BILINGÜISMO MUNDIAL: UTOPIA OU SOLUÇÃO?

José Passini (UFJF)

Existe a necessidade de uma língua neutra?
A necessidade de uma língua internacional cresce na proporção em que se aprimoram os meios de comunicação e de transporte. Se os meios de comunicação e de transporte aproximam os homens, as línguas os distanciam. Hoje pode-se perfeitamente ligar o telefone para o hemisfério oposto e, em poucos segundos, até mesmo sem a intermediação de um telefonista, ter-se, a milhares de quilômetros, um interlocutor que pode não ser aquele que fala uma língua em comum com a pessoa que fez a chamada. Não havendo uma língua em comum, será o mesmo que ninguém respondendo ao telefone.
No relacionamento oficial entre países de línguas diferentes, a situação se torna às vezes extremamente delicada por envolver aspectos relativos à preservação da soberania nacional, a exemplo do que ocorre na Comunidade Européia. Para não dar supremacia a nenhum de seus países-membros pela adoção de sua língua como instrumento oficial de comunicação – os documentos são traduzidos, parágrafo por parágrafo, nas onze línguas dos quinze países que dela participam, antes de receberem as assinaturas das autoridades respectivas. Isso, em se tratando de documentos escritos. O problema com debates orais, em plenário, é ainda maior.
Nascida de um esforço para resolver problemas na área econômica, a Comunidade Européia tem ampliado o seu campo de ação, o que fez surgir o Parlamento Europeu como tribuna de debates de assuntos de ordem científica, cultural, social e política, de interesse de toda a Europa e, não raro, de todo o mundo. É uma nova mentalidade que agora se sobrepõe às antigas concepções nacionalistas. Por todo o continente nota-se um esforço crescente de convivência política e de intercâmbio cultural, que aumenta sob a inspiração e o amparo da Comunidade Européia. Caem, assim, barreiras políticas seculares, e não caem mais rapidamente por causa das barreiras lingüísticas.
Em 1985, Atenas foi elevada ao nível de “Cidade Cultural da Europa”; esta sendo proposto um ano do cinema e televisão para 1988, bem como um canal de TV europeu, transmitindo simultaneamente em vários idiomas. A Comissão está esperando impulsos de uma Academia das Ciências, Tecnologia e Artes. Já agora se oferece na CE instrução num âmbito internacional aos jovens. O “Instituto Europeu de Ensino Superior”, em Florença, o “Europa Kolleg”, em Brügge, a “Fundação Cultural”, em Amsterdã, o “Centro Europeu de Formação Profissional”, em Berlim e as escolas européias já formaram um nome. Alcançar-se-ia bem mais, se as barreiras lingüísticas fossem reduzidas já bem cedo.
A necessidade de uma língua comum a todos os povos se evidencia também em organizações de âmbito mundial, A ONU, a UNESCO, a Organização Mundial de Saúde, a Cruz Vermelha Internacional e até sociedades religiosas poderiam livrar-se do terrível emaranhado produzido pela diversidade de línguas, e também da delicada questão discriminatória – de que se queixam tantos países -, adotando uma língua neutra como instrumento de comunicação. Nessa língua se processariam diretamente as conversações, com evidente redução de custo operacional e com um nível mais elevado de segurança nas comunicações, o que seria alcançado pela eliminação das traduções.
Essas entidades de âmbito mundial sempre sofrem fortes restrições no seu desempenho, face aos empecilhos que as barreiras lingüísticas antepõem ao entendimento direto e rápido, seja pelo código escrito, seja pelo código sonoro. Têm elas de se valer de serviços de tradução que, além de onerosos, retardam o fluxo normal da comunicação.
Hoje, não apenas dotados de recursos financeiros – com maiores facilidades de se valerem de intérpretes, ou de aprenderem várias línguas -, mas o cidadão comum é deslocado para países distantes, sem outro objetivo além daquele de ganhar a vida no exercício de suas atividades profissionais. Empresas com atividades em outros países estão se tornando comuns. Seus funcionários, a não ser aqueles dos altos escalões, ficam completamente ilhados, impossibilitados de entrar em contato com outros trabalhadores que a empresa venha a recrutar no país onde estiver situado o núcleo de trabalho.
