"LIVRO DE ISAAC": SUBSÍDIOS PARA O ESTABELECIMENTO DO STEMMA CODICUM DAS VERSÕES MEDIEVAIS PORTUGUESAS
César Nardelli Cambraia (USP)
0. Introdução
Três foram as versões medievais portuguesas do Livro
de Isaac (também chamado Livro do Desprezo do Mundo) que chegaram
até os dias de hoje: uma está presente no códice 50,
2, 15 da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BN-RJ); outra consta do
códice alcobacense CCLXX/461 da Biblioteca Nacional de Lisboa (BNL);
e a terceira encontra-se no códice CXIII/1-40 da Biblioteca Pública
e Arquivo Distrital de Évora (BPADE). Mas qual é a relação
entre essas versões no processo de sua transmissão? Teriam
essas versões percorrido caminhos independentes ou há algum
grau de parentesco entre elas? Essas são as questões que
serão debatidas aqui.
É necessário, primeiramente, esclarecer que o presente
trabalho não tem como objetivo apresentar dados conclusivos sobre
a relação entre as citadas versões medievais portuguesas,
mas, antes, dados que sirvam de subsídios para o estabelecimento
de uma hipótese de trabalho inicial a ser testada futuramente em
outra oportunidade. Este trabalho não apresentará dados conclusivos
em razão do próprio método adotado: uma vez que todas
as três versões ainda não foram editadas segundo rigorosas
normas de edição, não é ainda possível
realizar uma investigação exaustiva das versões. Além
disso, também não se editou ainda a versão latina
do texto (trata-se do cód. alc. CCLXI/387 da BNL), que muito provavelmente
terá servido de fonte para a tradução de alguma das
versões portuguesas .
Entretanto, uma vez que já se encontram editadas, segundo
rigorosos e modernos critérios, duas das edições portuguesas
- a da BNL e a da BPADE - (cf. Cambraia (em preparação)),
optou-se aqui por tentar dar um primeiro passo para o estabelecimento das
versões portuguesas com base em uma análise, não da
obra por inteiro, mas sim de uma parte dela. Porque o códice de
Évora constitui uma coletânea de excertos do Livro de Isaac,
optou-se, então, por se compararem todos os excertos desse códice
(39, no total) com as outras duas versões portuguesas e também
com a latina. Para poder realizar o exame com base em dados seguros, foi
feito o estabelecimento do textos dos excertos extraídos da versão
portuguesa da BN-RJ e da versão latina da BNL com base nos mesmos
critérios utilizados na edição semidiplomática
das versões da BNL e da BPADE (cf. Cambraia (em preparação))
.
Do ponto de vista teórico, o presente trabalho se baseia
na orientação adotada no estudo sobre a relação
entre as versões medievais portuguesas dos Diálogos de São
Gregório (Mattos e Silva, 1971). Apesar de o citado ensaio ter sido
tomado como referência, fizeram-se necessárias algumas adaptações
em função das idiossincrasias tanto do objeto quanto do objetivo
deste estudo, que constitui essencialmente no estabelecimento de hipótese
de trabalho para futura investigação.
1. Descrição sumária dos códices
O testemunho da BN-RJ, nomeada pelo copista de Livro de
Isaac, está presente em códice pergamináceo do início
do século XV, composto de 114 folhas sem numeração,
copiado e iluminado por Frei João d’Anha em letra gótica.
Essa versão, composta de 48 capítulos, encontra-se completa.
A versão da BNL acha-se nos fólios 14r-101r do códice
alcobacense CCLXX/461, que se compõe de folhas de pergaminho e de
papel com a dimensão de 210 x 140 mm. Embora na habitual folha de
rosto que se acrescentava aos códices alcobacenses no século
XVIII conste como título Livro do Desprezo do Mundo, nas folhas
originais do códice (fls. 101r e 160v) aparece sempre Livro de Isaac.
