BILINGÜISMO MUNDIAL: UTOPIA OU SOLUÇÃO?
José Passini (UFJF)
Existe a necessidade de uma língua neutra?
A necessidade de uma língua internacional cresce na proporção
em que se aprimoram os meios de comunicação e de transporte.
Se os meios de comunicação e de transporte aproximam os homens,
as línguas os distanciam. Hoje pode-se perfeitamente ligar o telefone
para o hemisfério oposto e, em poucos segundos, até mesmo
sem a intermediação de um telefonista, ter-se, a milhares
de quilômetros, um interlocutor que pode não ser aquele que
fala uma língua em comum com a pessoa que fez a chamada. Não
havendo uma língua em comum, será o mesmo que ninguém
respondendo ao telefone.
No relacionamento oficial entre países de línguas diferentes,
a situação se torna às vezes extremamente delicada
por envolver aspectos relativos à preservação da soberania
nacional, a exemplo do que ocorre na Comunidade Européia. Para não
dar supremacia a nenhum de seus países-membros pela adoção
de sua língua como instrumento oficial de comunicação
– os documentos são traduzidos, parágrafo por parágrafo,
nas onze línguas dos quinze países que dela participam, antes
de receberem as assinaturas das autoridades respectivas. Isso, em se tratando
de documentos escritos. O problema com debates orais, em plenário,
é ainda maior.
Nascida de um esforço para resolver problemas na área
econômica, a Comunidade Européia tem ampliado o seu campo
de ação, o que fez surgir o Parlamento Europeu como tribuna
de debates de assuntos de ordem científica, cultural, social e política,
de interesse de toda a Europa e, não raro, de todo o mundo. É
uma nova mentalidade que agora se sobrepõe às antigas concepções
nacionalistas. Por todo o continente nota-se um esforço crescente
de convivência política e de intercâmbio cultural, que
aumenta sob a inspiração e o amparo da Comunidade Européia.
Caem, assim, barreiras políticas seculares, e não caem mais
rapidamente por causa das barreiras lingüísticas.
Em 1985, Atenas foi elevada ao nível de “Cidade Cultural da
Europa”; esta sendo proposto um ano do cinema e televisão para 1988,
bem como um canal de TV europeu, transmitindo simultaneamente em vários
idiomas. A Comissão está esperando impulsos de uma Academia
das Ciências, Tecnologia e Artes. Já agora se oferece na CE
instrução num âmbito internacional aos jovens. O “Instituto
Europeu de Ensino Superior”, em Florença, o “Europa Kolleg”, em
Brügge, a “Fundação Cultural”, em Amsterdã, o
“Centro Europeu de Formação Profissional”, em Berlim e as
escolas européias já formaram um nome. Alcançar-se-ia
bem mais, se as barreiras lingüísticas fossem reduzidas já
bem cedo.
A necessidade de uma língua comum a todos os povos se evidencia
também em organizações de âmbito mundial, A
ONU, a UNESCO, a Organização Mundial de Saúde, a Cruz
Vermelha Internacional e até sociedades religiosas poderiam livrar-se
do terrível emaranhado produzido pela diversidade de línguas,
e também da delicada questão discriminatória – de
que se queixam tantos países -, adotando uma língua neutra
como instrumento de comunicação. Nessa língua se processariam
diretamente as conversações, com evidente redução
de custo operacional e com um nível mais elevado de segurança
nas comunicações, o que seria alcançado pela eliminação
das traduções.
Essas entidades de âmbito mundial sempre sofrem fortes restrições
no seu desempenho, face aos empecilhos que as barreiras lingüísticas
antepõem ao entendimento direto e rápido, seja pelo código
escrito, seja pelo código sonoro. Têm elas de se valer de
serviços de tradução que, além de onerosos,
retardam o fluxo normal da comunicação.
Hoje, não apenas dotados de recursos financeiros – com maiores
facilidades de se valerem de intérpretes, ou de aprenderem várias
línguas -, mas o cidadão comum é deslocado para países
distantes, sem outro objetivo além daquele de ganhar a vida no exercício
de suas atividades profissionais. Empresas com atividades em outros países
estão se tornando comuns. Seus funcionários, a não
ser aqueles dos altos escalões, ficam completamente ilhados, impossibilitados
de entrar em contato com outros trabalhadores que a empresa venha a recrutar
no país onde estiver situado o núcleo de trabalho.