Como conseqüência das atividades da Comunidade Européia, vê-se atualmente a grande facilidade de movimentação de pessoas, até mesmo de trabalhadores que, sob o amparo de suas leis, prestam serviços nos vários países-membros, mais como concidadãos do que como estrangeiros. Entretanto, se as barreiras políticas estão caindo, o mesmo não acontece com as lingüísticas. Tome-se por exemplo uma pessoa que se veja compelida a atravessar uma região onde não se fale um idioma que lhe seja conhecido. Necessitando de alojamento, de alimentação, ou mesmo de socorro para um veículo, não lhe será difícil valer-se da mímica. Entretanto, esse expediente não lhe será de uso tão eficaz no caso de encontrar-se subitamente enferma e necessitar de socorro médico. A mímica poderá ser inócua e até fatal. Casos assim não são meramente hipotéticos, ocorrem cada vez com mais freqüência, graças à mobilidade que os meios de transporte propiciam ao homem comum.
No ano passado, em Roterdam, morreu um número elevado de trabalhadores estrangeiros porque o médico assistente, em virtude da barreira lingüística, não pode fazer um diagnóstico certo e a tempo. Estes fatos foram expostos na reunião de membros da seção de Roterdam da Sociedade Real Holandesa para o Avanço da Medicina, segundo relatório anual de 1971, da fundação “Ajuda aos Trabalhadores Estrangeiros, Rijnmond”.
Em pesquisa feita entre profissionais de saúde de Roterdam, perguntou-se até que nível falavam, por exemplo, o Espanhol, o Turco, ou o Árabe. Provou-se que quase todos os especialistas e médicos não dominam estas ou outras línguas dos trabalhadores estrangeiros.
A falta de uma língua comum, de uma segunda língua, afeta até as competições esportivas mundiais. Há uma evidente falta de comunicação verdadeiramente humana entre atletas, juízes, fiscais e demais elementos das equipes, perdendo-se nessas ocasiões, excelentes oportunidades de um enriquecimento mútuo, por ser a comunicação, de modo geral, precária, para não dizer primária. O mesmo se pode dizer em relação ao intercâmbio comercial e ao próprio turismo que, graças ao isolamento lingüístico, o viajante perde a fascinante oportunidade de contato direto com pessoas de outros países.
Urge, pois, dar ao ser humano, que sai para trabalhar, estudar, fazer turismo ou exercer qualquer outra atividade num país onde se fale outra língua, a possibilidade de comunicar-se direta, fácil e profundamente com seus habitantes. Tal contato humano, tão necessário quanto fecundo, terá muita mais possibilidade de se efetivar, se for feito através de uma língua de fácil aprendizado, que seja politicamente neutra, cujo ensino, difusão e uso não signifiquem um atentado à soberania de povo algum.

A Comunidade internacional tem acompanhado o avanço tecnológico e científico?
Nestes dois últimos séculos, o mundo conheceu um desenvolvimento sem precedentes na história da humanidade. Do transporte a pé, a cavalo, até à carruagem, o homem levou milênios. Da carruagem ao automóvel o tempo foi muito mais curto, e mais curto ainda, do automóvel ao avião supersônico. Igualmente no campo da comunicação: Inicialmente era o mensageiro a levar a mensagem escrita ou decorada. Milênios apôs surge o serviço postal. Bem mais rapidamente chega-se ao telégrafo e deste à Internet foi pouco mais de um século, passando rapidamente pelo telex, pelo telefone de discagem direta e pelo fax. Hoje, até a televisão ultrapassa os limites dos continentes.
Os meios de transporte e de transmissão de mensagens cada vez mais aproximam os homens. A cada ano que passa, com facilidade crescente, os meios de transporte colocam, diante uns dos outros, seres humanos de regiões longínquas. Os meios de transmissão oferecem a possibilidade de se fazer chegar não só a fala , mas também a imagem a todos os quadrantes do planeta. Entretanto, essa aproximação é física apenas, não inteiramente humana, pois, não raro, o homem olha aquele que poderia ser seu interlocutor com ares de frustração e desalento, vez que não consegue comunicar-se com ele.
