras nos três reinos da natureza,
dilatou-se por uma semana, até Lavrinhas, onde o guarda-mor Manoel
Veloso Rebelo e Vasconcelos possuía “as maiores fábricas”,
à distância de 15 léguas de Vila Bela.
Afinal, encontraram o que tanto buscavam: “Está
situada a Gruta das Onças nas abas de um morro, tendo a sua base
voltada para O.S.O. Por ela sai um ribeirão de água
fria, clara e cristalina, a qual corre sobre um leito de areia branca,
fria e móvel.”
Descrevendo-a, recordou outras, celebrizadas pela beleza ou esquisitice,
naturais ou fantasiadas pelos poetas, assim como a curiosidade que o prendeu
ao ler a narrativa dos seus primeiros exploradores.
De volta, assaltou-o copioso aguaceiro, que lhe encharcou a roupa toda,
agravando-lhe o resfriado que apanhara. A caminhada excessiva para
o seu organismo já debilitado pela moléstia, a nutrição
deficiente, o corpo envolto em vestes molhadas, tudo contribuiu para prostrá-lo,
presa indefesa de atroz perniciosa. Mal pôde alcançar
Lavrinhas, onde o guarda-mor Veloso o acolheu com desvelo e amizade, tratando-o
como lhe era possível.
Enfraquecido pela doença que o deixara desacordado vários
dias, até 27 de julho, já em agosto seguinte se encontrava
a caminho do Jauru, onde colheu amostras de sal, cujo beneficiamento promoveria.
Em Cuiabá, restabeleceu-se de todo e se preparou para viajar até
o forte de Coimbra, depois de redigir a descrição daquela
gruta.
Outra mais grandiosa deveria explorar, ao fim de alongada viagem por
água, ao som da correnteza até Coimbra, em cujas imediações
a descobriram alguns caçadores do reduto militar, iniciado em 75.
“Eis aqui onde a natureza me tinha preparado o maravilhoso espetáculo
que recompensou dignamente tanto o perigo como o meu trabalho; porque,
olhando, à primeira vista, o todo que se me oferecia, depois de
distribuídas as luzes em proporcionadas distâncias, representou-se-me
uma mesquita subterrânea que, observada por partes, de cada uma delas
saltava aos olhos uma diferente perspectiva.
A que do fundo daquele grande salão se oferece à vista
do espectador, colocado na entrada dele, é de um magnífico
e suntuoso teatro, todo ele decorado de curiosíssimos estalactites,
uns dependurados da abóbada que se constitui o teto, como outras
tantas goteiras fusiformes, curtas ou compridas, grossas ou delgadas, redondas
ou compressas, símplices, bifurcadas, ramosas, verrugosas, tuberosas
etc.; outras alçadas ao pavimento, à maneira de pilares,
colunas, colunetas, lisas ou caneladas, pavilhões de campo etc.,
e um destes tão grosso que dois homens a não abraçam.”
Deslumbrado, permanecera em perscrutação minuciosa, até
que os archotes, ao fim de quatro horas, começaram a apagar-se.
Interrompeu-a para voltar ao dia seguinte, quando o ambiente, esfumaçado
pela combustão da véspera, mal permitia escassa propagação
da claridade. Afinal, em terceira investida, conseguiram os desenhadores,
com extraordinário esforço, esboçar os prospectos
a que se referia o naturalista para completar a sua descrição.
ALEXANDRE E OS ÍNDIOS
No Baixo Paraguai, onde o sargento-mor José Joaquim Ferreira
se encontrava, desde dezembro anterior, como comandante do presídio
de Coimbra, coube ao naturalista a ocasião de sondar os pensamentos
dos guaicurus, outrora hostis e, por essa época, inclinados a pacífica
aproximação. Desconfiados, não se abriam em
confiança com o forasteiro, senão por intermédio de
alguns, de sua simpatia, entre os quais se incluía o Pe. João
José Gomes da Costa, com os quais conversava há tempos e
poderia adiantar informação a respeito.
Baseado no que ouviu desse padre e na observação do cacique
João Queimá de Albuquerque e sua escolta, enfeixou o viajante
as suas notas na carta de 5 de maio de 1791, endereçada ao Capitão-General,
terminada à “boca do canal de fora da lagoa de Uberaba em viagem
pelo rio Paraguai”, onde resume as suas características mais
salientes, destacando duas: 1ª) Enterravam os seus mortos em
covas de 7 palmos, deitados sobre esteiras e, simultaneamente, ao lado,
o cavalo de sua preferência, sacrificado a lançadas. 2ª)
Costumavam escravizar prisioneiros que, todavia, tratavam com benignidade.