Como conseqüência das atividades da Comunidade Européia,
vê-se atualmente a grande facilidade de movimentação
de pessoas, até mesmo de trabalhadores que, sob o amparo de suas
leis, prestam serviços nos vários países-membros,
mais como concidadãos do que como estrangeiros. Entretanto, se as
barreiras políticas estão caindo, o mesmo não acontece
com as lingüísticas. Tome-se por exemplo uma pessoa que se
veja compelida a atravessar uma região onde não se fale um
idioma que lhe seja conhecido. Necessitando de alojamento, de alimentação,
ou mesmo de socorro para um veículo, não lhe será
difícil valer-se da mímica. Entretanto, esse expediente não
lhe será de uso tão eficaz no caso de encontrar-se subitamente
enferma e necessitar de socorro médico. A mímica poderá
ser inócua e até fatal. Casos assim não são
meramente hipotéticos, ocorrem cada vez com mais freqüência,
graças à mobilidade que os meios de transporte propiciam
ao homem comum.
No ano passado, em Roterdam, morreu um número elevado de trabalhadores
estrangeiros porque o médico assistente, em virtude da barreira
lingüística, não pode fazer um diagnóstico certo
e a tempo. Estes fatos foram expostos na reunião de membros da seção
de Roterdam da Sociedade Real Holandesa para o Avanço da Medicina,
segundo relatório anual de 1971, da fundação “Ajuda
aos Trabalhadores Estrangeiros, Rijnmond”.
Em pesquisa feita entre profissionais de saúde de Roterdam,
perguntou-se até que nível falavam, por exemplo, o Espanhol,
o Turco, ou o Árabe. Provou-se que quase todos os especialistas
e médicos não dominam estas ou outras línguas dos
trabalhadores estrangeiros.
A falta de uma língua comum, de uma segunda língua, afeta
até as competições esportivas mundiais. Há
uma evidente falta de comunicação verdadeiramente humana
entre atletas, juízes, fiscais e demais elementos das equipes, perdendo-se
nessas ocasiões, excelentes oportunidades de um enriquecimento mútuo,
por ser a comunicação, de modo geral, precária, para
não dizer primária. O mesmo se pode dizer em relação
ao intercâmbio comercial e ao próprio turismo que, graças
ao isolamento lingüístico, o viajante perde a fascinante oportunidade
de contato direto com pessoas de outros países.
Urge, pois, dar ao ser humano, que sai para trabalhar, estudar, fazer
turismo ou exercer qualquer outra atividade num país onde se fale
outra língua, a possibilidade de comunicar-se direta, fácil
e profundamente com seus habitantes. Tal contato humano, tão necessário
quanto fecundo, terá muita mais possibilidade de se efetivar, se
for feito através de uma língua de fácil aprendizado,
que seja politicamente neutra, cujo ensino, difusão e uso não
signifiquem um atentado à soberania de povo algum.
A Comunidade internacional tem acompanhado o avanço tecnológico
e científico?
Nestes dois últimos séculos, o mundo conheceu um desenvolvimento
sem precedentes na história da humanidade. Do transporte a pé,
a cavalo, até à carruagem, o homem levou milênios.
Da carruagem ao automóvel o tempo foi muito mais curto, e mais curto
ainda, do automóvel ao avião supersônico. Igualmente
no campo da comunicação: Inicialmente era o mensageiro a
levar a mensagem escrita ou decorada. Milênios apôs surge o
serviço postal. Bem mais rapidamente chega-se ao telégrafo
e deste à Internet foi pouco mais de um século, passando
rapidamente pelo telex, pelo telefone de discagem direta e pelo fax. Hoje,
até a televisão ultrapassa os limites dos continentes.
