FORMAS ANALÓGICAS NA CONJUGAÇÃO VERBAL DO RETO-ROMÂNICO
Mário Eduardo VIARO (USP)
0. Funções da analogia
A compreensão das etapas diacrônicas das línguas
românicas a partir do fenômeno conhecido como analogia é
de suma importância, pois, por meio dela, se explicam muitas mudanças
que não seriam facilmente resolvidas pelas regras fonéticas.
No entanto, às vezes ela é utilizada como expediente ad hoc
para tudo aquilo que não se consegue explicar por meio das mudanças
fonéticas regulares e esse uso indevido se deve ao fato de ela poder
atuar sobre as palavras de várias maneiras. Em primeiro lugar, a
analogia pode ter uma função regularizadora, como, por exemplo,
no hiperbibasmo que sofre o latim erámus > cast. e port. éramos,
por causa das outras pessoas, que têm o acento tônico sobre
o radical. Em segundo lugar, observam-se casos de adaptação
de palavras de aspecto mais raro para o paradigma predominante. Por exemplo:
asterisco torna-se na fala popular “asterístico”, por influência
do conjunto de palavras terminadas em -ístico, muito maior do que
o em -isco. Finalmente, a palavra é totalmenre refeita, seg, como
no caso do jogo francês marelle, que se torna marela, no port. do
Brasil e daí, *amarela > amarelinha ou da planta importada com o
nome quimbundo rimiriangombe (literalmente “língua de vaca”) , que
se tornou mariangombe e, por fim, maria-gomes. Resumindo, a analogia transforma
o assimétrico em simétrico ou incumbe-se de classificar o
novo pelos paradigmas velhos.
1. Analogia nos verbos românicos
Nenhuma classe morfológica nas línguas românicas
está imune da atuação da analogia, mas uma delas,
os verbos, apresenta-se muito mais suscetível. Os verbos, por terem
várias formas herdadas e acumularem morfemas, que se desgastam pelas
regras fonéticas, estão mais predispostos a irregularidades
no nível sincrônico. Assim, no latim, não há
sinais de irregularidades em muitos paradigmas, como no caso do verbo dormio,
todavia o mesmo verbo dormir no português, do ponto de vista sincrônico
e estruturalista, teria de dois a três alomorfes, durm, dôrm
com ô fechado e dórm com ó aberto. O português
dispõe de várias regras fonéticas diacrônicas
que explicam essas alternâncias vocálicas. Assim, a vogal
ou semivogal -i pode atuar metafonicamente na vogal do radical ou palatalizar
a consoante anterior. Ao lado de durmo encontra-se dormho, no português
antigo, no qual h era mera indicação gráfica de palatalização
(cf. nh, lh). A palatalização sobre a consoante ou a metafonia
sobre a vogal do radical criaram formas duplas, como no verbo sentir, que
tinha senço ao lado de sinto. Outros pares eram menço/ minto;
meço/ mido; peço/ pido. A diferença, possivelmente
dialetal, impôs-se irregularmente na norma culta, que preferiu a
forma metafônica minto, mas a palatalizada meço. Em outras,
ainda, houve reformulação analógica da primeira pessoa
do singular: a forma regular bengo < lat. benedico perdeu terreno para
benzo, importando o -z- das outras pessoas, o que não aconteceu
com digo/ dizo. A analogia podia percorrer todo o paradigma, como o radical
curr- , que aparece também nas terceiras pessoas de formas antigas:
curre, currem, assim como time, fuge, destrui em vez dos modernos corre,
teme, foge, destrói. Muitas vezes, por meio da analogia, formam-se
grupos inexistentes numa etapa sincrônica anterior, assim, o -ç-
de meço, peço influíram na vitória das formas
ouço e faço, embora perço tenha sido substituída
pela forma perco, de difícil explicação e arço,
que passou para a forma regular ardo. No catalão o morfema -c para
a primeira pessoa generalizou-se em muitos verbos no presente a partir
de verbos como dic “digo”. Também no lugar da palatal do português
e do -g- do castelhano há um -c no catalão: caio/ caigo/
caic; tenho/ tengo/ tinc; venho/ vengo/ vinc; valho/ valgo/ valc, o que
reforçou essa desinência de primeira pessoa do singular em
verbos cuja etimologia não a justificaria: aprenc “aprendo”, bec
“eu bebo”, conec “eu conheço”, coc “cozinho”, crec “creio”, escric
“escrevo”, estic “estou”, sóc “sou, moc “movo”, puc “posso”, ric
“rio”, resolc “resolvo”, visc “vivo”. Paralelamente nessa mesma língua
encontra-se o morfema-zero em: he “tenho”, sé “sei”, vull “quero”,
o -o: cabo “caibo”, corro “corro”, creixo “cresço”, cuso “costuro”,
fujo “fujo”, neixo “nasço”, ixo “saio”, obro “abro”, rebo “recebo”,
reeïxo “consigo”, surto “saio”, venço “venço” e o final
de radical -ig: vaig “vou”, faig “faço”, haig “tenho”, veig “vejo”.