Quanto a seu escravagismo, comenta Ferreira:
“Nós os chamamos bárbaros, porém eles, nesta parte,
não desonram tanto a humanidade, como as mais polidas nações
da Europa, que sem embargo de terem a razão exercitada pela Filosofia
e iluminada pela Revelação, em se estabelecendo na América,
parece que, de propósito, excogitam os meios de fazer mais pesado
o jugo da escravidão dos negros.”
A simpatia com que Alexandre Rodrigues Ferreira contribuíra
para a assinatura do convênio de paz entre o representante máximo
da coroa portuguesa e o sagaz cacique dos guaicurus era a mesma que lhe
inspirara repulsa formal à pacificação a ferro e fogo,
que se consumara no Guaporé, onde os vencidos eram metidos em correntes
ou gargalheiras e depois repartidos pelos conquistadores, além de
sofrerem atrocidades inauditas e indignas de se referirem.
Destes tempos, revela-se a piedade humana do naturalista pelos sofredores,
ainda que da mesma raça dos que lhe haviam causado aborrecimentos
inumeráveis.
CURANDO MALES
As provações pelas quais passara ao avizinhar-se da capitania,
agravadas no Guaporé, que o recebera com um dos seus traiçoeiros
repiquetes, a que atribuíam a provocação de agentes
malignos, e mais ainda, em Lavrinhas, onde a morte o rondou, por dias inesquecíveis
aos que lhe velaram à cabeceira, e o acolhimento amistoso que lhe
facilitava a incumbência, tudo concorria para estimular a bondade
natural que o fazia desejar ser útil, de alguma forma, à
população a que se afeiçoara.
De dois modos cuidou de prestar-lhe o concurso de seus conhecimentos,
conforme as idéias que lhe brotavam de firmes convicções.
Se as conclusões do naturalista resultavam de premissas relacionadas
a inconsistente concepção econômica, nem por isso desmerecem
as suas informações a respeito da organização
de trabalho na capitania em suas Observações Filosóficas
e Políticas sobre as Minas de Mato Grosso, sem uma última
revisão que as enfeixasse em ordenado ensaio, como o que dedicou
ao estudo médico-sanitário da região, com o rótulo
de Enfermidades Endêmicas da Capitania de Mato Grosso. Este
não era da sua especialidade, mas lhe espelhava intuitos humanitários,
visando o benefício da população que o acolhera.
Explica, de entrada:
Depois de eu ter observado pelo espaço de dous anos quais eram
as enfermidades endêmicas da Capitania de Mato Grosso e de ter ao
mesmo tempo reconhecido que a maior parte delas se não remediava,
como poderia ser, em se vulgarizando os necessários conhecimentos
médicos, para com eles se suprir a falta de professores, assentei
comigo de vulgarizar os que possuía, ou fossem próprios,
ou alheios, e concluído este opúsculo, franqueá-lo
aos que o quiserem ler e tirar dele o proveito que se lhes pode seguir.
Elaborado nos escassos vagares da sua lida, anuncia: “saiu, ultimamente,
este pequeno sinal do meu zelo e não do meu instituto”.
Ainda uma vez, obedecia simplesmente ao impulso pragmático,
orientador de sua atividade, que, todavia, não dispensaria a exibição
de conclusões gerais a que o levaram pesquisas locais.
Assim foi que, antes de entrar propriamente no assunto, julgou indispensável
sintetizar, em breve Noção Física do País,
tudo quanto pudesse concorrer para agravar os males reinantes, pois sem
o conhecimento do “céu e do terreno” em que vivem, não
poderiam os habitantes avaliar as suas qualidades ou defeitos.
Às doenças já comuns, associou-se o sarampo, em
1789, a cuja conta se atribuiu o acréscimo da mortalidade, complicado
com outras enfermidades.
Examinou as circunstâncias aparentes das salinas e cuidou de
beneficiar o seu produto, mediante operações químicas
de fácil aplicação, com que poderiam os interessados
aperfeiçoar sua indústria caseira.
No assunto, sentir-se-ia mais à vontade, seguro do seu saber,
do que ao versar propriamente os problemas clínicos da região
iniciados com discreta ressalva: “Quanto a mim, que nem expendo a
matéria ex professo, nem a tenho praticado, senão à
falta de professor...”