Os meios de transporte e de transmissão de mensagens cada vez
mais aproximam os homens. A cada ano que passa, com facilidade crescente,
os meios de transporte colocam, diante uns dos outros, seres humanos de
regiões longínquas. Os meios de transmissão oferecem
a possibilidade de se fazer chegar não só a fala , mas também
a imagem a todos os quadrantes do planeta. Entretanto, essa aproximação
é física apenas, não inteiramente humana, pois, não
raro, o homem olha aquele que poderia ser seu interlocutor com ares de
frustração e desalento, vez que não consegue comunicar-se
com ele.
À medida que o mundo se apequena, o problema da comunicação
se agiganta. O avanço científico e tecnológico tem
possibilitado o aparecimento crescente de empresas comerciais e industriais
que operam internacionalmente. As leis evoluíram e permitem, cada
vez mais uma aproximação de nações, mas a aproximação
de homens é prejudicada diante do fato de não haver instrumento
de comunicação compatível com as necessidades geradas
pelo intercâmbio. O intercâmbio universitário em nível
mundial é cada vez maior. Neste século houve um aumento sem
precedentes no número de estudantes estrangeiros. O estudante, num
país estrangeiro, gasta boa parte de seu tempo precioso a lutar
com a língua em que deve receber as aulas, estudar e, na maioria
dos casos, apresentar um relatório final, um ensaio, ou escrever
e defender uma tese. O mesmo se diga das pesquisas. Cientistas dirigem-se
a lugares distantes, até a outros continentes, mas o seu trabalho
não se desenvolve com a rapidez esperada, diante da dificuldade
de comunicação. Quanta experiência preciosa se perde,
ou não é partilhada integralmente por falta de uma língua
comum. Os meios de transporte e de transmissão de mensagens evoluíam,
mas os meios de comunicação não lhes acompanharam
o progresso. A possibilidade de comunicação direta entre
aloglotas, paradoxalmente, até decresceu, tendo-se em vista que
o Latim foi a língua neutra que possibilitou a comunicação
científica, diplomática e religiosa em nível internacional
durante quase um milênio.
Os Lingüistas têm-se preocupado seriamente com o tema?
Por paradoxal que pareça, os congressistas internacionais que
menos percebem esses problemas são justamente aqueles que estão
mais próximos do estudo da linguagem – os lingüistas. Estes,
pela sua própria condição profissional, dominam várias
línguas, entre as quais sempre se encontra uma que lhes sirva para
a ocasião. Além do mais, por tratar-se de seu instrumento
de trabalho quotidiano, o lingüista maneja um idioma que não
seja o seu – embora não sabendo fazê-lo com perfeição
– com toda a naturalidade e sem prejuízos psicológicos que
sobrevêm, nessas circunstâncias, a quase todos os demais cientistas.
Os sociolingüistas ainda não voltaram toda a sua atenção
para o Esperanto e nem para qualquer outra das línguas internacionais
propostas. Quando o fizerem, será possível examinar análises
lingüísticas dessas línguas, assim como estudar relatórios
do seu possível impacto em países nas quais sejam amplamente
usadas.
Inúmeras dissertações de mestrado ou teses de
doutorado têm sido baseadas em pesquisas feitas em comunidades lingüísticas
de pequenos grupos de falantes. Entretanto, os lingüistas, pesquisadores
ou orientadores de pesquisa ainda não se dispuseram ao estudo de
um idioma iniciado há pouco mais de um século como um modesto
projeto e que se tornou uma língua viva, elemento de comunicação
de milhares de indivíduos, espalhados em mais de 80 países.
Língua que passou imperceptivelmente da condição abstrata
do puro ideal para o terreno concreto da comunicação humana,
apresentando hoje uma biblioteca com mais de 30.000 títulos, entre
originais e traduzidos, além de manter mais de cem periódicos
e de ser o veículo de comunicação de dezenas de sociedades
de âmbito mundial. Língua que reúne anualmente centenas
de adeptos em seus congressos nacionais e milhares nos internacionais,
oriundos de mais de meia centena de países. São os únicos
congressos internacionais onde não há intérpretes.
O Esperanto, fenômeno ímpar na história da Humanidade,
ainda não conseguiu despertar o interesse dos meios acadêmicos
que, não raro, se perdem na discussão de teorias abstratas,
preterindo um campo frutífero, porque vivo, concreto, real.