A letra é classificada como cursiva miúda de fins do século
XV por Anselmo (1926:78), cursiva do século XV por Nascimento (1993:328)
e como gótica do século XV por Teresa Maria Duarte Ferreira
(Aquisições (1997:8)) . Essa versão compõe-se
de 48 capítulos, embora faltem o primeiro, o segundo e uma parte
do terceiro: o códice está mutilado, não possuindo
os fólios 1 a 13. Por fim, o testemunho da BPADE encontra-se
nos fólios 13r-20r do códice de cota CXIII/1-40. Trata-se
de códice composto 45 folhas de papel, com dimensão de 145
x 110 mm, em português do século XV. Essa versão consiste
em uma coletânea de excertos e não se divide em capítulos.
Embora o objetivo fundamental deste trabalho seja estabelecer
a relação entre as versões portuguesas, ainda assim
se levará em conta o códice com a versão latina, pois
oferece importantes dados para a presente discussão. A versão
latina , que aparece com o título de De Vita Solitaria, encontra-se
nos fólios 94v-115v do códice alcobacense CCLXI/387 da BNL.
Trata-se de códice pergamináceo, com dimensão de 360
x 230 mm, em letra gótica, datado de princípios do século
XV (1409) e copiado por Frei Martinho de Alcobaça. Compõe-se
de 30 capítulos.
São essas, portanto, as quatros versões com que
se trabalhará aqui. Antes de passar adiante, no entanto, é
necessário fazer algumas observações sobre a datação
dos códices. Acolhendo-se as propostas de datação
dadas pelos estudiosos que já se debruçaram sobre os mencionados
códices, ter-se-ia a seguinte ordem: (a) Início do século
XV ? a versão latina da BNL (doravante LL ), datada, no próprio
códice, de 1409, e a versão portuguesa da BN-RJ (doravante
PR), baseando-se na descrição do catálogo da Livraria
Kosmos; e (b) Final do século XV ? a versão portuguesa da
BNL (doravante PL), segundo propõe Anselmo (1926). O problema é
a versão da BPADE (doravante PE), pois os autores consultados
dizem século XV, mas não especificam se do princípios,
meados ou fins. Entretanto, com base na alternância do valor da vogal
nasal final entre <om> e <am>, presente em PE mas ausente em PL,
pode-se aventar a hipótese de que seja de meados para fins do século
XV, mais provavelmente fins. Sendo assim, os testemunhos portugueses revelariam
três momentos do século XV: PR seria o início, PL de
meados para o fins e PE fins .
2. A relação entre os códices
2.1. Propostas anteriores
A rigor, apenas um estudioso aventou, e de forma bastante breve,
hipótese para a relação entre as versões: trata-se
de Martins (1956). Esse pesquisador, que provavelmente tinha conhecimento
da existência apenas das duas versões portuguesas existentes
na bibliotecas lusitanas (PL e PE) e da versão latina (LL), afirma
que: “se algum apógrafo latino se aproxima da tradução
em português, esse é o códice alcobacense acima nomeado
[isto é, o que se denomina aqui LL] - embora nem sempre os capítulos
caminhem paralelamente” (Martins, 1956: 204). Ao falar sobre PE,
que constitui coletânea de sentenças, diz o autor: “Ora,
aconteceu o mesmo [ou seja, elaboração de condensados de
autores famosos] às coleções de sentenças,
tiradas dos escritos de Isaac de Nínive. Foram traduzidas e existe,
ainda, uma destas antologias, tirada do Liber de Contemptu Mundi [da versão
latina, portanto], em português do séc. XV. São umas
setes folhas do cód. CXIII/1-40 da Bibl. Públ. de Évora,
com frases de Isaac de Nínive, agrupadas em capítulos minúsculos”
(id, ib.). Assim sendo, PE seria uma versão traduzida diretamente
de LL. Em síntese, segundo Martins (1956), tanto PL quanto PE seriam
oriundos de LL.