DE BELÉM A LISBOA
Enquanto permaneceu no Pará, antes ou depois do casamento, não
cessou Alexandre Rodrigues Ferreira de adiantar as suas pesquisas.
Aí teria ultimado o texto acerca das Enfermidades Endêmicas
da Capitania de Mato Grosso, para acudir ao sofrimento humano, iniciando
outro, que datou de 24 de abril de 1792, em defesa dos direitos de sua
pátria, com o título de Propriedade e Posse das Terras do
Cabo do Norte pela Coroa de Portugal.
A opulência de fatos, em que se baseia, não será
integralmente do mesmo uniforme quilate, mas lhe espelha a agilidade intelectual,
capaz de enfrentar as mais díspares questões.
Antes de findar o primeiro mês da convivência nupcial,
em plena lua de mel, encerrou-se a atividade produtiva de Ferreira no Brasil,
de onde se afastaria para não mais voltar, escoltado pela carta
do Capitão-General do Grão-Pará, Francisco de Sousa
Coutinho, que assim resumia as apreciações dos seus colegas,
ao escrever ao ministro Martinho de Melo, em data de 15 de outubro de 1792:
Em o navio Príncipe da Beira, de que é comandante o tenente
Manoel da Silva Tomás, embarca o Dr. Alexandre Rodrigues Ferreira
com os desenhadores José Joaquim Freire e Joaquim José Codina,
levando também dois índios capitães das sua povoações
e que acompanharam esta expedição como preparadores.
Estes iam pleitear recompensas à dedicação com
que, em tão longa jornada, serviram inteligentemente ao naturalista,
a respeito de quem conceituava o Governador: “dificilmente se encontrará
pessoa que a tanto talento e merecimento una tão boas qualidades;
a todos deixa sentidos da sua ausência.”
Esse é o homem que tornava a Portugal, em momento de terríveis
convulsões políticas e sociais que lhe embaraçariam
o prosseguimento da missão científica.
Como teria sido Ferreira acolhido pelos seus colegas e pelo governo,
ao cabo da trabalhosa comissão?
No que mais importa, informa o Prof. J. V. Barbosa du Bocage:
A tradição refere que o Dr. Alexandre encontrara, ao
regressar ao reino, os exemplares que coligira à custa de tantas
fadigas e remetera com o maior desvelo para o Gabinete da Ajuda, deteriorados
na maior parte e confundidos todos, perdidos ou trocados os números
e etiquetas que traziam.
Ultimado a 8 de novembro de 1794, o Inventário lhe patenteia
o minucioso espírito de exatidão a que não escapava
detalhe algum. Aí enumerou 96 mamais, inclusive 20 macacos
indeterminados, 1250 aves, em cujo número figuravam 126 do Brasil,
601 anfíbios, 1230 peixes, tabuleiros de insetos, vermes, 224 plantas
da América ainda não examinadas, mudas recentes e quanto
havia no museu. Na Casa de Desenho relacionou: 1015 desenhos
feitos na expedição do Pará, 24 desenhos feitos na
expedição de Angola, 16 desenhos feitos na expedição
de Moçambique, 1048 desenhos feitos de várias procedências.
O PATRIOTISMO E AS RECOMPENSAS OFICIAIS
Mercê dos trabalhos que apresentara ao regressar, Ferreira obteve
a concessão do “Hábito de Cristo com sessenta mil réis
de tença” e, em seguida, a incumbência de balancear o que
houvesse de aproveitável no Museu, visto haver falecido o seu administrador,
Júlio Matiazzi.
Do pontual desempenho dado à missão, de que resultou
o Inventário já referido, rendeu-lhe a nomeação
como Vice-Diretor do Real Gabinete de História Natural, Jardim Botânico
e estabelecimentos conexos, em 1795.
O governo atravessava penoso período, derrotado por Napoleão,
motivo da final desgraça do naturalista, obrigado a exercer cargos
que lhe roubavam o tempo necessário à conclusão das
pesquisas científicas.
À ciência deu a mocidade promissora, afogada nas florestas
úmidas; a vida, mais de uma vez ameaçada; a liberdade, encadeada
às restrições impostas pelo matrimônio; o legado
paterno, que se esgotara.
