COMO FICARÁ O DICIONÁRIO BRASILEIRO DE FRASEOLOGIA?

José Pereira da Silva (UERJ)

O Dicionário Brasileiro de Fraseologia pretende ser um corpus bastante "completo" de nossas expressões e frases feitas, seja as locuções que substituem lexemas da língua, sejam as formas de "discurso repetido" equivalentes a textos da literatura oral, como são os provérbios, adágios, anexins, adivinhas etc.
Tal projeto surgiu da constatação da inexistência de material organizado e suficientemente amplo desta espécie de material para servir de suporte aos estudiosos de nossos modos de dizer e da chamada literatura oral brasileira.
O que já possuímos constitui algo equivalente a, pelo menos, cinco vezes mais que o maior acervo desse tipo de material lingüística e literário disponível em obra impressa.
Estamos ainda na fase de coleta de material, sendo que, para a própria organização da coleta, estamos dando uma forma próxima da que pretendemos que será a definitiva, sendo que os nossos mestres têm sido, principalmente, Antenor Nascentes e Leonardo Mota.
As diferentes formas do “discurso repetido” da língua portuguesa ainda não foram organizados em coletâneas suficientemente amplas para que o pesquisador interessado possa obter um corpus representativo da literatura oral de nossa língua.
Entre os melhores trabalhos dedicados a esta faceta dos estudos da língua portuguesa, podemos citar o Adagiário Brasileiro (de Leonardo Mota), que inclui exemplos equivalentes de diversas outras línguas modernas e clássicas, o Tesouro da Fraseologia Brasileira (de Antenor Nascentes), que inclui explicações sobre a origem de algumas das expressões, o Dicionário de Locuções da Língua Portuguesa (de Euclides Carneiro da Silva), que inclui uma excelente exemplificação do uso dessas locuções em obras literárias brasileiras e portuguesas, o Novo Dicionário de Termos e Expressões Populares (de Tomé Cabral), talvez o mais volumoso trabalho impresso referente ao assunto, que inclui o significado e boa exemplificação do seu emprego em trabalhos de literatura popular brasileira, principalmente nordestina, além de muitos outros, incluindo entre eles uma série de teses de doutorado e dissertações de mestrado que tratam de parcelas desse material.
Na verdade, mais de uma centena desses trabalhos teria de ser consultada para que o pesquisador pudesse obter um corpus significativo de suas diversas formas estruturais e de suas diversas variantes geográficas, cronológicas etc.
O que estamos fazendo, talvez não tenha sido feito até agora porque não traz nenhuma evidência para o seu autor, visto que parece desprezível o trabalho de um pesquisador que se resume em fazer o levantamento de um corpus para que outros possam realizar estudos mais particulares e academicamente mais valorizados sobre a expressividade popular de uma língua.
Outro problema para o organizador de um trabalho desses, talvez dos mais difíceis, é a sua melhor forma final de apresentação, visto que as numerosas pessoas que escreveram sobre o assunto seguiram padrões totalmente diferenciados.
Uns, por exemplo, apresentam farta abonação de cada verbete, enquanto que outros nem se preocupam com isto; uns apresentam exemplos de obras literárias stricto sensu, enquanto que outros se valem apenas da literatura de cordel e similar; uns têm grande preocupação lexicográfica e / ou histórica, apresentando o significado de cada expressão ou locução e a história de sua origem e evolução, enquanto outros apenas relacionam tais elementos numa determinada ordem, que também não é sempre a mesma.  Enfim, todos trazem alguma contribuição importante, mas trazem também mais uma parcela de dificuldade: Como apresentar material tão diversificado numa única forma?  Está evidente que os críticos terão um prato cheio para tecerem todos os tipos de comentários maliciosos, caso não atentem para o fato de que o nosso trabalho não pretende ser um estudo conclusivo, mas apenas a apresentação “organizada” de um material difícil de ser reunido em qualquer biblioteca, pública ou particular.