Esse conflito entre formas herdadas e analógicas, parece bem
resolvido no romeno. Nessa língua, o papel da analogia é
fortíssimo. Algumas regras fonéticas são sempre respeitadas.
Por motivos gráficos usam-se aqui as letras ã, š e ts no
lugar dos caracteres convenientes. Assim, um -i desinencial pode alterar
muito a fonética da consoante, d+i> /zi/; t+i > /tsi/; c+i>ci /tši/;
g+i>gi /dz’i/ , sc+i>/šti/; sc+e>/šte/. Interessante observar o valor pancrônico
dessas palatalizações, pois valem tanto diacronicamente:
lat. dies > rom. zi, como sincronicamente, cred “eu creio”, mas crezi “tu
crês” ou palid “pálido” e palizi “pálidos”. Outras
regras estão relacionadas com a ditongação do radical.
Assim um /o/ tônico seguido de e ou de ã torna-se /oa/, exemplo:
dorm “eu durmo”, doarme “ele dorme”, sã doarmã “que ele durma”.
Idem o /e/ seguido de ã, torna-se /ea/, mas não seguido de
e: merg “eu vou”, merge “ele vai”, sã meargã “que ele vá”.
Assim, o plural de ceascã “xícara” parece, à primeira
vista, irregular: cešti, mas ambos se filiam a um único radical
/cesc/, que sofre modificações distintas com o acréscimo
de -ã e de -i. Diacronicamente vê-se lat. mensam > *measa
> masã “mesa”, já o plural mensae > mese, sem alteração
metafônica, embora /e/ também se ditongue em /ea/ quando seguido
de /e/ em dialetos e no romeno antigo, como atesta algumas formas da língua
padrão, como sex > šase e septem > šapte. Acrescente-se uma última
regra fonética, a saber o > u quando há deslocamento acentual
do radical para a desinência.
Tendo em mãos essas regras, é possível analisar
o verbo “poder” no português e no romeno
Em português pósso, pódes, póde, podêmos,
podêis, pódem (os acentos apenas marcam a tônica e a
qualidade vocálica) continua as formas do latim vulgar póssum,
pótes, *pótet, *potémus, *potétis, *pótent,
que conviviam ao lado do clássico póssum, pótes, pótest,
póssumus, potéstis, póssunt, derivado, como se sabe,
de pot+sum. O infinitivo posse, no latim vulgar fora refeito, pela analogia,
para *potére, donde italiano potere, logodurês podere, friulano
podé, engadino pudair, francês antigo pooir, romeno putea.
No romeno, o radical /pot/ muda para put, quando há o deslocamento
acentual para a desinência no infinitivo puteá e nas formas
arrizotônicas do presente e pot, que se torna poat, pots dependendo
do contexto fônico: pót, pótsi, poáte, putém,
putétsi, pót. Esse alomorfismo, porém, é totalmente
previsível e regular em romeno, estando, portanto, em região
limítrofe à da atuação analógica. Verifica-se,
além disso, a atuação da analogia, ao igualarem-se
a terceira pessoa do plural à primeira do singular nos verbos da
segunda, terceira e quarta conjugações romenas: pot “eu posso,
eles podem”. Até mesmo o verbo a fi “ser, estar, haver” não
está livre dessa regra analógica: sunt “eu sou, eles são”.
Na primeira conjugação e em alguns verbos da quarta em -î,
a terceira do singular e do plural são iguais e estas se opõem
à primeira do singular: cânt “eu canto”, cântã
“ele canta, eles cantam”, idem no presente do subjuntivo de todas as conjugações:
sã pot “que eu possa”, sã poatã “que ele possa, que
eles possam”. No romeno, as regras analógicas ainda atuam fortemente
na formação dos tempos do perfeito a partir da raiz do particípio
perfeito: mérs “ido”, mérsei “fui”, mérsesem “eu fora”;
putút “podido”, putúi “pude”, putúsem “eu pudera”;
fãcút “feito”, fãcúi “fiz”, fãcúsem
“eu fizera”; bãút “bebido”, bãúi “bebi”, bãúsem
“eu bebera”.