À medida que o mundo se apequena, o problema da comunicação se agiganta. O avanço científico e tecnológico tem possibilitado o aparecimento crescente de empresas comerciais e industriais que operam internacionalmente. As leis evoluíram e permitem, cada vez mais uma aproximação de nações, mas a aproximação de homens é prejudicada diante do fato de não haver instrumento de comunicação compatível com as necessidades geradas pelo intercâmbio. O intercâmbio universitário em nível mundial é cada vez maior. Neste século houve um aumento sem precedentes no número de estudantes estrangeiros. O estudante, num país estrangeiro, gasta boa parte de seu tempo precioso a lutar com a língua em que deve receber as aulas, estudar e, na maioria dos casos, apresentar um relatório final, um ensaio, ou escrever e defender uma tese. O mesmo se diga das pesquisas. Cientistas dirigem-se a lugares distantes, até a outros continentes, mas o seu trabalho não se desenvolve com a rapidez esperada, diante da dificuldade de comunicação. Quanta experiência preciosa se perde, ou não é partilhada integralmente por falta de uma língua comum. Os meios de transporte e de transmissão de mensagens evoluíam, mas os meios de comunicação não lhes acompanharam o progresso. A possibilidade de comunicação direta entre aloglotas, paradoxalmente, até decresceu, tendo-se em vista que o Latim foi a língua neutra que possibilitou a comunicação científica, diplomática e religiosa em nível internacional durante quase um milênio.

Os Lingüistas têm-se preocupado seriamente com o tema?
Por paradoxal que pareça, os congressistas internacionais que menos percebem esses problemas são justamente aqueles que estão mais próximos do estudo da linguagem – os lingüistas. Estes, pela sua própria condição profissional, dominam várias línguas, entre as quais sempre se encontra uma que lhes sirva para a ocasião. Além do mais, por tratar-se de seu instrumento de trabalho quotidiano, o lingüista maneja um idioma que não seja o seu – embora não sabendo fazê-lo com perfeição – com toda a naturalidade e sem prejuízos psicológicos que sobrevêm, nessas circunstâncias, a quase todos os demais cientistas.
Os sociolingüistas ainda não voltaram toda a sua atenção para o Esperanto e nem para qualquer outra das línguas internacionais propostas. Quando o fizerem, será possível examinar análises lingüísticas dessas línguas, assim como estudar relatórios do seu possível impacto em países nas quais sejam amplamente usadas.
Inúmeras dissertações de mestrado ou teses de doutorado têm sido baseadas em pesquisas feitas em comunidades lingüísticas de pequenos grupos de falantes. Entretanto, os lingüistas, pesquisadores ou orientadores de pesquisa ainda não se dispuseram ao estudo de um idioma iniciado há pouco mais de um século como um modesto projeto e que se tornou uma língua viva, elemento de comunicação de milhares de indivíduos, espalhados em mais de 80 países. Língua que passou imperceptivelmente da condição abstrata do puro ideal para o terreno concreto da comunicação humana, apresentando hoje uma biblioteca com mais de 30.000 títulos, entre originais e traduzidos, além de manter mais de cem periódicos e de ser o veículo de comunicação de dezenas de sociedades de âmbito mundial. Língua que reúne anualmente centenas de adeptos em seus congressos nacionais e milhares nos internacionais, oriundos de mais de meia centena de países. São os únicos congressos internacionais onde não há intérpretes. O Esperanto, fenômeno ímpar na história da Humanidade, ainda não conseguiu despertar o interesse dos meios acadêmicos que, não raro, se perdem na discussão de teorias abstratas, preterindo um campo frutífero, porque vivo, concreto, real.
Por outro lado, não se pesquisa também o resultado prático do imenso investimento feito até pelo poder público, em relação ao ensino de línguas estrangeiras. Qual o percentual de alunos que, após o término do 1o ou do 2o grau, conseguem ler e interpretar um texto? Mesmo com essa pletora de cursos particulares especializados, os alunos, ao ingressarem nas universidades, principalmente nas públicas, disputam vagas em disciplinas de língua estrangeira, na condição de matéria opcional ou eletiva. Se os anos de 1o e 2o graus, somados muitas vezes aos cursos extras, tivessem dado condição segura pelo menos de leitura, esses acadêmicos iriam dedicar seu tempo a disciplinas que, embora eletivas, tivessem mais afinidade com o seu campo especializado, enriquecendo o seu currículo. Não são conhecidas pesquisas nesse sentido, talvez por não serem sugeridas por aqueles que orientam cursos de pós-graduação e as respectivas dissertações e teses.
