O DATIVO ÉTICO NO PORTUGUÊS E NO GALEGO
Alfredo Maceira Rodríguez
1. O dativo ético e o dativo de interesse
O dativo é o caso da declinação latina que representa
a pessoa ou coisa para a qual ou em vista da qual se pratica a ação.
No português, esse caso é continuado pelo objeto indireto,
mas outras funções relacionadas que o dativo desempenhava
no latim também tiveram continuidade no português. Entre essas
funções encontram-se o dativo de interesse e o dativo ético.
O dativo de interesse é o que designa a pessoa ou coisa em cujo
favor se faz a ação:
Non scholae, sed vitae discimus (Não aprendemos para a escola,
aprendemos para a vida) .
Non sibi vult esse dives, sed liberis (Não quer ser rico para
si, mas para os seus filhos).
Semelhante ao dativo de interesse é o dativo ético (dativo
afetivo), que só é representado pelos pronomes pessoais átonos
para indicar a participação do ânimo de quem fala na
ação expressa pelo verbo: Quid mihi Celsus agit (Que me faz
o meu Celso? Como passa o meu Celso?)
2. O dativo ético no português
Esta forma de dativo só aparece representada pelos pronomes
átonos me, te, se, nos, vos, lhe, lhes, junto ao verbo: Não
me deixes de estudar, menino! Embora seu uso seja quase exclusivo da língua
falada, particularmente do diálogo no ambiente familiar, não
faltam exemplos na literatura. A seguir, apresentamos alguns desses exemplos,
retirados do dicionário Aurélio
“Nem pensar que um dia / me podeis morrer, Senhora” (Eugênio
de Castro).
“Badala-me assim, badala” (Vicente de Carvalho).
“E ver agora um ninguém / vir-me ao Porto dar a lei” (João
de Deus).
“Graziela só ama os autores bons... Sabe-me de cor o Garret,
o melhor Junqueiro, o Eça crítico” (João de Araújo
Correia).
“Ninguém me põe hoje o pé fora do portão.
Quero todos estudando perto de mim”. (Oswaldo Orico)
“D. Lucrécia, vós com esses vestidos de luto! Pois não
é hoje um dia de... festa para nós ambas! Oh! mudai-mos ,
mudai-mos breve! (Gonçalves Dias).
Outros exemplos da literatura, com o mesmo pronome me, do escritor
português Feliciano de Castilho encontram-se em Caldas Aulete:
“Suma-se-me no inferno e deixe-me”.
“Há-de-me ser indiscreto, quer lhe agrade quer não”.
Com uma frase do mesmo autor, J. Mattoso Câmara Jr. exemplifica
o dativo ético em seu Dicionário... :
“Entre-me logo o touro em sua agreste lida / a arar fundo...”.
Como podemos observar, o dativo ético em português emprega-se
quase exclusivamente na língua falada familiar, não sendo
farta a colheita na língua escrita. Somente na literatura que aborda
relações familiares aparece eventualmente o emprego do pronome
com essa função.
As amostras literárias até aqui apresentadas ocorrem
com o pronome me, embora os demais pronomes átonos mencionados possam
ser empregados. Possivelmente, por não conseguir respigar sua ocorrência
em textos literários, o grande dicionarista Aurélio Buarque
de Holanda ilustra o emprego dos outros pronomes com exemplos de sua lavra,
freqüentes na língua falada. Registramo-los aqui:
“Recomendou ao pequeno que se portasse direito, que não lhe
fizesse travessuras na casa do vizinho”.
“Disseram-me que pediste ao Jorge, com toda a franqueza, que não
te andasse com fofocas”.
“Não nos vá fazer papel feio, menino; não nos
ande com brincadeiras de mau gosto”.
“Então o pequeno que estais criando não vos tem saído
da linha?”
Observamos que, mesmo no nível familiar, o emprego de pronomes
átonos está-se restringindo no português do Brasil,
principalmente ao registro coloquial. Observe-se sua omissão em
verbos tradicionalmente pronominais como sentar-se, deitar-se, entre outros:
“Senta aí”; “Vou deitar aqui”, etc.
A repetição, e principalmente a contração
de pronomes átonos, parece restringir-se aos clássicos portugueses
ou brasileiros que receberam influência lusitana. Mesmo os pronomes
ditos átonos não carecem de certa tonicidade, pelo que se
diferencia a sintaxe de colocação destes pronomes entre o
português europeu e o brasileiro, assunto já bastante estudado
e discutido. Neste aspecto, outra é a realidade do galego.