Apesar de não ser um problema específico da língua portuguesa, mas de todas as línguas e de todas as literaturas, precisamos buscar a definição e a classificação mais precisa possível para cada um dos diversos tipos dessas expressões lingüísticas, para que elas possam ser melhor estudadas, conhecidas e utilizadas pelas pessoas cultas, nas ocasiões em que elas se tornarem convenientes e necessárias.
Segundo já prometemos no III Encontro Interdisciplinar de Letras e no VII Encontro da Associação das Universidades de Língua Portuguesa, classificaremos tais expressões em dois grupos, segundo o nível lingüístico que apresentem: como texto e como sintagma.  Ao nível de texto, encontramos os provérbios, os ditados, os refrães, os adágios, as máximas, as sentenças, os aforismos etc.  Ao nível de sintagma, encontramos as “perífrases léxicas”, segundo terminologia de Coseriu, incluindo aí todas as expressões fixas inferiores à oração.
Consideraremos “discurso repetido” qualquer tipo de expressão fixa cujos elementos não sejam substituíveis segundo as regras atuais da língua, importando, principalmente, o seu conceito de “expressões pré-fabricadas”  que ficam alheias à técnica do discurso propriamente dita.
As expressões fixas em nível de texto são todas as que correspondem a uma unidade com sentido completo, em qualquer nível de complexidade.  Podem corresponder a uma oração, a um período e até a uma unidade mais complexa.
As expressões fixas em nível de sintagma são todas as que estão abaixo do nível da oração, unidades combináveis na oração e comutáveis com sintagmas e com simples palavras, cuja interpretação se faz ao nível do léxico,   funcionando como unidades léxicas, pouco importando o número e a complexidade dos elementos constituintes discerníveis.
Dada a flutuação por que passa essa terminologia, não é nada fácil definir os diversos tipos dessas “expressões fixas” para se poder apresentar uma tentativa de classificação definitiva.
Para que se possam entender bem as dificuldades dessa classificação, sugerimos a leitura de nosso artigo, “A Classificação das Frases Feitas de João Ribeiro”, publicado nos Anais do III Encontro Interdisciplinar de Letras, p. 191-200, em 1992.
Antes dessa futura definição e classificação, é preciso organizar (e é isto que estamos fazendo, em forma de um Dicionário Brasileiro de Fraseologia), em forma de um “banco de dados”, que incluirá o maior número possível desses aforismos, anexins, apólogos proverbiais, apotegmas, ditados, ditos, exemplos, expressões, frases feitas, gírias, giros, locuções, máximas, modismos, parêmias, pensamentos, prolóquios, provérbios, refrães, refréns ou rifões, sentenças etc.  de modo a facilitar a próxima tarefa dos pesquisadores que se interessarem por essas formas populares de linguagem humana.
Esse dicionário não pretende excluir de seu corpus as expressões de “discurso repetido” de origem externa, desde que tenham sido registradas alguma vez por autor brasileiro ou flagrada na fala corrente em algum lugar do Brasil.  Só posteriormente ele poderá ser ampliado para abarcar as formas de “discurso repetido” da língua portuguesa em geral, visto que não temos acesso à bibliografia atualizada e / ou rara dos demais países lusófonos.
Neste momento, nosso trabalho já conta com um volume considerável de material coletado e digitado, com 658 páginas digitadas no formato de papel A4, margens de 2 cm., em caracteres “times new roman”  de tamanho 10, em duas colunas, que imprimimos para servir de base para a continuidade do trabalho, visto que já é menos incômodo levar o impresso para casa (no caso dos estagiários) do que se deslocar para o ambiente em que estão os computadores com os textos, principalmente se considerarmos que somente um em cada dezena de registros encontrados aparece como novidade ou contribuição nova.
Em princípio, estamos adotando a disposição dos verbetes oferecida por Antenor Nascentes no seu Tesouro da Fraseologia Brasileira, como forma preliminar de uniformidade da apresentação do trabalho, prometendo estudar maneiras de aperfeiçoá-la:
1- Havendo substantivos ou palavras substantivadas, neles é feita a indicação;
2- Seguem-se em ordem de preferência verbo, adjetivo, pronome e advérbio;
3- Existindo duas palavras da mesma categoria, a primeira tem preferência;
4- Os substantivos pessoa e coisa, o pronome alguém, quando não são parte essencial da expressão, não se levam em conta, assim como os verbos auxiliares;
6- Dentro do verbete, as expressões são colocadas em ordem alfabética, começando pelas que se iniciam pela palavra-chave.