Nascimento (1993), que, a princípio, parece ter extraído
os dados que apresenta do próprio texto de Martins (pois é
a única obra que consta na sua bibliografia), defende que PE, “também
em português do século XV, agrupa um conjunto de sentenças
que não parecem dependentes do testemunho alcobacense” (Nascimento
(1993:329)). Partindo-se do pressuposto que esse autor esteja considerando
como “o testemunho alcobacense” apenas a versão PL - e não
se incluindo LL, embora esta versão, latina, também seja
proveniente do Mosteiro de Alcobaça -, ter-se-iam, então,
duas diferentes tradições, gerando uma PL e outra PE. Não
esclarece, no entanto, qual seria a relação de LL com essas
duas versões portuguesas, já que diz apenas que a obra de
Isaac de Nínive “é também conhecida, na versão
latina, por De Vita Solitaria (id., ib.). A proposta que se pode inferir
do texto desse estudioso é, praticamente, a mesma de Martins (1956):
PL não depende de PE e vice-versa. A única diferença
consistiria na não-vinculação explícita de
PL e PE a LL.
Por fim, convém ainda fazer menção a Cepeda
(1995:135), que afirma ser PR “versão diversa da do códice
alcobacense [isto é, PL]”. Se, por “versão”, quer-se dizer
“tradução”, então PR teria uma tradição
diferente de PL e PE, cujo possível ponto comum teria que remontar
uma versão latina. Cepeda (1995), assim como Nascimento (1993),
não discute a relação entre as versões portuguesas
e a latina.
Todas essas propostas são, na verdade, essencialmente
especulativas, na medida em que não se baseiam em estudo comparativo
rigoroso dos textos. É exatamente, por isso, que se optou aqui por
tentar estabelecer uma hipótese inicial sobre relação
entre os testemunhos portugueses baseada em minucioso exame de um conjunto
de excertos das três versões portuguesas (e da latina).
2.2. Proposta com base nos dados apurados
A avaliação do “parentesco” entre as versões
portuguesas será feita essencialmente através da comparação
entre as variantes. Convém, entretanto, esclarecer que se está
considerando aqui como variante qualquer tipo de diferença entre
os testemunhos portugueses (excetuando-se apenas as variações
que, a princípio, seriam puramente gráficas, tais como <u>
x <v>, <?> x <?>, etc.). Assim sendo, não estão
sendo diferenciados, neste primeiro momento, os erros (“qualquer lição
que o autor do texto não pretendeu escrever, seja ela formal ou
ideológica” (Spina (1994:104)) das variantes propriamente ditas
(“versões diferentes de uma palavra ou pequeno número de
palavras ocorrentes em manuscritos diversos da mesma obra” (Spina (1994:104)).
A diferença será estabelecida mais adiante, quando algumas
variantes forem analisadas detidamente.
As variantes serão classificadas, entretanto, segundo
sua natureza: fonética (F), morfológica (M), sintática
(S), lacunar (C) e textual (T). Consideram-se aqui como variantes fonéticas
aquelas diferenças entre os testemunhos baseadas nos sons representados.
Por variantes de natureza morfológica, consideram-se aqueles casos
de diferença quanto ao número, gênero, tempo
e modo verbais, etc. Variantes sintáticas são aquelas que
dizem respeito a ordem dos constituintes, a regência verbal, etc.
São tratadas como variantes lacunares os casos em que um item
ou uma seqüência está presente em algum testemunho mas
ausente em outro. Por fim, há ainda as variantes textuais,
que consistem nos casos de diferença no item lexical
ou em um dado trecho. Classificadas as variantes, foram posteriormente
organizadas segundo o tipo de relação que estabelecem entre
os testemunhos, a saber: PR = PL , PL = PE, PR = PE e PR ? PL ? PE.
