O CONFLITO LINGÜÍSTICO NA GALIZA
Valéria Gil Condé (USP )
A língua é o noso escudo. Ninguén, sexa a que sexa
a forza avasaladora en que se encoste e o poder de que dispoña,
conseguirá trocar a espiritualidade dun povo sen afogar a sua fala,
que é a chave da porta da súa liberdade e o facho que alumia
o seu roteiro de eternidade.
(Ramón Cabanillas)
Na antiga Gallaecia romana, após a queda do império
romano, surgiu um dialeto neo românico denominado galaico-português.
Do século XII em diante, era esse dialeto o sermo politus utilizado
pelos trovadores em cantigas de expressão lírica. O
dialeto galaico-português permaneceu por mais de um século
e pode-se dizer que dele originaram-se o português e o galego. A
partir do século XIII o destino reservou ao português a condição
de língua falada num estado independente, Portugal, posteriormente
expandindo-se pelo mundo, e ao galego, na Galiza, a submissão política
à Espanha. Neste século, a corte de Afonso X além
de dar continuidade à produção da poesia profana e
religiosa em galego-português, proporcionou o desenvolvimento
da prosa histórica, de crônicas, bem como a tradução
de textos religiosos em língua castelhana. Em Galiza formaliza-se
o bilingüismo: para assuntos relacionados à corte serviam-se
os galegos da língua castelhana; para assuntos particulares e de
administração interna, serviam-se da língua galega.
Disputas Dinásticas no século XIV entre Pedro I
e Henrique II começam a esboçar o futuro do povo e da língua
galegas; nobres galegos apóiam Pedro I, este perde em favor de Henrique
II e, em retalhação, a nobreza galega ou foi exilada ou substituída
por nobres originários de outras regiões da Espanha.
A partir do século XV e XVI desaparece o prestígio
social de uma língua que tem como representantes nobres estrangeiros.
A Espanha se unifica, o castelhano triunfa e o galego de imenso prestígio
literário, de sermo politus passou a sermo rusticus. De língua
histórica com manifestação escrita passou à
língua funcional, idioma de comunicação oral.
Encontramos uma Galiza nos secs. XVII-XVIII ainda agrária
presa aos moldes do antigo regime, distante do pensamento iluminista da
Inglaterra e França. A sociedade estratificada em nobres(a maioria
estrangeiros), clero, burguesia e campesinato, não acompanhou o
desenvolvimento industrial que o mundo exigia. Segundo A. Eiras Roel1,
a mentalidade e estilo de vida do povo galego resumem-se em tradicionalismo
e uma imobilidade econômica. As transformações sociais
advindas da classe burguesa como grupo dirigente e provedor de uma nova
economia não se fez notar. Falta em Galiza o espírito de
mercador-empresário típico da época industrial, com
uma economia dependente. Como o prestígio lingüístico
está diretamente ligado ao prestígio social e como
a fronteira está para um país assim como o nacionalismo está
para a língua2, foi somente a partir do século XIX, sob a
influência nacionalista do Romantismo, com a conscientização
da cultura popular, usos, costumes, lendas e provérbios que a unicidade
castelhana sucumbiu ao pluralismo de intelectuais galegos. O nacionalismo
é uma forma de cultivar e preservar a língua e a identidade
de um povo. A idéia de que o castelhano deveria ser preterido em
favor do galego, já estava bastante difundida entre os intelectuais
galegos como Rosalía de Castro, Curros Enriques, Eduardo Pondal
entre outros. Rosalía com sua poesia lírica de caráter
existencial, Curros Enríquez com sua poesia de denúncia
social e Eduardo Pondal com sua nostálgica Galiza Céltica.
É o período denominado “Rexurdimento”. Aos que escreviam
em língua galega só lhes cabiam uma designação:
infratores. Manifestar-se em língua escrita galega soava como uma
infração à nação monolíngue.
O idioma confinou-se ao âmbito familiar e somente entre as camadas
menos privilegiadas, e estes quando ascendiam socialmente adotavam a língua
castelhana. Mas a descoberta das cantigas trovadorescas dará
um novo sentimento, um sentimento de reconstituição de sua
cultura e de seu passado de honor.
Século XX em toda a Espanha pode-se dizer de um crescente
e contínuo nacionalismo iniciado no século anterior. As comunidades
regionais sentem necessidade de legitimar sua língua escrita. Entendem
que unificá-la é uma forma de salvaguardar e defender sua
cultura. A cultura da Espanha não é monocêntrica
nem homogênea; essa diversidade às vezes dificulta a preservação
das diferenças locais. Como reação ao diverso e para
se preservar surge o nacionalismo. Esse processo democrático viu-se
tolhido pela Guerra Civil de 1936 que defraudou a língua de qualquer
manifestação, reprimindo seu caráter nacional. Houve
um contínuo e intermitente processo de desgaleguização,
ironicamente chefiado por um galego: o general Franco. A língua
de estado da Espanha seguiu sendo o castelhano.