Por outro lado, não se pesquisa também o resultado prático
do imenso investimento feito até pelo poder público, em relação
ao ensino de línguas estrangeiras. Qual o percentual de alunos que,
após o término do 1o ou do 2o grau, conseguem ler e interpretar
um texto? Mesmo com essa pletora de cursos particulares especializados,
os alunos, ao ingressarem nas universidades, principalmente nas públicas,
disputam vagas em disciplinas de língua estrangeira, na condição
de matéria opcional ou eletiva. Se os anos de 1o e 2o graus, somados
muitas vezes aos cursos extras, tivessem dado condição segura
pelo menos de leitura, esses acadêmicos iriam dedicar seu tempo a
disciplinas que, embora eletivas, tivessem mais afinidade com o seu campo
especializado, enriquecendo o seu currículo. Não são
conhecidas pesquisas nesse sentido, talvez por não serem sugeridas
por aqueles que orientam cursos de pós-graduação e
as respectivas dissertações e teses.
Exatamente pela falta de pesquisas sobre o assunto é que se
vêem afirmativas descompromissadas com a realidade, em obras tanto
destinadas ao estudo da lingüística , quanto a outras, endereçadas
ao público leigo. Além daqueles que fazem afirmativas gratuitas,
há também os que, por falta de conhecimento e de argumentos
para debaterem o assunto, preferem o caminho da ironia, do chiste e até
do desrespeito. Lamentavelmente há afirmativas que, de tanto serem
repetidas e citadas, vão-se firmando como verdades científicas
irretorquíveis. Exemplo claro é o fato que, embora não
se tenha notícia, em nenhum dos movimentos em prol da adoção
der uma língua artificial ou planejada, de posicionamento visando
à substituição das nacionais por uma única
língua, podem-se ler afirmativas como esta:
A necessidade de uma única língua mundial não
nasce, a menos até que um único governo mundial seja estabelecido
(...) A diversidade de línguas é parte da interessante diversidade
cultural que caracteriza o homem. Qualquer tentativa de determinar o desaparecimento
dessa diversidade será não somente fútil, como também
culturalmente mutilante. Qualquer tentativa de substituir essas línguas
por uma língua artificialmente criada é igualmente fútil
e perigosa.
Inserir uma declaração dessa natureza num livro de lingüística,
num capítulo em que trata de línguas nacionais e internacionais,
é algo tão estranho e extemporâneo quanto numa obra
de topografia fazer comentários sobre a inconveniência de
se desbastar o Monte Everest a fim de que a superfície terrestre
fique mais plana... Outro autor, embora sua obra seja de lingüística
e pertença a uma coleção denominada Debates, leva
o assunto para o campo da poesia:
Mas se a pluralidade das línguas é inerente à
humanidade e os homens se desentendem com toda a naturalidade quando falam
um língua comum, seria mais óbvio ver no plurilingüismo
um fenômeno tão natural como, por exemplo, a diversidade da
cor dos olhos humanos, que ninguém pensa em reformar e que para
muitos constitui fonte de beleza e espanto.
São posicionamentos equivocados como esses que levam outros
lingüistas a assumirem atitude hostil ou um ar de complacência
diante daquilo que imaginam ser algo pueril, inocentemente alimentado por
criaturas que estão fora da realidade, sonhadoras, utópicas.
Quais as conseqüências da adoção, em caráter
oficial, de uma língua nacional como interlíngua?
Uma vez reconhecida a necessidade de uma língua internacional,
resta o problema da escolha daquela que deverá desempenhar esse
papel. O uso de línguas naturais nessa função não
tem conseguido preencher a lacuna deixada pelo abandono do uso do Latim,
que foi instrumento de comunicação diplomática, de
divulgação científica e de discussão filosófica
e política durante toda a Idade Média,
O fato de não pertencer a povo algum dava ao Latim a condição
primeira para o desempenho de papel de interlíngua: a neutralidade
política. As línguas naturais encontram sempre fortes restrições
em seu uso com língua internacional, restrições que
variam, segundo as áreas onde se pretenda usá-las. Não
há uma única língua natural que garanta ao seu usuário
livre trânsito em todo o mundo, para não dizer nem mesmo em
toda a Europa.