2.2.1. Análise das variantes em geral
Com base no sistema de classificação das variantes
delineado acima, obtiveram-se os seguintes resultados:
Quadro 1 - Variantes em geral
TIPO DE VARIANTE
TIPO DE RELAÇÃO TOTAL
PL = PE PR = PL PR = PE PR ? PL ? PE
F 35 45 38 19 137 = 35,3 %
M 15 6 1 4 26 = 6,7 %
S 18 4 0 2 24 = 6,2 %
C 69 46 12 0 127 = 32,7 %
T 65 1 0 8 74 = 19,1 %
TOTAL 202 = 52,1 % 102 = 26,3 % 051 = 13,1 % 033 = 08,5 % 388 = 100%
Do ponto de vista numérico, percebe-se a seguinte hierarquia:
: PL = PE (52,1 %) > PR = PL (26,3 %) > PR = PE (13,1 %) > PR ? PL
? PE (8,5 %). Partindo-se do pressuposto que o número de identidades
nas variantes revela grau de parentesco, ter-se-iam, então, os seguintes
graus de parentesco, baseando-se apenas nos totais por tipo de relação:
(a) PL está mais próximo de PE do que de PR e (b) PR
está mais próximo de PL do que de PE. O que sugere, como
hipótese, que, no processo de transmissão, PL e PE estão
mais próximos do que PR e PL ou PR e PE.
É necessário, porém, estabelecer uma hierarquia
na representatividade das variantes segundo seu tipo, já que uma
dada variante fonética poderá estar representando muito mais
uma proximidade temporal (diacrônica) ou geográfica (dialetal)
na cópia do texto do que propriamente proximidade no processo de
transmissão. No estabelecimento dessa hierarquia, certamente as
variantes lacunares e textuais são muito mais importantes do que
as variantes fonéticas, morfológicas e sintáticas,
na medida em que criam divergências mais “irreversíveis”,
pois não há como se preencher a lacuna de uma cópia-modelo
com o trecho original (exceto se se tiver acesso a outra cópia sem
a lacuna), mas se podem alterar (ou retificar), por exemplo, divergências
morfológicas ou sintáticas levando-se em conta o contexto
da passagem. Assim sendo, se se examinarem separadamente estes dois grandes
grupos de variantes, têm-se os seguintes resultados:
Quadro 2 - Variantes por grupos
TIPO DE VARIANTE TIPO DE RELAÇÃO TOTAL
PL = PE PR = PL PR = PE PR ? PL ? PE
F / M / S 68 = 36,4 % 55 = 29,4 % 39 = 20,8 % 25 = 13,4 % 187
= 100 %
C / T 134 = 66,6 % 47 = 23,4 % 12 = 6,0 % 8 = 4,0 % 201 = 100
%
TOTAL 202 = 52,1 % 102 = 26,3 % 051 = 13,1 % 033 = 08,5 % 388
= 100%
A consideração das variantes segundo os dois grandes
tipos apresenta resultados curiosos, pois a hierarquia do grau de parentesco
mantém-se em ambos os tipos de variantes. Entretanto, as variantes
do grupo F / M / S revelam relações menos claras (já
que seus índices são próximos) do que as do grupo
C / T. Nas variantes desse último grupo, que se consideraram aqui
mais importantes (ou seja, as textuais e lacunares), há uma acentuação
da indicação da proximidade entre PL e PE que se havia obtido
através da análise geral (o valor de 52,1 % do total geral
aumenta para 66,6 % no total de apenas C / T). Nos outros tipos de relação
entre os testemunhos, há uma queda de mais ou menos igual valor
(5 pontos percentuais em média), mantendo-se a mesma hierarquia
no grau de parentesco. Em síntese, a análise essencialmente
quantitativa das relações de parentesco entre as três
versões portuguesas apontam para uma mesma direção:
maior proximidade entre PL e PE em relação a PR, proximidade
relativa entre PR e PL em relação a PE e relativa distância
entre PR e PE.
Uma vez que as variantes lacunares e textuais são mais
importantes e, na análise, revelam relações mais nítidas,
optar-se-á aqui por examiná-las detidamente. Não
se está, no entanto, admitindo aqui que as variantes F / M / S sejam
irrelevantes para a discussão, mas sim apenas que os dados de C
/ T parecem, neste caso, ser mais esclarecedores - pelo menos, nesta análise
preliminar.