A vitalidade dessa tendência regularizadora da analogia é
tal, que dialetalmente, cria-se em romeno a forma esc “eu sou, eles são”,
numa tentativa de regularizar a forma sunt “eu sou”, ešti “tu és”,
como vorbesc “eu falo”, vorbešti “tu falas”.
Em português, uma regra analógica herdada do latim ainda
se entrevê na relação entre radicais do perfeito: fizeram,
fizesse, fizer; souberam, soubesse, souber etc. Nesse caso, a analogia
é garantida pela semelhança semântica entre esses tempos,
que é demonstrável diacronicamente. No português falado
do Brasil, no entanto, produziu-se também uma curiosa relação
analógica, totalmente desligada da semântica e apenas voltada
para a regularização. Trata-se da confusão que há,
nos verbos da terceira conjugação, entre a primeira do singular
do pretérito perfeito e com o infinitivo, que sistematicamente perde
o fonema /r/ final: dormi - dormir, assisti - assistir. Tal paralelismo
é rompido, na variante culta, pelo par vim - vir, mas a língua
popular mostra em frases como eu não pude vim, que a forma vim se
impôs sobre vir. Mesmo que se alegue que o infinitivo popular vim
é um arcaismo e mantém a nasal do latim venir, assim como
no português arcaico, não é possível negar que
o paralelismo exista. Em alguns momentos, a analogia parece não
estar do lado da maioria regular, mas de um pequeno grupo em crescimento,
assim, o particípio curto pego em vez de pegado e, em Portugal,
fixe em vez de fixado garantem a produtividade da classe de oposições
entre particípios curtos e longos.
A analogia, como tudo em uma língua, tem raízes herdadas.
Entretanto, ao reagrupar-se de maneira própria no sistema de cada
língua, empresta-lhe características próprias, assim
como as mudanças fonéticas que a norteiam.
3. Analogia no reto-românico
3.1. Segunda e terceira do singular e terceira do plural
Para o estudo das formas verbais do reto-românico, esse preâmbulo
explicativo se mostra imprescindível. Valendo-se do mesmo verbo
*potére, observa-se que as formas do sobresselvano são pós,
pós, pó, pudéin, pudéis, pón, que correspondem
em larga medida às formas do latim vulgar. O sobresselvano, como
se pode perceber, tem a mesma mudança o > u do romeno no caso das
arrizotônicas e em outros deslocamentos de acento (infinitivo pudér).
Chama a atenção a forma da terceira do plural pon, na qual
atuou alguma força analógica. A terceira do singular no sobresselvano
só se diferencia do plural pela ausência deste -n que remonta
ao -nt latino. Uma variante -an aparece quando o radical termina em consoante.
Na verdade, em sobresselvano, a analogia entre as pessoas é maior,
pois agrupa a segunda pessoa do singular, a terceira do singular e a terceira
do plural, que se distinguem pelos seguintes morfemas: -s/ morfema-zero/
-(a)n. Com o verbo esser “ser”: eis “tu és”, ei “ele é”,
ein “eles são”. Identicamente se percebe o mesmo jogo analógico
com os verbos regulares e irregulares: haver “ter” se conjuga has, ha,
han; para vegnir “vir”: vegns, vegn, vegnan; crer “crer”: creis, crei,
crein; cuer “cozer”: cois, coi, coin; dir “dizer”, dis, di, din; far “fazer”:
fas, fa, fan; fugir “fugir”: fuis, fui, fuin; ir “ir”: vas, va, van; saver
“saber”: sas, sa, san; schar “deixar: lais, lai, lain; stuer “dever”: stos,
sto, ston. Além do presente do indicativo, todos os outros tempos
mostram a mesma tendência e pouquíssimos verbos não
se adaptam perfeitamente a esse sistema analógico, como dar “dar”:
das, dat, dattan; star “morar”: stas, stat, stattan e vuler “querer”: vul,
vul, vulan. Nessas exceções observa-se, porém, que
as terceiras pessoas continuam seguindo a regra de mútua dependência,
como exposta acima. A situação com o subselvano é
idêntica. À guisa de exemplo, citem-se o verbo ver “ter”:
âs, â, ân; o verbo easser “ser”: es, e, en; ir “ir”:
vas, va, van; puder “poder”: pos, po, pon. Também as exceções
são iguais: dar “dar”: das, dat, datan; star “morar”: stas, stat,
statan. Curiosamente o verbo ler “querer” se encaixa nesse subgrupo com
um -t analógico nas terceiras pessoas: vol, vut, vutan e não
se isola, como no sobresselvano, numa conjugação à
parte. O sobremirano vai ainda mais longe: o mesmo verbo leir adquire a
forma vot, vot, vottan, o que mostra que, nesse grupo românico, a
segunda pessoa do singular sempre se vincula posteriormente, pela analogia,
à forma da terceira do singular. São, por conseguinte, essas
exceções que nos indicam de onde partiu a analogia: primeiramente
entre as terceiras pessoas e, por último, para a segunda do singular.