Com a queda do franquismo e a retomada e respeito às
nacionalidades, vislumbrou a língua galega a possibilidade de restabelecer-se,
posto que toda língua em condição subserviente corre
o risco de aculturar-se. O governo reconheceu a pluralidade lingüística
de seu território e estruturou o estado em comunidades autônomas.
Formalizou-se o bilingüismo: galego e espanhol concorrem num mesmo
território.
Existem atualmente duas grandes tendências que preconizam
a codificação e formalização interna da língua
escrita: a reintegracionista e a isolacionista.
A reintegracionista ou lusista propõe
aproximar o galego do sistema lingüístico luso-brasileiro-africano
de expressão portuguesa. Procura restabelecer a língua à
sua origem, para tal recorrem ao processo histórico afim de consolidá-la.
A isolacionista pretende um “renascimento” lingüístico
desintegrando o galego do mundo de expressão portuguesa e castelhana.
“Valora-la contribución do portugués peninsular e brasileiro, pero excluir solucións que, aínda sendo apropiadas para esa lingua, sexan contrarias á estructura lingüística do galego. O punto de partida e de chegada en calquera escolla normativa ha de ser sempre o galego, que non debe sacrifica-las súas características propias e relevantes en beneficio das dunha lingua irmá, pero diferente.”2
A língua escrita tem como proposta desvencilhar-se dos castelhanismos, porém, reconhecendo e aceitando sua influência.
“Excluí-lo diferencialismo radical porque, aínda querendo ser unha postura de defensa frente ó castelán, manifesta de feito unha posición dependente e dominada con repecto a esta lingua. Han de excluírse, con maior razón, solucións deiferencialistas que só sexan falsas analoxias e vulgarismos.”3
Excluem a possibilidade da língua escrita ser reconstituída através de sua diacronia:
“Excluír tamén a evasión cara a língua medieval: formas definitivamente mortas e arcaicas non deben suplantar outras vivas e galegas.”4
Essas normas foram propostas pelo Instituto da Língua
Galega, pela Real Academia Galega e encontraram resistência perante
várias instituições. Em 20 de abril de 1983 houve
sua consolidação legal através da publicação
no “Diário Oficial da Galícia”. A partir de então
passaram a ser de uso obrigatório em instituições
educacionais, publicações, etc. Forças contrárias
a essa tendência deconsideram-na e uma normatização
ortográfica e lingüística não existem.
Alguns exemplos das duas tendências para questões fonéticas,
ortográficas, morfológicas da língua galega.O objetivo
do quadro abaixo é apresentar as diferenças básicas.
Às vezes uma mesma tendência apresenta variantes.
Reintegracionista Isolacionista
“H”: letra agá “H”: letra hache
“Z”: letra zê “Z”: letra zeta
“Q”: letra quê “Q”: letra cu
“Ao”: contração da preposição + artigo
“Ó”: contração da preposição + artigo
“Sério, pôla”: uso de acentos gráficos: agudo e
circunflexo. Uso somente de acento agudo.
“Folha, caminho”: uso de lh, nh. “Folla, camiño”: uso de ll,
ñ.
“Fugir”: uso do g etimológico. “Fuxir”:uso de x.
“Jornal, coraçom, esse”: uso do j, ç, ss “Xornal, corazón,
ese”: exclusão do j, ç,ss.
“Ti ou tu”: 2ª p.sing. “Ti”: 2ª p. sing.
“Galiza”: uso do sufixo -za “Galicia”: uso do sufixo -cia
“Favorável”: uso do sufixo -vel “Favorable” : uso do sufixo
-ble
“Automóvel: uso do sufixo -vel “Automóbil: uso
do sufixo -bil
“Coraçom”: uso de -çom “Corazón”: uso de -zón
“Comuns”: acentução dos oxítonos obedecem ao sistema
de acentuação do port.
“Comúns”: acentuação dos oxítonos
em todas as vogais inclusive seguidas de -n, -s, ou -ns.
“Lua”: não se acentuam as vogais tônicas em hiato.
“Lúa”: acentuam-se as vogais tônicas em hiato.