Exatamente pela falta de pesquisas sobre o assunto é que se vêem afirmativas descompromissadas com a realidade, em obras tanto destinadas ao estudo da lingüística , quanto a outras, endereçadas ao público leigo. Além daqueles que fazem afirmativas gratuitas, há também os que, por falta de conhecimento e de argumentos para debaterem o assunto, preferem o caminho da ironia, do chiste e até do desrespeito. Lamentavelmente há afirmativas que, de tanto serem repetidas e citadas, vão-se firmando como verdades científicas irretorquíveis. Exemplo claro é o fato que, embora não se tenha notícia, em nenhum dos movimentos em prol da adoção der uma língua artificial ou planejada, de posicionamento visando à substituição das nacionais por uma única língua, podem-se ler afirmativas como esta:
A necessidade de uma única língua mundial não nasce, a menos até que um único governo mundial seja estabelecido (...) A diversidade de línguas é parte da interessante diversidade cultural que caracteriza o homem. Qualquer tentativa de determinar o desaparecimento dessa diversidade será não somente fútil, como também culturalmente mutilante. Qualquer tentativa de substituir essas línguas por uma língua artificialmente criada é igualmente fútil e perigosa.
Inserir uma declaração dessa natureza num livro de lingüística, num capítulo em que trata de línguas nacionais e internacionais, é algo tão estranho e extemporâneo quanto numa obra de topografia fazer comentários sobre a inconveniência de se desbastar o Monte Everest a fim de que a superfície terrestre fique mais plana... Outro autor, embora sua obra seja de lingüística e pertença a uma coleção denominada Debates, leva o assunto para o campo da poesia:
Mas se a pluralidade das línguas é inerente à humanidade e os homens se desentendem com toda a naturalidade quando falam um língua comum, seria mais óbvio ver no plurilingüismo um fenômeno tão natural como, por exemplo, a diversidade da cor dos olhos humanos, que ninguém pensa em reformar e que para muitos constitui fonte de beleza e espanto.
São posicionamentos equivocados como esses que levam outros lingüistas a assumirem atitude hostil ou um ar de complacência diante daquilo que imaginam ser algo pueril, inocentemente alimentado por criaturas que estão fora da realidade, sonhadoras, utópicas.

Quais as conseqüências da adoção, em caráter oficial, de uma língua nacional como interlíngua?
Uma vez reconhecida a necessidade de uma língua internacional, resta o problema da escolha daquela que deverá desempenhar esse papel. O uso de línguas naturais nessa função não tem conseguido preencher a lacuna deixada pelo abandono do uso do Latim, que foi instrumento de comunicação diplomática, de divulgação científica e de discussão filosófica e política durante toda a Idade Média,
O fato de não pertencer a povo algum dava ao Latim a condição primeira para o desempenho de papel de interlíngua: a neutralidade política. As línguas naturais encontram sempre fortes restrições em seu uso com língua internacional, restrições que variam, segundo as áreas onde se pretenda usá-las. Não há uma única língua natural que garanta ao seu usuário livre trânsito em todo o mundo, para não dizer nem mesmo em toda a Europa.
Apesar disso, as nações econômica e politicamente poderosas concentram grandes esforços e despendem enormes recursos financeiros no sentido de difundirem e, até certo ponto, imporem seus idiomas para uso internacional, visto serem inegáveis os rendimentos em prestígio político e as vantagens econômicas que retornam como altos dividendos, em razão de investimentos bem aplicados. É muito fácil, para o falante nativo, parlamentar, influenciar, convencer, vender, vencer um debate e até mesmo dominar, quando o interlocutor fala uma língua que não seja a sua própria.
Assim, eleger, em âmbito mundial, uma língua natural para o desempenho da tarefa de interlíngua é conceder ao povo que a fala como nativo uma série de prerrogativas contra as quais se insurgiriam os demais povos, a argüirem o mesmo direito de não serem obrigados às despesas e aos esforços necessários ao aprendizado de uma língua estrangeira.