Entre parênteses, indicamos a fonte de consulta e/ou de abonação apresentada, exceto as que provêm do Tesouro da Fraseologia Brasileira, de Antenor Nascentes, ou do Adagiário Brasileiro, de Leonardo Mota, tomados como nossos textos de base para as contribuições a nível lexical e a nível textual respectivamente.
Neste momento, ainda estamos na fase de reunir os dados fornecidos pelas obras mais importantes de que dispõe a literatura especializada sobre o assunto, tendo utilizado o auxílio de duas estagiárias na digitação do material recolhido (Adriana Siqueira Monteiro e Andréa Virna Fernandes Pinheiro), proporcionando-nos um volume substancial de informações informatizadas, que pretendemos concluir até o final deste ano, se contarmos com outros tantos estagiários ou bolsistas de Iniciação Científica, como pretendemos.
Podemos garantir que o corpus que já temos organizado equivale a quatro ou cinco vezes o volume de qualquer uma das obras mais conhecidas e recomendadas entre nós, com possibilidade de ainda dobrar este volume até o final do trabalho.  Dependendo disso, talvez apresentemos o resultado final em dois volumes: um com as expressões que atingem o nível de texto, como são os provérbios, por exemplo, e outro com as expressões que não atingem este nível, que constituem as locuções, a nível de sintagmas.
Apresentamos, na Revista Philologus,  uma amostragem da fraseologia brasileira, através do material até então recolhido, através do verbete cão, a título de exemplificação deste trabalho que ainda está em andamento, do qual destacamos aqui apenas uns dois ou três exemplos interessantes.
Se utilizássemos a palavra cão e todas as suas variantes semânticas, sem a preocupação específica com o vocábulo cão, teríamos uma infinidade de outras construções, pois é muito comum a utilização de nomes de animais, principalmente de animais domésticos, nas construções populares que são o tema deste trabalho.
Pedimos que os interessados esperem um pouquinho, pois estaremos colocando esse material à disposição dos estudiosos muito brevemente.
De qualquer maneira, quem estiver interessado e com urgência sobre o assunto, escreva-nos uma cartinha que teremos o maior prazer em contribuir no que for possível.

A cão mordido todos chicoteiam.
A cão mordido todos o mordem.
Acordar o cão que dorme.  Estimular o inimigo que estava quieto; bulir em coisas que estavam esquecidas e de que pode resultar mal; suscitar idéias, lembrar coisas perigosas.
Cão do(s) inferno(s).  1) Expressão insultuosa.  “Tenho fé em Deus, cão dos infernos, que...” (PBC 56).  “Negro nojento!  Macho desgraçado!  Cão do inferno!” (CPS 67).  2) Pode encerrar também expressão de elogio.  “... era o cão do inferno no riscado de um tango” (SSS 38).
Cão que ladra não morde.  Pessoa que fala muito e ameaça, não é capaz de fazer mal (CA).
Cão que ladra, guarda-te dele.
Com o cão nos couros. Com o maldito nos couros, com o diabo nos couros.  Possesso.  Muito irado, furioso.  Com maus instintos.  “Parece que andava com o cão nos couros” (MLV 174).  “Este moleque anda com o cão nos couros” (CPS 113).
Como o cão.  Expressão comparativa, de sentido desagradável.  “Feio como o cão” (JAD 79).
De cão.  Desagradável, infeliz, horrível, triste, intolerável.  “Passara uma noite de cão” (JAD 39).  “Isso não é vida.  É vida de cão!” (TC).
Enquanto o cão esfrega o olho.  Em poucos instantes; num ápice.  Quando menos se espera.  “Se fizesse força, o veneno ganhava o sangue, enquanto o cão esfregava um olho” (JCA 210).