2.2.2. Análise das variantes lacunares
As variantes lacunares, que constituem 32,2 % (127 casos) de
todas as variantes presentes no corpus, podem ser divididas segundo os
testemunhos, ou seja, em qual(is) versão(ões) não
ocorrem. O quadro abaixo apresenta a sua distribuição segundo
esse critério:
Quadro 3 - Variantes lacunares
TIPO DE TIPO DE RELAÇÃO TOTAL
VARIANTE PL = PE PR = PL PR = PE PR ? PL ? PE
Lacuna em PR 35 0 0 0 35 = 27,6 %
Lacuna em PL 0 0 3 0 3 = 2,4 %
Lacuna em PE 0 39 0 0 39 = 30,7 %
Lacuna em PL e em PE 34 0 0 0 34 = 26,7 %
Lacuna em PR e em PE 0 0 9 0 9 = 7,1 %
Lacuna em PR e em PL 0 7 0 0 7 = 5,5 %
TOTAL 69 = 54,3 % 46 = 36,2 % 12 = 9,5 % 0 = 0,0 % 127 = 100 %
Mais uma vez confirma-se a hierarquia: PL = PE (54,3 %)
> PR = PL (36,2 %) > PR = PE (9,5 %). A razão de a relação
PR ? PL ? PE ser igual a zero é bastante óbvia: ou
a lacuna está em um ou está em dois dos testemunhos, o que
sempre gera igualdade entre dois testemunhos: seja por possuírem
uma dada lacuna seja por não a possuírem. O fato de o maior
número de lacunas estar em PE cria uma maior proximidade entre PR
e PL, mas essa aparente proximidade deve-se, na verdade, a uma característica
especial de PE: o fato de constituir uma coleção de sentenças
da obra do Livro de Isaac. Assim sendo, o grande número de lacunas
em PE revela muito mais o seu caráter de antologia do que proximidade
entre PR e PL.
É exatamente por PE ser uma antologia que a ausência
de alguns de seus elementos em PR e PL é de grande relevância.
Há sete casos de lacunas simultâneas em PR e PL, mas cinco
delas são de menor importância por constituírem elementos
fortemente ligados ao contexto. O que realmente chama a atenção
são os dois excertos de PE que se reproduzem a seguir:
Excerto I Ecce nos r?<<l?>>qu?mus omn?a ? et s?ecut? s?umus te
? Q?d ergo er?t nob?s (PE, 13 v)
Excerto II Onde anb?os??o d?z ? Ante co?ta os teus v?c??os que as <<tuas>>
ve?tudes (PE, 13 v)
A ausência desses dois excertos em PR e PL, os quais, em
PE, estão juntos, sugere que (a) PE não teria sido
copiado de PR nem de PL ou (b) o copista teria utilizado, além de
uma das duas versões portuguesas, uma outra obra. O fato de um dos
trechos estar em latim, torna a hipótese (a) pouco provável
e ainda aproxima PE de um versão latina: mas de qual versão
latina, já que os mesmos trechos também estão ausentes
em LL ?
2.2.3. Análise das variantes textuais
De todas as variantes, certamente as textuais parecem ser as
mais significativas para a presente discussão: embora de forma
geral não constituam o maior número de variantes (são
74 casos correspondendo a 19,1 % de todas as variantes presentes no corpus,
ou seja, é a terceira em número de ocorrências, atrás
das fonéticas e das lacunares), as variantes textuais são
as que apresentam comportamento mais discrepante entre os testemunhos.
Confiram-se os números de T no quadro 1 apresentado anteriormente.