Aceitar oficialmente o idioma de outro povo como segunda língua é elevar o país de origem desse idioma à condição de metrópole intelectual. É submeter-se-lhe psicologicamente, aceitando a sua influência política, econômica e, principalmente, a sua cultura, no sentido mais abrangente do termo. Não se defende, ao pôr-se em relevo a gravidade desse problema, um nacionalismo absurdo, fechado às idéias renovadoras vindas do exterior. É de senso comum que nenhum país pode progredir de forma apreciável, se fechado ao confronto salutar com as idéias geradas em outras culturas. O que se busca demonstrar é o perigo de uma descaracterização nacional como conseqüência da forte influência de uma determinada cultura, aceita, às vezes, inconscientemente, através da adoção da língua de um outro povo, na condição de segunda língua.
No caso de se adotar alguma língua neutra, isto é, que não seja a língua nacional de povo algum, as influências recebidas do exterior se originariam de fontes diversas, porque conduzidas através de uma língua igualmente acessível a todos os povos. A adoção de uma língua internacional neutra permitiria àqueles povos, cujas línguas não têm penetração internacional, a divulgação de sua posição política, da sua literatura, dos seus progressos sociais e científicos, diretamente ao resto do mundo, sem Ter de se sujeitar ao processo seletivo da corrente de informação a que a tradução em uma língua natural conduziria.
Ao traduzir-se uma obra em um idioma natural, que desempenha o papel de língua internacional, raramente tem-se em vista a sua divulgação mundial. As traduções são quase sempre feitas em função do gosto e dos interesses do povo ou dos povos falantes dessa língua, o que constitui um fator altamente seletivo e restritivo na divulgação de idéias em âmbito mundial, em desfavor dos usuários das línguas minoritárias.
A tradução em uma língua neutra, ao contrário, destinar-se-ia indistintamente a todos os povos e facilitaria sobremaneira o acesso a uma literatura muito mais vasta aos povos em cujas línguas as traduções não seriam rentáveis.
Além do mais, por uma questão de eqüidade, se não mesmo de justiça, as conversações entre estadistas deveriam se processar sempre em uma língua estranha a ambos, pois, do contrário, o falante nativo do idioma usado como internacional levaria enorme vantagem sobre o seu interlocutor. Infelizmente não é questionado. Pelo contrário, vê-se, até com alguma freqüência, representantes de governos abrindo mão de sua soberania nacional, falando subservientemente a língua do interlocutor, por ser tida como internacional. Não é esta também uma forma de entreguismo? Seria entreguismo político, cultural? Por que se questiona apenas o entreguismo econômico?

A Tradução é eficaz em todas as situações?
Tradução não é atividade simples como parece à primeira vista. Traduzir não significa substituir pura e simplesmente as palavras de uma língua pelas suas correspondentes na outra, como geralmente pensa o leigo. Se assim fosse, de há muito os computadores estariam operando em substituição aos tradutores humanos. Traduzir significa decodificar uma mensagem, interpretá-la completamente e, depois, codificá-la numa outra língua, que apresenta características específicas em sua estrutura, nos seus recursos expressivos, por vezes muito diversos daquela na qual a mensagem foi elaborada originalmente. Traduzir é passar de um universo a outro, pois cada comunidade de fala recorta a realidade , categoriza-a de um modo próprio, construindo o seu universo lingüístico. As línguas são simbólicas, refletem o mundo de maneira particularíssima, circunscrevendo o raciocínio dentro dos limites lingüísticos de cada povo. Por isso, tradução em bom nível requer, do tradutor, além de larga dose de conhecimento específico na área em que opera, amplo domínio das duas línguas, o que inclui, necessariamente, o conhecimento profundo da própria psicologia dessas línguas.
O problema se agrava na tradução oral. No recesso de seu gabinete, o tradutor tem tempo para pesquisar, analisar, comparar, meditar, para, finalmente, se decidir pela forma mais apropriada. Na tradução oral, seja paralela ou simultânea, existe a pressão psicológica das possíveis comparações esperadas de ouvintes que têm acesso às duas línguas. Há, ainda, o fator tempo. Há que se traduzir, de qualquer forma, aquela seqüência sonora, porque outra a sucederá imediatamente e não poderá ser repetida.