Apesar disso, as nações econômica e politicamente
poderosas concentram grandes esforços e despendem enormes recursos
financeiros no sentido de difundirem e, até certo ponto, imporem
seus idiomas para uso internacional, visto serem inegáveis os rendimentos
em prestígio político e as vantagens econômicas que
retornam como altos dividendos, em razão de investimentos bem aplicados.
É muito fácil, para o falante nativo, parlamentar, influenciar,
convencer, vender, vencer um debate e até mesmo dominar, quando
o interlocutor fala uma língua que não seja a sua própria.
Assim, eleger, em âmbito mundial, uma língua natural para
o desempenho da tarefa de interlíngua é conceder ao povo
que a fala como nativo uma série de prerrogativas contra as quais
se insurgiriam os demais povos, a argüirem o mesmo direito de não
serem obrigados às despesas e aos esforços necessários
ao aprendizado de uma língua estrangeira.
Aceitar oficialmente o idioma de outro povo como segunda língua
é elevar o país de origem desse idioma à condição
de metrópole intelectual. É submeter-se-lhe psicologicamente,
aceitando a sua influência política, econômica e, principalmente,
a sua cultura, no sentido mais abrangente do termo. Não se defende,
ao pôr-se em relevo a gravidade desse problema, um nacionalismo absurdo,
fechado às idéias renovadoras vindas do exterior. É
de senso comum que nenhum país pode progredir de forma apreciável,
se fechado ao confronto salutar com as idéias geradas em outras
culturas. O que se busca demonstrar é o perigo de uma descaracterização
nacional como conseqüência da forte influência de uma
determinada cultura, aceita, às vezes, inconscientemente, através
da adoção da língua de um outro povo, na condição
de segunda língua.
No caso de se adotar alguma língua neutra, isto é, que
não seja a língua nacional de povo algum, as influências
recebidas do exterior se originariam de fontes diversas, porque conduzidas
através de uma língua igualmente acessível a todos
os povos. A adoção de uma língua internacional neutra
permitiria àqueles povos, cujas línguas não têm
penetração internacional, a divulgação de sua
posição política, da sua literatura, dos seus progressos
sociais e científicos, diretamente ao resto do mundo, sem Ter de
se sujeitar ao processo seletivo da corrente de informação
a que a tradução em uma língua natural conduziria.
Ao traduzir-se uma obra em um idioma natural, que desempenha o papel
de língua internacional, raramente tem-se em vista a sua divulgação
mundial. As traduções são quase sempre feitas em função
do gosto e dos interesses do povo ou dos povos falantes dessa língua,
o que constitui um fator altamente seletivo e restritivo na divulgação
de idéias em âmbito mundial, em desfavor dos usuários
das línguas minoritárias.
A tradução em uma língua neutra, ao contrário,
destinar-se-ia indistintamente a todos os povos e facilitaria sobremaneira
o acesso a uma literatura muito mais vasta aos povos em cujas línguas
as traduções não seriam rentáveis.
Além do mais, por uma questão de eqüidade, se não
mesmo de justiça, as conversações entre estadistas
deveriam se processar sempre em uma língua estranha a ambos, pois,
do contrário, o falante nativo do idioma usado como internacional
levaria enorme vantagem sobre o seu interlocutor. Infelizmente não
é questionado. Pelo contrário, vê-se, até com
alguma freqüência, representantes de governos abrindo mão
de sua soberania nacional, falando subservientemente a língua do
interlocutor, por ser tida como internacional. Não é esta
também uma forma de entreguismo? Seria entreguismo político,
cultural? Por que se questiona apenas o entreguismo econômico?
A Tradução é eficaz em todas as situações?
Tradução não é atividade simples como parece
à primeira vista. Traduzir não significa substituir pura
e simplesmente as palavras de uma língua pelas suas correspondentes
na outra, como geralmente pensa o leigo. Se assim fosse, de há muito
os computadores estariam operando em substituição aos tradutores
humanos. Traduzir significa decodificar uma mensagem, interpretá-la
completamente e, depois, codificá-la numa outra língua, que
apresenta características específicas em sua estrutura, nos
seus recursos expressivos, por vezes muito diversos daquela na qual a mensagem
foi elaborada originalmente. Traduzir é passar de um universo a
outro, pois cada comunidade de fala recorta a realidade , categoriza-a
de um modo próprio, construindo o seu universo lingüístico.