Nas variantes do reto-românico conhecidas pelo nome genérico
de engadino, a mesma regra entre as três pessoas é flagrada,
quer em puter, quer em valáder, porém, as desinências
adquirem o seguinte aspecto: -ast, -a, -an. Não se verifica a analogia
em alguns verbos irregulares: o verbo avair se conjuga analogicamente no
valáder: hast, ha, han, já no puter prevalecem as formas
irregulares: hest, ho, haun. Essa interessante irregularidade não
está, porém, isolando esse verbo, mas, pelo contrário,
ele é apenas um de um paradigma analógico paralelo, de alternância
vocálica tripla e/ o / au, a que se afiliam também
fer “fazer”: fest, fo, faun; der “dar”: dest, do, daun; ir “ir”: vest,
vo, vaun; savair “saber”: sest, so, saun; ster “morar”:
stest, sto, staun, mas não pudair “poder”: poust, po, paun. Com
o verbo esser “ser, estar” as formas herdadas aparecem tanto em valáder
como em puter: est, ais, sunt (paralelamente a ais, encontra-se também
eis em valáder e es em puter).
A antiguidade dessa tendência analógica das três
pessoas pode ser provada fora do território suíço,
por exemplo, no ladino de Gherdëina, que tem as terceiras pessoas
idênticas, mas não a segunda do singular: no verbo vester
“ser” diz-se ies, ie, ie; avëi “ter”: es, à, à; unì
“vir”, vënies, vën, vën; jì “ir”: ves, va, va; savëi
“saber”: ses, sà, sà; pudëi “poder”: posses, po, po
(ao lado da variante posses, possa, possa). Algo parecido ocorre no sobremirano.
Apesar de a analogia estabelecida entre as desinências equivaler
à do puter e do valáder, isto é, -(a)st, -(a), -(a)n,
por exemplo, com pudeir “poder”: post, po, pon, encontra-se um estágio
mais antigo nos verbos irregulares, em que a segunda do singular não
participa da analogia entre as terceiras pessoas, assim, citem-se: esser
“ser, estar”: ist, è, èn e o verbo aveir “ter”, ast, ò,
on. Também esse último verbo participa de um paradigma de
alternância a / ò, em que se agrupam quase todos os verbos
citados acima para o puter: far “fazer”: fast, fo, fon; eir “ir”: vast,
vo, von; saveir “saber”: sast, so, son. Analisando essas variantes
conclui-se que o puter não representa uma forma mais antiga, devido
à sua rica alternância vocálica, mas que a distinção
tripla saiu de uma dupla como no sobremirano e só posteriormente
o > au seguido de nasal.
3.2. Segunda e terceira do plural
Em todas as línguas românicas, as formas arrizotônicas,
a saber, a primeira e a segunda do plural formam um subconjunto analógico
dentro do presente do indicativo, destacando-se, seja pela sua melhor conservação
do radical, seja, ainda, por alterações devidas ao deslocamento
acentual, seja por não aceitar o incremento. Casos de conservação
se vêem com freqüência no ladino dolomítico, assim,
o verbo savëi “saber” conjuga-se sé, ses, sà, savon,
savëi, sà. Também no romeno há maior conservação,
nessas pessoas, em alguns verbos irregulares, como luãm, luátsi,
segunda e terceira do plural do verbo a luá “tomar”, mas não
nas outras pessoas: iau “eu tomo”, iei “tu tomas”.