No caso de o tradutor funcionar como intérprete, em presença do falante, há outros aspectos a serem considerados: a presença física, a expressão fisionômica, a mímica, o timbre da voz, tudo isso poderá influenciar favorável ou desfavoravelmente o tradutor, cujo estado emocional irá influir, se não no tom pelo menos na escolha da palavra ou expressão que irá usar. Um tradutor é um ser humano, dotado de preferências e de idiossincrasias. Não é uma máquina. Em muitos casos, por mais que se esforce, não consegue transmitir a mensagem com o colorido desejável e com a ênfase ouvida, simplesmente porque ele é um tradutor, um intérprete lingüístico, e não um ator que assuma completamente a personalidade que está produzindo a mensagem. A não ser que a mensagem seja completamente simples, é muito improvável que não sofra a influência do tradutor, que vai desde a simples tradução maquinal, com o apagamento do poder expressivo, até a cortes e acréscimos inconscientes ou conscientes. Por isso, numa conversação entre falantes de línguas diferentes, a comunicação será mais eficiente se for direta, com o uso de um idioma que não lhes pertença, porque fica eliminada a personalidade intermediária  do tradutor.
Entretanto, sobre assunto tão sério e preocupante, há manifestações daqueles que ora sofismam, ora tentam fazer humorismo:
Gasta-se muito tempo e dinheiro em tradução, reconheço. As sessões da ONU seriam menos longas e cansativas se realizadas numa língua só. Mas quem pode garantir que seriam mais eficientes? O ordenado dos tradutores (geralmente pessoas pacatas e morigeradas), se liberado, será gasto em construção de hospitais ou em corrida armamentística?
A afirmação parte de um autor de obras sobre tradução, que é, além disso, tradutor profissional. “As reuniões da ONU seriam menos longas e cansativas se realizadas numa língua só. Mas quem pode garantir que seriam mais eficientes?” Estaria ele considerando, quando diz: ö uso duma língua só”, o uso duma língua nacional, ou de uma das línguas planejadas anteriormente discutidas na sua obra? Se se referiu a um idioma nacional, pode Ter razão, mas em relação a uma língua planejada, neutra, regular, absolutamente não! Nos conclaves mundiais, há uma considerável perda de tempo com tradução e, quase sempre, uma perda na qualidade da comunicação, pelo fato de que, na maioria das vezes, o destinatário da tradução ser compelido a recebê-la numa língua que não a sua. Quantos participantes de congressos mundiais vão ler, no quarto do hotel, o texto da palestra ouvida, cuja oportunidade de discussão perderam por falta de capacidade de comunicação imediata.
...numa reunião científica internacional, há invariavelmente o desapontamento de se verificar que, em virtude da diferença de hábitos lingüísticos, a dificuldade de comunicação com cientistas estrangeiros torna o intercâmbio de idéias muito menos fácil do que fora imaginado por ocasião do embarque.

Será exeqüível um bilingüismo mundial?
É natural que o falante nativo de uma língua vote-lhe uma certa afetividade, pelo fato de ser o instrumento que usou para relacionar-se com o mundo exterior, expressando suas primeiras necessidades, alegrias, tristezas, afetos, anseios, etc. A própria organização do raciocínio se deu, na criatura, através de sua língua. É inegável a influência da língua sobre o falante e vice-versa. Daí ser evidente a impossibilidade, até agora comprovada pela história, de se estabelecer um monolingüismo mundial, face a ligação afetiva pessoal e a força socializante exercida pela língua sobre a comunidade que a usa quotidianamente. Essa a visão de um idioma pátrio, natural.
Entretanto, se é certo que existe essa vinculação psicológica e afetiva do indivíduo à sua língua materna, não menos verdade é que, em se tratando de uma língua que se pretenda seja usada como internacional, esse liame não precisa necessariamente existir. Um idioma internacional pode ser visto, sentido e usado apenas como instrumento de comunicação, nada mais.