A primeira idéia que os dados do quadro sugere é
a de que PL e PE devem necessariamente ter uma versão portuguesa
comum em seu passado: isto se deve ao fato de haver um número excessivamente
alto de coincidências nas variantes textuais dessas duas versões
por oposição a PR, algo que dificilmente se teria se fossem
PL e PE duas traduções diferentes de um mesmo texto latino,
como supõe Martins (1956). Para ilustrar essa coincidência,
serão reproduzidos três excertos dos três testemunhos
portugueses, ao lado dos excertos correspondentes em LL:
LL PR PL PE
Excerto III nec potes?t ad te res?p?cere ?ndolo?e (108r) e no? pode
aty olha? ne? cata? e? ?e<<u>>choro (73v) e no? pode aty? oolhar
ne<?> es?guardar e? gemydos e choros (62’r) e no? pode aty oolhar
ne? es?gua?da? e? g??m?dos e choros (18r)
No excerto III, a expressão <ad te res?p?cere ?ndolo?e>
(literalmente “olhar por ti na dor/no sofrimento”) corresponde a uma versão
mais sucinta em PR (só se fala em choro, ainda por cima no singular)
e mais extensa em PL e PE (fala-se em choros e gemidos, ambos nos plural).
Note-se que, além dessa diferença entre os testemunhos nesse
trecho, há ainda duas outras: (a) a seleção lexical
correspondente a forma latina “res?p?cere” em LL - em PR, utiliza-se a
expressão <olha? ne? cata?>, mas, em PL e PE, emprega-se <oolhar
ne<?> es?guardar>/<oolhar ne? es?gua?da?>; e (b) há
em PR um possessivo - <s?eu> - identificando de quem seria o choro (pelo
contexto, seria do coração daquele que está perdido),
ausente em LL, PL e PE. Como esses três excertos, há ainda
64 outros mais, o que torna quase que obrigatório admitir uma origem
comum, já em português, para PR e PE. Caso contrário,
como se poderia explicar tamanha coincidência em tantas variantes
textuais?
Em síntese, até o presente ponto, foi possível,
com base nos dados analisados, chegar às seguintes hipóteses:
(a) Por razões óbvias, PR e PL jamais poderiam ter utilizado
PE como modelo (como extrair a obra inteira de uma síntese?); (b)
PL e PE devem ter tido uma fonte portuguesa comum, pois só assim
haveria tantas coincidências nas variantes textuais; e (c) PR deve
pertencer a uma tradição em língua portuguesa distinta
da de PL e PE, pois há muitas variantes lexicais em relação
a PL e PE, o que sugere ser parte de uma tradição que se
origina de uma tradução diferente da que encabeçaria
a tradição a que pertencem PL e PE. Esquematicamente, poder-se-ia
dizer que tais dados apontam para a seguinte hipótese:
Esquema 1 - Hipótese de relações baseada
nos dados
*L’
PR *L’’
*P’
PE PL
2.2.4. A relação das versões portuguesas com a
latina
A hipótese apresentada acima no esquema 1 não responde,
entretanto, às seguintes questões: Como LL se encaixa na
relação entre os códices portugueses? Seriam *L’ e
*L’’ um mesmo códice (LL?)? Caso sejam *L’ e *L’’ dois códices
diferentes, qual deles seria LL ? Seria LL um terceiro códice, estando
os possíveis dois outros desaparecidos? Na existência de mais
de uma versão latina, teriam elas uma origem comum ou viriam de
códices independentes?
Antes mesmo de apresentar mais dados a partir do texto dos códices,
uma hipótese pode ser estabelecida de antemão: LL estaria
mais perto de PL. Tal hipótese baseia-se no fato de ambos serem
códices alcobacenses: ora, se os dois pertenciam à Livraria
do Mosteiro de Alcobaça, é muito grande a probabilidade de
que LL e PL pertençam a uma mesma tradição.