O deslocamento acentual tem efeito irregularizante acentuado nas línguas
românicas, sobretudo no reto-românico. Em sobresselvano e em
valáder, ocorre com freqüência a aférese, deixando
dessa, assim, a raiz verbal bem pouco reconhecível. Por exemplo,
o verbo aváir “ter” se conjuga em valáder: n’ha, hast, ha,
vain, vais, han. Em sobresselvano convivem a forma integral havéin
“nós temos” e a forma com aférese vein e na segunda do plural,
usa-se havéis ou véis. O verbo laschar (ou schar) “deixar”,
em sobresselvano se conjuga: láschel, lais, lai, schein, scheis,
lain. Em valáder, o verbo gnir (do lat. venire), “vir”, se conjuga:
vegn, vainst, vain, gnin, gnivat, vegnan. A mesma tendência se vê
no friulano, cujo verbo vê “ter” se conjuga ài, às,
à, vin, véis, jan no presente do indicativo e em muitos outros
tempos, como o pretérito imperfeito: vèvi, vèves,
etc.
3.3. Desinências reto-românicas de primeira e segunda pessoas
do singular
Um outro exemplo de atuação da analogia na conjugação
verbal do reto-românico é o -el, de origem obscura, que aparece
como morfema de primeira pessoa do singular do sobresselvano, assim fímel
“eu fumo”, díermel “eu durmo”, érel “eu era”, salidável
“eu saudava”, mas não em muitos verbos irregulares nem no subjuntivo:
parti “que eu parta”, gratuléschi “que eu felicite”, salidáss
“se eu saudasse”. Em valáder, o morfema de segunda pessoa do singular
-st, derivado ou diretamente do alemão ou de uma metanálise
de -s com o t- do pronome tü, quando posposto, generalizou-se para
todos os tempos: póust “tu podes”, gratuléschast “tu felicitas”,
ést “tu és”, durmívast “tu dormias”. Igualmente em
italiano -o se torna a primeira pessoa do singular em tempos cujo morfema
latino era um -m, como: cantavo “eu cantava”, por exemplo.
No reto-românico, o radical da primeira pessoa figura como o
mais autônomo, sofrendo menos atuações da analogia.
De fato a primeira pessoa é quem dita, na variante dolomítica
de Gherdëina, a forma da segunda do singular, diferenciando-se aquela
pelo morfema-zero e esta pela desinência -s. Assim, o verbo dé
“dar”se conjuga dé, des, dà, dajon, dajëis, dà;
o verbo sté “morar”: ste, stes, stà, stajon, stajëis,
stà e o já citado verbo pudëi: posse, posses, po, pudon,
pudëis, po.
3.4 O sufixo incoativo latino-esc- como incremento
O chamado incremento é um componente da conjugação
de várias línguas românicas, sem uma função
definida sincronicamente, a não ser a do deslocamento acentual.
O romeno possui dois, até hoje muito produtivos, o incremento -ez,
de origem grega, para a primeira conjugação: a lucrá
“trabalhar”: lucréz, lucrézi, lucreázã, lucrãm,
lucrátsi, lucreázã, e o incremento -ésc (ou,
em alguns casos, -ãsc) para a quarta: a socotí “contar”,
socotésc “eu conto, eles contam”. Incluindo as pessoas arrizotônicas
e aplicando as regras fonéticas, conjuga-se o verbo a vorbí
“falar”, como vorbésc, vorbéšti, vorbéšte, vorbím,
vorbítsi, vorbésc. Em sobresselvano o mesmo incremento -esc-
aparece, nas mesmas circunstâncias, em muitos verbos, tanto da primeira
como da quarta conjugações, como gratulár “felicitar”:
gratuléschel, gratuléschas, gratuléscha, gratuléin,
gratuléis, gratuléschan ou finir “terminar”: finéschel,
finéschas, finéscha, finín, finís, finéschan.
Da mesma forma, realiza-se como -eix- em catalão, -iss- em francês,
-isc- em italiano, com produtividade diferente de língua para língua.
O catalão usa, apenas na terceira conjugação (verbos
em -ir) o incremento nas mesmas pessoas do romeno e do sobresselvano, como
em servir “servir”, que é conjugado serveix, serveixes, serveix,
servim, serviu, serveixen. O mesmo vale para o italiano: o presente do
indicativo de finire “terminar” é finisco, finisci, finisce, finiamo,
finite, finiscono. No francês, a função de deslocar
a acentuação perde o sentido, uma vez que o acento tônico
carece de função fonológica e assume uma posição
fixa. Isso explicaria a inclusão do incremento também nas
pessoas tradicionalmente arrizotônicas e sua infiltração
não só no presente do subjuntivo e imperativo, como acontece
com todas as outras línguas, mas também no imperfeito do
indicativo e do subjuntivo. Assim, o mesmo finir no presente do indicativo
seria: finis, finis, finit, finissons, finissez, finissent; no imperfeito
do indicativo finissais, finissais, finissait, finissions, finissiez, finissaient.