Contrariando aqueles que têm uma visão um tanto poética a respeito do papel das línguas, que vêem os idiomas naturais quase como seres vivos, com existência própria, e vêem as línguas planejadas como algo tão artificial e desumano quanto um robô, pode-se argumentar, dizendo que língua é veículo de idéias, instrumento para a expressão da inteligência e do sentimento humanos. A língua é um meio e não um fim em si mesma. Uma língua vale pela sua capacidade de vestir, de materializar idéias. E, em se tratando de uma interlíngua, quanto mais apta ele estiver a fazê-lo, quanto menos atenção consigo própria ela exigir de seu usuário, quanto mais libertá-lo de preocupações com a forma, tanto mais eficiente e humana será.
Se uma língua internacional neutra, adotada como segunda língua por toda a humanidade, produzir alguma vinculação afetiva entre os seus usuários, tanto melhor, vez que, se o idioma nacional cria uma certa identidade entre os seus falantes, uma noção de pertencimento a uma comunidade nacional, não seria interessante, também, num outro nível, um idioma neutro levar o ser humano a desenvolver uma consciência planetária?
O uso de uma segunda língua traria inequívocas vantagens no campo do ensino. As universidades que se dispusessem a ministrar cursos a estrangeiros poderiam fazê-lo nessa língua internacional, com grande economia de tempo e indiscutível rendimento no desempenho dos alunos. O mesmo se daria em relação ao professor visitante que, fora do seu país de origem, usaria sempre a língua internacional.
No campo científico, a situação é semelhante. Quando se trata de comunicação escrita, através de livros ou de periódicos especializados, há tempo de se recorrer a dicionários e a tradutores. Mas, num congresso internacional, onde os participantes das sessões de comunicação e debates científicos são originários de países diversos, as barreiras lingüísticas, não raro, impõem grandes prejuízos ao rendimento do encontro.
Apresentar um trabalho, explicar uma nova teoria, expor o produto de uma pesquisa em língua estrangeira pode não apresentar grandes dificuldades, mesmo para aqueles não afeitos ao estudo de línguas, quando essas comunicações não envolvem debates, pois o autor simplesmente lê um texto previamente preparado, já revisado, eventualmente com a ajuda de pessoas que dominam melhor o idioma. Entretanto, no caso de debates em que o autor deve responder a questionamentos ou esclarecer pontos obscuros, aí ele terá que usar de improviso a língua estrangeira, ou valer-se de intérprete, o que torna a atividade menos atraente e menos produtiva.
É comum ouvir-se dizer que alguém fala várias línguas. O mito de se falar muitas línguas é um tanto generalizado, mas na verdade é reduzido o número daqueles que conseguem dominar dois ou mais códigos lingüísticos com proficiência. Àqueles que dizem: “todo o mundo fala Inglês” seria lícito perguntar: “em que nível?” É fácil comunicar-se para solicitar um táxi, um quarto em hotel, um sanduíche, uma refeição... Mas, esse imenso contingente humano que consome horas e horas, anos a fio, a estudar uma língua estrangeira estará em condições de assistir a um filme, a uma peça teatral, a ouvir uma música, a apresentar uma tese filosófica, científica, política, discutindo-a depois? Pode-se argumentar dizendo que é por falta de uso. Sim, é verdade, pois o domínio pleno de uma segunda língua postula, não só treinamento, como também uso regular. No caso de um bilingüismo mundial esse uso seria mais freqüente pelo fato de estarem disponíveis literatura, filmes, programas estrangeiros de rádio e televisão.
Uma língua internacional aprendida como segunda língua por todos os povos seria a solução fácil do problema. Ao achar-se alguém em presença de um interlocutor falante de idioma desconhecido, apelaria imediatamente para o denominador comum, a segunda língua. Assim, desde a escola elementar, o indivíduo teria dois canais de comunicação: a língua pátria para falar com seus concidadãos – ou com estrangeiros que eventualmente falassem a sua língua – e um segundo idioma para uso internacional. Solução racional e prática, adotada internamente em vários países, como na Itália, por exemplo, onde o cidadão comum, ao perceber que seu interlocutor não fala o seu dialeto, passa imediatamente para o Italiano padrão, o idioma nacional, aquele que se originou de um dialeto, do “Volgare” de Florença, divulgado por Dante. É interessante observar que foi em torno desse idioma comum que o povo italiano chegou à unificação nacional. É de se notar, também, que os italianos nunca abriram mão do uso dos dialetos regionais na intimidade local ou doméstica. Adotando uma língua comum, demonstraram bom senso capaz de solucionar um problema social, tendo em vista o fato inegável de serem muitos dialetos italianos ininteligíveis entre si. Por que não estender aso mundo um bilingüismo internacional, a exemplo de tantos nacionais?