Além desse argumento de natureza geográfica, há
ainda um argumento de natureza textual para aproximar LL de PL: trata-se
de uma citação em latim da Bíblia (vulgata),
que ocorre em LL, PL e PE. . Confira-se abaixo como ela aparece nos diferentes
testemunhos:
LL PR PL PE
Excerto
IV propheta dicens ? homo cum ?nhono?e es?s?et non ?ntellex?t ? et
c’ [?] ? Hono? rat?onal?s nature es?t d?s?cret?o ? Et ?us?te qu? perd?derunt
eam as?s??m?lau?t ?ns??p?ent?bus ?ument?s non habent?bus
rat?onale d?s?cretumen [?] (113r) mald?z?os opropheta ? e aquelles
quea ha? perd?da e aconhoce? e no? aquere? s?eg?? conparaos <<a>>as
bes?tas des?ens???nadas que no? ha? razo? ne? des?cr?ço? (100r)
mal d?z oprop{l}heta ? dd [?] ? homo cum ?nho<no>re es?s?et et
e? [?] ? Honrra da Rac??onal?natura he d?s?cr?ço? ?/ e co? ??us?ta
Razo? ? aquelles quea perdere??fez e demos?trou s?eer s?emelhantes a?a?s
bes?tas ? que s?o? s?e? Razo? e s?e? des?cr?ço? (89r) homo
cum ??nhonore es?s?et non ?n{{tellexe}} tellex??t: conparatus es?t
??ument??s ?ns???p??ent??bus ? et <<s???m??l??s>> factus es?t
??ll??s
(44r)
Esse excerto com a citação bíblica é
muito interessante porque levanta uma série de questões.
Dada a complexidade dessas questões, cada uma será
tratada detalhadamente a seguir.
Em primeiro lugar, não ocorre no mesmo ponto do texto
em todos os códices: embora ocorra nos mesmos capítulos
em LL, PR e PL; em PE, encontra-se em um fólio (44r) distante dos
que contêm o texto do Livro de Isaac (13r-20r). Esse fato traz as
seguintes dúvidas: por que a citação está fora
do texto em PE, se é parte dele? Seria a ocorrência dessa
citação uma mera coincidência, ou seja, o copista a
teria tirado diretamente de uma versão da Bíblia ou de alguma
outra obra e reproduzido em códice no qual há cópia
de texto (o Livro de Isaac) em que essa citação ocorre?
Em segundo lugar, a citação não ocorre na
mesma língua em todos os códices: em LL, está em latim
(o que era de se esperar); em PR, aparece em português, apesar de
constituir apenas um fragmento da citação; em PL, aparece
parte em latim, parte em português; e, em PE, ocorre apenas em latim.
O fato de a citação estar por inteiro em latim em PE e não
em PR e PL afasta mais uma vez a hipótese de que aquele tivesse
sido copiado destes. O copista de PE não a poderia ter vertido do
português para o latim porque as versões em português
estão fragmentadas: PE tem necessariamente que ter tirado essa citação
de outro texto que não PR e PL. Note-se ainda que mesmo as duas
versões em latim da citação (LL e PE) não coincidem
em sua forma: enquanto, em PE, a versão é idêntica
à da Bíblia Vulgata; já em LL a citação
distancia-se da Vulgata pela inserção de elementos no seu
interior (cf. comentário no parágrafo seguinte) e também
pelo próprio léxico (“conparatus est” na Vulgata, <conparatus
es?t> em PE e <as?s??m?lau?t> em LL).
Em terceiro lugar, há três distorções
no excerto IV em PL que parecem ser fruto de problema de leitura. Há
inicialmente um erro por supressão: a palavra latina <honore>
aparece como <hore>. Esse erro pode ter surgido do fato de existir o
<o> duas vezes na palavra: o copista teria pulado de um <o>
para o outro durante o processo de cópia. Além disso, também
falta em PL a seqüência <non ?ntellex?t>. Esse erro também
pode ser atribuído a um salto entre dois pontos de uma mesma
linha por haver repetição de um letra: há na mesma
linha duas ocorrências de <t> final (primeiro em <?ntellex?t>
e depois em <es?s?et>), por isso o copista teria pulado, na leitura,
do primeiro para o segundo, deixando, portanto, de copiar a seqüência
intermediária, ou seja, <non ?ntellex?t>. Há ainda,
em PL, um elemento de difícil interpretação, que,
por sua vez, parece ser resultado de uma tentativa de reprodução
literal de algo que o próprio copista não teria entendido.