3. O dativo ético no galego
O emprego de pronomes átonos é mais freqüente no
galego. Eles podem aparecer em próclise ao verbo, mas são
muito mais freqüentes em posição átona, muitas
vezes, formando combinações ou conglomerados de três
ou até quatro, dos quais também forma parte o pronome que
representa o dativo ético, conhecido em galego como pronome de solidariedade.
Os pronomes que têm função de dativo em galego
são me, che , nos, vos, lle, lles.
Ao contrário do português, em que a maior parte das ocorrências
do dativo ético são representadas pelo pronome da primeira
pessoa do singular me: “Estude-me bem esses verbos”, no galego o pronome
mais usado nessa função é o da segunda pessoa do singular:
“Teñenche moitos amigos”.
Vejamos as possíveis combinações ou conglomerados
de pronomes oblíquos do galego:
o / lo
a / la os / los
as / las
me mo
ma
mos
mas
che cho
cha
chos
chas
lle llo
lla
llos
. llas
nos nolo
nola
nolos
nolas
vos volo
vola
volos
volas
lles llelo
llela
llelos
llelas
Conglomerados de formas oblíquas (onde aparece o pronome de solidariedade)
Proclíticos
mo, ma llo, lla
nolo, nola llelo, llela
mos, mas llos, llas
nolos, nolas llelos, llelas
che mo che
llo che nolo
che llelo
che che ma
che lla che nola
che llela
che mos che llos
che nolos che
llelos
che mas che llas
che nolas che
llelas
lle lle mo
lle nolo
lle ma
lle nola
lle mos
lle nolos
lle mas
lle nolas
Enclíticos
che -chemo
-chello -chenolo
-chellelo
-chema -chella
-chenola -chellela
-chemos -chellos
-chenolos -chellelos
-chemas -chellas
-chenolas -chellelas
lle -llemo
-llenolo
-llema
-llenola
-llemos
-llenolos
-llemas
-llenolas
Apresentamos alguns exemplos de frases galegas com pronome de solidariedade,
retiradas do Diccionario Xerais. :
“Levaronchelle todo da casa” (Levaram-lhe tudo da casa).
“O pan vaiche reseso” (O pão vai, ou está, dormido).
“¡Vaiche boa!” (Pois sim!; Essa é boa!).
Do livro didático Lingua Galega transcrevemos os seguintes
exemplos, adaptando a ortografia à das Normas...
“Aínda che tiña ben de cartos” (Ainda tinha bastante
dinheiro).
“Non chelle dou importancia” (Não lhe dou importância).
“Non che estou nada ben” (Não estou nada bem).
“Non che sei se virá hoxe” (Não sei se virá hoje).
“Éranche as oito da tarde” (Eram as oito da tarde).
“Serache a miña comadre” (Será a minha comadre).
“Seranche as dez da mañá” (Serão as dez da manhã).
Se damos ao interlocutor o tratamento de Vostede , o pronome de solidariedade
correspondente é o lle:
“Non lle estou nada ben” (Não estou nada bem).
“Non lle son de aquí” (Não sou daqui).
Quando se faz referência a vários interlocutores, emprega-se
o pronome de solidariedade vos, para o tratamento familiar, e lles para
o tratamento de cortesia:
“Teñovos moito que traballar” (Tenho muito que trabalhar).
“Teñolles moito que traballar” (Tenho muito que trabalhar) .
“Non vos vexo ben” (Não vejo bem)
“Non lles vexo ben” (Não vejo bem)
Na língua falada existe a possibilidade de que apareçam
dois pronomes de solidariedade:
“Échevos un pouco ruin” (É um pouco ruim)
“Haichevos moito que comer e poucos cartos” (Há muito que comer
e pouco dinheiro)
As frases que se seguem são comuns no galego. Há nelas
um pronome de solidariedade, além de outros que podem estar combinados.
No português de hoje, essas combinações não
são comuns. Normalmente substitui-se um dos pronomes:
“Deuchemo onte” (Deu-mo ontem, ou, Deu-me isso ontem).
“Deuchenola hoxe” (Deu-no-la hoje).
“Dixochemo na festa” (Disse-mo na festa).
“Dixochenolo fai oito días” (Disse-no-lo faz oito dias)
4. Resumo e conclusões
Pelos exemplos acima podemos observar a diferença no uso do
dativo ético no português e no galego. No português,
essa forma de dativo expressa a participação ou interesse
de um interlocutor na ação praticada pelo outro. Essa participação
pode manifestar afetividade, porém é mais freqüente
a manifestação de interesse e simpatia:
“Cuide-me bem o netinho”.
“Estude-me bem a lição, meu filho”.
Nem sempre este tipo de dativo manifesta simpatia pelo interlocutor.