“Ciência”: acentuam-se paroxítonas term. em ditongo “
Ciencia”: não se acentuam paroxítonas term. em ditongo
“Árvore”: acentuam-se todas as proparoxítonas “Árbore”:
acentuam-se todas as proparoxítonas
“Colheste-o / Colheche-o”: emprego do hífen nos pronomes enclíticos
“Collechelo”: sem hífen
“Colheste ou colheche”: sufixo n°. pessoal
-ste/-che “colleches ou colleche”: s. n°. pessoal -che/
-ches
“Ponto” “Punto”
“Qual, quarenta” “Cual, corenta, coarenta”
Abaixo seguem-se exemplos de excertos colhidos três poetas contemporâneos:
Maino, ventiño maino pol-a herba
da tua craridade de paxaros,
somentes n-iste aire, n-ista música,
viveréi, toda espida, coma un arbre.”5
“( ... )
as rulas fosforecen
as abellas despertan
as árvores reconcílian o lamento( ... )”6
“( ... )
Galicia ferida en sono e sombra,
Galicia enteira
como un morto baixo unha árbore enterrado
onde tudo durme e non esperta. ( ... )”7
Obs: Pela norma ortografica vigente: “pol-a” não consta
em nenhuma norma ortográfica, a contração da preposição
com artigo definido é “pola”; “paxaros” proparoxítona
teria acento; “n-iste”, “n-ista” contração de preposição
com pronome demonstrativo é “neste”, “nesta”; coma ou como admite-se
as duas variantes, “arbre” variou-se a morfologia em masculina e houve
um processo de síncope da postônica, a norma estabelece
“árbore”, substantivo feminino.
Os excertos abaixo foram retirados de jornais:
Rosalía en Cuba
“Un febreiro de 1998 a Fundación Rosalía de Castro
inaugurará a exposición Rosalía de Castro na fin de
século, un proxecto cultural que terá importante repercusión
alí onde vaia porque a nosa Rosalía é unha recoñecida
figura unversal.”8
Un lobby avellentado
“(...) A esta circunstáncia haberia que engadir a manifestada
polo economista Ramóm L. Suevos quen sinala que “o desenvolvimento
das áreas suburbanas e, agora mesmo, a localizaçom das grandes
superfícies comerciais na periféria das cidades, som máis
consequência do que causa” da cultura do automóbil.”9
Obs: O primeiro artigo está em conformidade com a norma
padrão, o jornal em questão é destinado a espanhóis
na Europa e América; o segundo apresenta variantes entre a
norma padrão e a tendência reintegracionista( conf. quadro).
O objetivo desse estudo é o de relatar a problemática
lingüística da escrita galega. Urge uma atitude consensual
para que essa língua possa ser reflexo de uma cultura coesa e unida.
_____________
NOTAS
1 EIRAS ROEL, A. y Colaboradores.Coclusión: Mentalidad Tradicional
e Inmovilismo Economico. In: La Historia Social de Galicia
en sus Fuentes de Protocolos. Santiago, Paredes, Universidad de Santiago
de Compostela,1981, pp 558-564.
2 FISHMAN, J.A. Aménagement et norme linguistiques en milieux
linguistiques récement conscientisés. In: La Norme Linguistique.Textes
Colligés et présentés par Édith Bédard
Jacques Maurais.Canada, Collection L’ordre des mots, 1983, pp383-394.
3 REAL ACADEMIA GALEGA & INSTITUTO DA LINGUA GALEGA. Normas Ortográficas
e Morfolóxicas do Idioma Galego. Vigo, 1996, p 10.
4REAL ACADEMIA GALEGA & INSTITUTO DA LINGUA GALEGA. Normas Ortográficas
e Morfolóxicas do Idioma Galego. Op. cit., p.10.
5Id, ibid, p.10.
6 POZO GARZA, LUZ. Paixage Túa. In: Antologia de Poesia Galega.
Organizada por Yara F. Vieira, p. 133 ( ver bibliografia).
7SEOANE, Xavier. Magníficat. In: Antologia de Poesia Galega.
Organizada por Yara F. Vieira, p. 330( ver bibliografia).
8GARCÍA-BORDAÑO, Salvador. De ao pe de cada hora. In:
Antologia de Poesia Galega. Organizada por Yara F. Vieira, p.193
(ver bibliografia).
8 SUÁREZ, Manuel S. Rosália en Cuba. Galicia en el Mundo.
Vigo, Edición Europa y América, 18-24 de marzo
de 1997, p.32.
9 VEIGA, M et alii. Un lobby avellentado. A Nosa Terra. Vigo, n 738
- ano XIX, 8 de agosto de 1996, p. 3.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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VIEIRA, Y. F. ( Org. ).( 1996 ). Antologia de Poesia Galega. Campinas,
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