Entre o cão e o lobo.  A boca da noite, ao lusco-fusco; no crepúsculo (AC).  Com o entendimento pouco claro, um tanto toldado.  “E às horas do meio-dia andar entre o cão e o lobo” (Sá de Miranda) (CA).
Fugir de alguém como de um cão danado.  Evitar esta pessoa de todos os modos  possíveis. Toda a gente tem medo de ser mordida por cão danado.
Levar vida de cão.  Levar vida trabalhosa e miserável (CA).
Mal ladra o cão, quando ladra de medo (JT).
Morrer como um cão. Morrer desprezado, abandonado de todos.
Nem os cães o querem.  Diz-se de alguém ou de alguma coisa que para nada presta (CA).
O cão e o menino só vão aonde lhe fazem mimo (JT).
Onde o cão perdeu a(s) espora(s)   Lugar distante, de difícil acesso, atrasado, sem atrativos etc.  “Esta terra é terra onde o cão perdeu a espora” (JCS 146).
Preso por ter cão, preso por não ter.  Culpado, de qualquer modo, por fazer uma coisa, e por não fazê-la.  Estar sobre domínio do arbítrio (MP).
Quando se amarravam cães com lingüiças (JT).
Quem com cães se deita, com pulgas se levanta (JT).
Ser como o cão com o gato.  Diz-se das pessoas que estão sempre em briga entre si (CA).
Ser o cão em figura de gente.  Ser peralta, desordeiro.  “Era o cão em figura de gente” (PDC 124).
Tempo em que o cão era menino.  De tempos remotos, imemoriais.  “Está visto que o falar é muito velho, ainda do tempo em que o diabo era menino” (OLE 33).
Ter arte com o cão. Ter pacto com o diabo, ser endemoninhado ou feiticeiro. “Aquilo tem artes com o cão” (PLC 150).
Ter parte (ou pauta) com o cão. Ter pacto com o diabo, ser endemoninhado ou feiticeiro.  “Houve até quem acreditasse naquilo, como se tivesse parte com o cão” (JBM 28).
 

BIBLIOGRAFIA
ABH =  Aurélio Buarque de Holanda Ferreira.  Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, [s.d.]
AC =  Agenor Costa.  Dicionário de Sinônimos e Locuções da Língua Portuguesa. (Suplemento).  Rio de Janeiro: [Jornal do Commercio], 1952, 253 p.
CA =  Caldas Aulete.  Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa. 5 ed. Rio de Janeiro: Delta, 1970, 5 vol.
CPS  =  Caio Porfírio Carneiro.  O Sal da Terra, cit. por TC.
Eugenio Coseriu.  Principios de semántica estructural.  Madri: Gredos, 1977, 247 p.
JAD =  Jorge Amado. Dona Flor e Seus Dois Maridos, cit. por TC.
JBM =  Juarez Barroso.  Mundinha Panchico e o Resto do Pessoal,  cit. por TC.
JCA =  Jader de Carvalho.  Aldeota, cit. por TC.
JCS =  Jader de Carvalho.  Sua Majestade o Juiz, cit. por TC.
JT =  João Nepomuceno Torres.  A Gíria Brazileira: coleção de anexins, adágios, rifões e locuções populares.  Bahia: [s.e.], 1899, 234 p.
MLV =  Mário Landim.  Vaca Preta e Boi Pintado, cit. por TC.
MP =  Márcio Pugliesi.  Dicionário de Expressões Idiomáticas.  São Paulo: Parma, 1981, 309 p.
OLE =  Oswaldo Lamartine de Faria.  Encouramento e Arreios do vaqueiro do Seridó, cit. por TC.
PBC =  Pedro Batista.  Cangaceiros do Nordeste, cit. por TC.
PDC =  Paulo Dantas.  O Capitão Jagunço, cit. por TC.
PLC =  Péricles Leal.  Caminhos da Danação, cit. por TC.
SSS   38 =  Sinval Sá.  O Sanfoneiro do Riacho da Brígida, cit. por TC.
TC =  Tomé Cabral.  Novo Dicionário de Termos e Expressões Populares. Fortaleza: UFC, 1982, 786 p.