Trata-se do elemento que ocorre, tanto em LL quanto em PL, após
o e tironiano: no texto latino, parece ser um <c> acompanhado de sinal
de abreviatura (similar ao que atualmente se chama de apóstrofo),
já em PL, tem a forma de um <e> com sinal de nasalização
(traço reto sobre o grafema), ambos ligados por nexo. A interpretação
do elemento de LL é muito difícil, já que o referido
sinal de abreviatura tem geralmente, no códice, o valor de <re>,
<er>, <r?> e <?r>. A forma desdobrada com qualquer desses valores
é inexplicável pelo contexto: <cre>, <cer>, <cr?>
e <c?r>. Talvez, já em LL, esse elemento fosse fruto de má
leitura de um possível texto que teria servido de modelo para essa
versão latina. Também em PL, a questão é complicada,
já que a forma do elemento corresponde, com base em comparação
com outras ocorrências similares, a <e?>, ou seja, um elemento
que ficaria igualmente sem explicação no contexto em que
ocorre. No caso do texto português, o que parece ter ocorrido é
que o seu copista não teria entendido a forma que estaria à
sua frente, estivesse ela no texto latino do qual teria feito a tradução
(LL?), estivesse ela na versão portuguesa que teria servido de modelo
para PL (versão desaparecida que se defendeu aqui existir). Teria,
portanto, tentado reproduzi-la tal como no modelo.
Considerando todas as questões que o excerto IV levanta,
é possível estabelecer as seguintes hipóteses: (a)
LL se encaixaria na tradição que inclui PL e PE pelo fato
de (i) ter um elemento de difícil leitura que teria levado os copistas
das versões portuguesas dessa tradição a tentarem
reproduzir literalmente o elemento, (ii) haver o mesmo tipo de intercalação
na citação em LL e PL e (iii) tanto LL quanto PL serem códices
alcobacenses; (b) PR não terá vindo de LL, pois, na versão
daquele do excerto IV, a variante textual difere relativamente de LL e
PL, permitindo a hipótese da existência de uma versão
latina que terá servido de modelo que não LL; e (c) PE não
terá copiado a citação diretamente do texto do Livro
de Isaac, mas, antes, tendo visto a deturpação na versão
portuguesa que usa de modelo (*P’), teria tentado recuperar a forma original
consultando alguma outra obra, talvez uma versão da Vulgata - o
que justificaria que o excerto IV tivesse em PE uma forma tão próxima
à da Vulgata. Tendo consultado a Vulgata, poderia também
ter extraído o excerto I, que também é citação
bíblica.
3. Conclusão
Articulando-se todas as discussões realizadas neste trabalho,
pode-se chegar à seguinte proposta para uma hipótese de trabalho
inicial sobre a relação entre as versões medievais
portuguesas (incluindo a latina):
Esquema 2 - Hipótese final de relação entre os
manuscritos
*L’
*L’’ LL (cod. alc. CCLXI/387-Início do séc. XV)
(cod. BN-RJ - Início do séc. XV) PR *P’
(cód. alc. CCLXX/461- Meados/fins do séc. XV) PL PE (cod. CXIII/1-40 - Fins do séc XV)
A presente análise da relação entre as versões medievais portuguesas do Livro de Isaac permitiu, além da elaboração de uma hipótese inicial de trabalho, identificar uma série de questões que deverão ser examinadas detidamente para a avaliação da hipótese, tais como: (a) verificação da possibilidade de as versões portuguesas serem todas cópias de versões anteriores; (b) estabelecimento mais preciso da datação dos códices com base no estudo exaustivo da sua linguagem; e (c) investigação da história de PR e de PE para avaliar as probabilidades de proximidade ou distância dos dois testemunhos alcobacenses.
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