Em sardo, português e castelhano, o incoativo latino -isc- mantém
parte de sua semântica antiga e não se transforma em incremento.
4. O Rumantsch Grischun
Recentemente, a organização suíça Lia Rumantscha,
preocupada com a possível extinção das línguas
reto-românicas, tem somado esforços no sentido de confeccionar
uma variante supra-regional, artificial, voltada principalmente para a
língua escrita, chamada Rumantsch Grischun, que já está
praticamente pronta. Na confecção do Rumantsch Grischun,
apenas uma parte desse panorama criado pela analogia foi levada em conta.
Assim, a forma -el, da primeira pessoa do singular, característica
do sobresselvano, foi substituída pelo morfema-zero, exceto em alguns
casos, como em radicais terminados em -g, -z, -pr, -pl, -fl, assim: mángel
“eu como”, engráziel “agradeço”, cúmprel “eu compro”.
Nos outros tempos, -el simplesmente foi eliminado: purtáva “eu,
ele trazia”.
Os verbos que recebem ou não o incremento -esch- não
se circunscrevem em qualquer regra, como nas variantes.
Quanto às mudanças fonéticas provocadas pelo deslocamento
do acento nas formas arrizotônicas, o Rumantsch Grischun se mostra
mais sistematizado, se comparado com as complicadas e irregulares alternâncias
vocálicas que aparecem nas variantes: pórta “ele leva”, purtáin
“nós levamos”; mórda “ele morde”, murdáin “nós
mordemos”; táidla “ele ouve”, tadláin “nós ouvimos”;
clóma “ele chama”, clamáin “eles chamam”; láuda “ele
louva”, ludáin “nós louvamos”etc. Igualmente as formas arrizotônicas
inteiras foram preferidas às aferéticas: aváin “nós
temos”, aváis “vós tendes”, com exceção do
verbo vuláir “querer”, cuja primeira e segunda do plural são
láin, láis ao lado de vuláin, vuláis e também
no condicional léss está ao lado de vuléss. Há
paralelismo entre segunda do singular, terceira do singular e terceira
do plural. Respeita-se, portanto, o jogo analógico s / morfema-zero
/ n mencionado acima: dis “tu dizes”, di “ele diz”, din “eles dizem”
inclusive com exceções: dar “dar”: das, dat, dattan e star
“morar”: stas, stat, stattan. Curiosamente, consuma-se a criação
de um -s analógico para a segunda pessoa do singular do verbo vulair
“querer”: vuls, vul, vulan, o que não ocorre em nenhuma das variantes
suíças: sobresselvano vul, vul, vulan; subselvano vol, vut,
vuttan; sobremirano vot, vot, vottan; valáder voust, voul, voulan;
puter voust, voul, vöglian. No entanto, um-s pode ser encontrado na
variante dolomítica de Gherdëina que conjuga o verbo ulëi
“querer”assim: ue, ues, uel, ulon, ulëis, uel.
Uma vez que foi respeitada grande parte das tendências analógicas,
o Rumantsch Grischun tem grandes chances de se impor como língua
de utilização escrita, ao lado das variantes regionais suíças,
ameaçadas de extinção a curto prazo. À guisa
de uma conclusão, dir-se-á que agrupamentos analógicos
caracterizam também grupos de línguas românicas e a
análise do fenômeno da analogia pode ser um expediente útil
para o reagrupamento e para a datação de fenômenos
dentro do conjunto convencionalmente conhecido como Reto-românico.
Conscientizar-se dessas derivas lingüísticas é essencial
para a criação de um código supradialetal de comunicação.
Parte do sucesso do Rumantsch Grischun, face a outras propostas, como a
de adotar uma das variantes como língua-padrão, deve-se a
um dos princípios utilizado na sua confecção, a saber,
o de utilizar a tendência da maioria das formas dialetais. Dessa
forma, as derivas características da língua são respeitadas
e os traços muito marcados dos regionalismos são apagados.
Trata-se, portanto, do mesmo processo que deu origem a muitas línguas
nacionais, conhecido na literatura sociolingüística pelo nome
de koiné.
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