Características principais de uma interlíngua
Uma interlíngua deve ser absolutamente neutra. Não pode ser vinculada a nenhum poder político, econômico ou religioso. Deve ser igualmente acessível a todos os povos, sem ser propriedade particular de nenhum. Logo, não pode ser um idioma natural.
Entretanto, se por um lado não pode ser um idioma natural, por outro, deve necessariamente basear-se em elementos naturais, buscado ao mesmo tempo um alto padrão de regularidade, capaz de dar ao seu usuário segurança nas analogias e generalizações que venha a fazer.
Deve levar a um índice máximo as características positivas das línguas naturais. Para alcançar essa condição ideal deve:
Ter perfeita correspondência fonema/grafema, ou seja a escrita deverá ser a própria transcrição fonêmica;
Ter acento tônico constante, dispensando assim a acentuação gráfica e dando completa segurança na reconversão oral;
Não conter flexão verbal de pessoa, eliminando com isso a necessidade de memorização de conjugações;
Ser aglutinante, dentro de um padrão de regularidade absoluta. Assim, a formação de novas palavras seria de competência do usuário comum e o dicionário já não mais seria o árbitro a decidir sobre a legitimidade da formação de um neologismo;
Não ter gênero gramatical. A diferenciação masculino/feminino se restringiria aos seres sexuados;
Ser absolutamente regular a flexão de número dos substantivos (e adjetivos, se for o caso);
Ter possibilidade de enriquecimento do seu léxico da mesma forma como ocorre com os idiomas naturais, obedecidos os seus padrões morfo-fonológicos.
Além dessas características intrínsecas, o idioma proposto como segunda língua para toda a humanidade deverá apresentar resultados práticos de funcionalidade, comprovados pelo uso efetivo, tanto como elemento de comunicação oral, quanto como código de registro escrito. Deve provar a capacidade de expressar o pensamento humano nos mais variados níveis e situações.
A adoção de um código neutro de comunicação internacional é apenas questão de tempo. Ao homem que, inteligentemente, adotou a linguagem internacional das notas musicais, do Código Morse, dos sinais de tráfego, que universaliza de modo crescente o sistema métrico, não lhe será impossível adotar uma língua planejada neutra como um código de comunicação falada e escrita, o que constituirá uma demonstração de espírito prático, de bom-senso e, sobretudo de justiça!

RESUMO
Análise da necessidade de uma língua auxiliar neutra para uso internacional. Desproporção entre o avanço tecnológico e científico alcançado nos dois últimos séculos e a precariedade da comunicação humana. Em nível internacional. A falta de sensibilidade dos lingüistas diante do problema da comunicação internacional. Exame das possíveis conseqüências negativas face à adoção de uma língua natural, em caráter oficial, como interlíngua. Considerações sobre a eficácia da tradução. Proposta de um bilingüismo mundial, com base em uma língua planejada. Características mínimas exigíveis de uma língua planejada para o desempenho do papel de segunda língua de toda a humanidade.
RESUMO
Analizo de la bezono de helpa neùtrala lingvo por internacia uso. Malproporcio inter la atingoj de la teknologio kaj scienco dum la du lastaj jarcentoj kaj la malefika homa internacia komunikado. La manko de sentiveco de la lingvistikistoj fronte al problemo de internacia komunikado. Analizo de la eblaj malkonvenaj konsekvencoj rilate al la oficiala adopto de iu ajn nacia lingvo, kiel interlingvo. Konsideroj pri efiko de tradukado. Propono de monda dulingvismo surbaze de iu planlingvo. Minimumaj nepraj karakterizoj de planlingvo por ludi la rolon de dua lingvo de la tuta homaro.

BIBLIOGRAFIA
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