O naturalista externou sua opinião como uma bomba:
Sacrifique Portugal embora dos outros Domínios, que possui nas
outras partes do mundo, aquele que lhe parecer, sem excetuar ainda mesmo
alguns dos que tem na fronteira deste reino, porque aqui na Europa, correndo
as cousas como correm, nunca Portugal se graduará na Escola Política
das Nações, senão de uma potência de última
ordem. Porém aí no Brasil ainda na última extremidade
de ser obrigado a refugiar-se nele; aí, digo eu, mutatis mutandis,
tem Portugal sobejamente com que vir a ser um florescente império.
Tais conceitos, expostos sem temor por um brasileiro, que sugeria a
vantagem do sacrifício territorial do reino para evitar a mínima
cessão de terra na colônia americana, que lhe parecia ser
base esplêndida para soerguimento do império ferido pelas
garras napoleônicas, ainda valeriam para demonstrar o seu acentuado
patriotismo e sua visão profunda.
VÍTIMA DE NAPOLEÃO
Governado por uma rainha, enlouquecida desde 1792, e pelo filho,
cuja mulher acariciara a hipótese de obter-lhe a interdição
por motivo análogo, refletia-se no cenário político
a mesma abulia doméstica do Príncipe, e frouxa irresolução,
de que Bonaparte não deixaria de estar bem informado.
A esquadra lusitana que se conservava de prontidão com intuitos
opostos, mobilizou-se apressadamente e recebeu a população
que se desterrava, com a sua corte, para não sofrer o domínio
estrangeiro.
Alexandre Rodrigues Ferreira não desprezou Lisboa, nem o seu
museu. Não arredou pé do seu posto de trabalho, onde
sofreria a mortificação máxima, praticada em nome
da ciência a que se consagrara.
Munido de ordens formais do procônsul, de 3 e 12 de junho e 1º
de agosto de 1808, Geoffroy Saint-Hilaire apartou no Gabinete da Ajuda
quanto lhe foi do agrado.
Jamais naturalista algum lograra, em dias de mais ativa colheita, ajuntar
coleções tão preciosas, como lhe proporcionara a invasão
de Portugal. Aliás, se o reino tivesse sido conquistado na sua totalidade,
não haveria mal algum na transferência de uma de suas repartições
para o “Jardim de Plantas” de Paris.
Seu diretor, Vandelli, não lhe conseguiu embargar a depredação,
a que Ferreira assistiu, estuporado.
Era o golpe derradeiro com que a infelicidade dava fim a sua abnegada
atividade científica. Sonhara, em sua mocidade, laurear-se
de glórias, no serviço da ciência a que se consagrara.
Por honrá-la, desprezou as vantagens e o conforto de uma cátedra
da Universidade, para se embrenhar em florestas ínvias, onde mais
de uma vez a morte lhe roçou os flancos. E desinteressadamente
completara, com seus recursos, a verba insuficiente que lhe reservara o
governo para o custeio da expedição.
Mas não suspeitaria jamais que tivesse de presenciar o confisco
das suas plantas, conservadas com tanto empenho, e bicharia exótica,
antes que pudesse inseri-las no lugar competente das classificações
naturais, com as devidas denominações latinas.
Autor fecundo, a penúria do reino condenou-o ao ineditismo.
Desgostou-se da vida e do convívio social, que mal suportaria.
Nenhum apego teria mais ao Museu, a cujos trabalhos entretanto provia
com a solicitude do funcionário exemplar.
Foi assim que, no leito de agonia, ainda assinou a conta de despesas
do ano encerrado e, momentos após, emudeceu definitivamente, aos
23 de abril de 1815, sem ter alcançado as honras a que fazia jus
o seu talento.
O ESPÓLIO DE ALEXANDRE HOJE
Desaparecido o naturalista a 23 de abril de 1815, não tardou
o governo lusitano em apossar-se dos seus escritos, relacionados no “Catálogo
geral dos papéis pertencentes à viagem do Dr. Alexandre Rodrigues
Ferreira aos Estados do Brasil, que me foram entregues por ordem do Ilmo.
e Exmo. Sr. Visconde de Santarém”, assinado por Félix de
Avelar Brotero e que se encontra em duas cópias na Biblioteca Nacional.
Em 1838, Academia Real de Ciências requisitou esses papéis
para lhes aquilatar a densidade científica e promover-lhes a devida
publicidade, que não se fez por falta absoluta de recursos.
O governo imperial brasileiro resolveu tomar a incumbência de
divulgar a obra de Ferreira, delegando poderes ao Barão de Drummond,
Embaixador em Portugal, para que a recebesse da Academia, para seguirem
o caminho dos prelos.