Com freqüência o falante manifesta sua ascendência sobre
o ouvinte de forma imperativa, inclusive com intenção de
rejeitar ou proibir algo ou alguma ação:
“Saia-me já daqui”.
“Não me fique aí chorando, menino!”
Verificamos que o dativo ético no português é expresso
quase exclusivamente pelos pronomes átonos em primeira pessoa, geralmente
a forma do singular me.
Esta forma de dativo ocorre na linguagem coloquial, mas no português
atual parece que não goza da preferência dos falantes, talvez
pela redução do emprego dos pronomes átonos na linguagem
coloquial, já com reflexos no uso literário.
Existem na língua outros recursos para manifestar simpatia e
/ ou interesse pela pessoa a quem se fala. Uma solução bastante
usada parece ser a da silepse de pessoa, na que o falante se inclui, pela
flexão da forma verbal, no universo de seu interlocutor:
“¿Então, como vamos de estudos, meu sobrinho?”
“¿E de saúde, estamos melhor?”
Parece que no português, o dativo ético representado pelos
pronomes pessoais átonos não tem atualmente preferência
expressiva no ambiente coloquial e familiar. A evolução lingüística
procura outros meios de expressão.
O galego emprega o pronome da segunda ou da terceira pessoa, dependendo
do tratamento, para manifestar empatia e solidariedade que até
parece uma espécie de conivência com seu interlocutor:
“Elas compraronche vestidos novos para ir á festa” (Elas compraram
vestidos novos para ir à festa).
“Estanche todos moi ben” (Estão todos muito bem).
“El gañouche moitos cartos” (Ele ganhou muito dinheiro).
O galego faz largo uso de pronomes átonos, em próclise
ou em ênclise. Uma de suas características é a contração
desse tipo de pronomes, quase desaparecida no português do Brasil,
mas muito freqüente no galego, formando conglomerados em que se pode
incluir o pronome de solidariedade. Note-se que no galego não se
faz restrição ao uso dos pronomes átonos em ênclise
ao futuro:
“Elas iranche despois visita-las súas irmás” (Elas irão
depois visitar as suas irmãs).
“Rosa casarache con Pedro porque están moi namorados” (Rosa
casará com Pedro porque estão muito apaixonados).
“Eles faríanvos mellor se estudiasen máis” (Eles fariam
melhor se estudassem mais).
Entre as contrações que incluem o pronome de solidariedade,
são freqüentes as deste tipo:
“¿Onde están os rapazes? (Onde estão os meninos?).
- “Eu non chos vin” (Eu não os vi).
“Aqueles libros, emprestouchemos todos ata ó sábado”.
(Aqueles livros, emprestou-mos todos até o sábado, ou, Emprestou-me
aqueles livros todos até o sábado).
“Deuchenola para o noso uso”.
(Deu-no-la para o nosso uso)
Resumindo: Pelo exposto podemos deduzir que o português e o galego,
como línguas irmãs e com origem comum, continuam de alguma
forma a tradição latina de um dos usos do dativo para expressar
afetividade e / ou interesse pelo interlocutor. Embora de início
houvesse alguma diferença entre o dativo ético (este indicando
afetividade) e o de interesse, no português os termos quase se consideram
sinônimos e sua representatividade se reduz aos pronomes pessoais
átonos, particularmente aos de primeira pessoa. Seu âmbito
limita-se ao coloquial, particularmente ao familiar, e, atualmente, a língua
encontrou outros meios de expressar afetividade e interesse, caindo, ao
que parece, em desuso esta forma de dativo.
No galego, esta manifestação de sentimento em relação
ao interlocutor adquiriu uma feição diferente, utilizando
para isso os pronomes da segunda pessoa do discurso, que nesta função
são denominados pronomes de solidariedade. Semanticamente esta participação
do interlocutor se traduz por uma espécie de empatia ou conivência
com a pessoa a qual se dirige com familiaridade. Este emprego do pronome
está na índole da fala coloquial, existindo grande número
de expressões idiomáticas que incluem o pronome com essa
função. Um conhecido escritor, há pouco falecido,
adotou como pseudônimo Ben-cho-sei (Bem o sei, ou, Sei-no
bem), o que prova a popularidade do emprego do pronome de solidariedade
em galego
5. Bibliografia
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13. ed. Petrópolis, Vozes, 1986.
DICCIONARIO XERAIS da Lingua. 4. ed. corrix. e aum. Barcelona: Xerais,
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Nova Fronteira, 1996.
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ENRÍQUEZ SALIDO, María Carme & FERNÁNDEZ
PÉREZ, X. Luis. Língua galega. 3. ed. León: Everest,
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O CORREO GALEGO. Edicción eletrónica. Santiago de Compostela:
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