No desempenho da missão, de caráter literário,
que lhe seria tão de gosto, Drummond apôs-lhes a sua rubrica,
depois de enumerar todas as peças recebidas, e encaminhou-as para
a Biblioteca Nacional, onde Vale Cabral as folheou, para o seu valioso
balanço bibliográfico, estampado nos respectivos Anais, tomo
I e II, em que dá conta da singular dispersão das obras de
Ferreira, levadas à “Exposição de História
do Brasil” (1881) por meia dúzia de bibliófilos.
JUÍZO DA POSTERIDADE
À míngua de provas do seu justo valor, visto que os escritos
que deveriam servir-lhe de credenciais jaziam aferrolhados nas gavetas
arquivadoras, privados da luz da publicidade, entraram os doutos a discutir
a fama e a reputação do mal afortunado naturalista, cuja
vida se pontilhara de modelares atos de renúncia e alto sentimento
do dever a cumprir.
A primeira voz a elevar-se foi a de Manoel José Maria da Costa
e Sá, que ainda fora seu contemporâneo e consócio
na Academia Real das Ciências de Lisboa, proferindo-lhe o panegírico
impresso no tomo IV “Memórias daquela mesma Academia. No discurso,
transbordante de admiração e simpatia pelo inditoso naturalista,
fundamentaram-se todos os que depois trataram do assunto.
E menos o fizeram outros que o apelidaram de “Humboldt Brasileiro”,
expressão usada por Varnhagen em seu Florilégio.
Entre os seus biógrafos, contam-se dois naturalistas que tinham
autoridade especializada para lhe avaliar o mérito das obras: Barbosa
du Bocage e Emílio Goeldi.
Mas Barbosa du Bocage, que revelou particularidades até então
ignoradas relativamente à missão pilhadora de Geoffroy, não
encontrou mais, em Lisboa, os manuscritos alexandrinos, que Drummond enviara
ao Brasil, e não poderia, pois, opinar acerca da sua valia científica.
Coube a Emílio Goeldi examinar-lhe os ensaios publicados e proferir
o primeiro julgamento de naturalista consumado, que elegera para campo
de suas observações a mesma portentosa Amazônia, por
onde Ferreira passou mais de um século antes.
Alexandre Rodrigues Ferreira jamais recebeu auxílio científico
de colega algum, nem lhe poderiam oferecer os dois “riscadores”, que dedicadamente
o acompanharam. E, no Museu, a manifestação única
de competentes visou desvalorizar-lhe o trabalho, conforme depoimento do
Prof. Barbosa du Bocage.
Não teve liberdade de ação, restrito às
instruções do Ministério e dos Capitães-Generais,
todas orientadas por finalidade utilitária. Não era
um sábio livre dos apertos financeiros, como Humboldt, mas simples
funcionário da Coroa, que dele exigia a aplicação
do seu saber em assuntos de imediatas vantagens. Admira-se até
como pudesse coligir achegas para as suas interessantes memórias,
em meio das suas múltiplas preocupações burocráticas.
Raríssimas pessoas manusearam suas principais monografias, nas
quais enfeixou sugestões acerca de Geografia, Botânica, da
influência do hábitat sobre o homem, da indolência tropical,
da necessidade imperiosa de metodizar os trabalhos agrícolas e navegação,
indispensável à conquista verdadeira da terra.
Surge como sagaz antropogeógrafo, antes de sistematizada a Antropogeografia.
Desprovida de artificialismos, a sua linguagem deu foros de cidade
a brasileirismos sem conta, que Vale Cabral pretendia recensear, calculando-os
em mais de dez mil.
Quem tanto se consagrou abnegadamente ao melhor conhecimento do Brasil,
bem merecia ser lembrado com homenagens condignas. Entretanto, além
da justa iniciativa de Freire Alemão, que lhe insculpiu o nome esquecido
no gênero de plantas Ferreirea, consoante comunicou a Emílio
Goeldi o Dr. Paubert, então diretor do Real Museu Botânico
de Berlim, raras são as manifestações enaltecedoras
da memória do sábio inditoso.
A conspiração do silêncio que, em vida, lhe impediu
a publicidade de seus ensaios magistrais, ainda continua, transcorrido
mais de dois séculos, a mantê-los no mesmo sombrio isolamento
que os desvaloriza.