As línguas são simbólicas, refletem o mundo de maneira
particularíssima, circunscrevendo o raciocínio dentro dos
limites lingüísticos de cada povo. Por isso, tradução
em bom nível requer, do tradutor, além de larga dose de conhecimento
específico na área em que opera, amplo domínio das
duas línguas, o que inclui, necessariamente, o conhecimento profundo
da própria psicologia dessas línguas.
O problema se agrava na tradução oral. No recesso de
seu gabinete, o tradutor tem tempo para pesquisar, analisar, comparar,
meditar, para, finalmente, se decidir pela forma mais apropriada. Na tradução
oral, seja paralela ou simultânea, existe a pressão psicológica
das possíveis comparações esperadas de ouvintes que
têm acesso às duas línguas. Há, ainda, o fator
tempo. Há que se traduzir, de qualquer forma, aquela seqüência
sonora, porque outra a sucederá imediatamente e não poderá
ser repetida.
No caso de o tradutor funcionar como intérprete, em presença
do falante, há outros aspectos a serem considerados: a presença
física, a expressão fisionômica, a mímica, o
timbre da voz, tudo isso poderá influenciar favorável ou
desfavoravelmente o tradutor, cujo estado emocional irá influir,
se não no tom pelo menos na escolha da palavra ou expressão
que irá usar. Um tradutor é um ser humano, dotado de preferências
e de idiossincrasias. Não é uma máquina. Em muitos
casos, por mais que se esforce, não consegue transmitir a mensagem
com o colorido desejável e com a ênfase ouvida, simplesmente
porque ele é um tradutor, um intérprete lingüístico,
e não um ator que assuma completamente a personalidade que está
produzindo a mensagem. A não ser que a mensagem seja completamente
simples, é muito improvável que não sofra a influência
do tradutor, que vai desde a simples tradução maquinal, com
o apagamento do poder expressivo, até a cortes e acréscimos
inconscientes ou conscientes. Por isso, numa conversação
entre falantes de línguas diferentes, a comunicação
será mais eficiente se for direta, com o uso de um idioma que não
lhes pertença, porque fica eliminada a personalidade intermediária
do tradutor.
Entretanto, sobre assunto tão sério e preocupante, há
manifestações daqueles que ora sofismam, ora tentam fazer
humorismo:
Gasta-se muito tempo e dinheiro em tradução, reconheço.
As sessões da ONU seriam menos longas e cansativas se realizadas
numa língua só. Mas quem pode garantir que seriam mais eficientes?
O ordenado dos tradutores (geralmente pessoas pacatas e morigeradas), se
liberado, será gasto em construção de hospitais ou
em corrida armamentística?
A afirmação parte de um autor de obras sobre tradução,
que é, além disso, tradutor profissional. “As reuniões
da ONU seriam menos longas e cansativas se realizadas numa língua
só. Mas quem pode garantir que seriam mais eficientes?” Estaria
ele considerando, quando diz: ö uso duma língua só”,
o uso duma língua nacional, ou de uma das línguas planejadas
anteriormente discutidas na sua obra? Se se referiu a um idioma nacional,
pode Ter razão, mas em relação a uma língua
planejada, neutra, regular, absolutamente não! Nos conclaves mundiais,
há uma considerável perda de tempo com tradução
e, quase sempre, uma perda na qualidade da comunicação, pelo
fato de que, na maioria das vezes, o destinatário da tradução
ser compelido a recebê-la numa língua que não a sua.
Quantos participantes de congressos mundiais vão ler, no quarto
do hotel, o texto da palestra ouvida, cuja oportunidade de discussão
perderam por falta de capacidade de comunicação imediata.
...numa reunião científica internacional, há invariavelmente
o desapontamento de se verificar que, em virtude da diferença de
hábitos lingüísticos, a dificuldade de comunicação
com cientistas estrangeiros torna o intercâmbio de idéias
muito menos fácil do que fora imaginado por ocasião do embarque.
Será exeqüível um bilingüismo mundial?
É natural que o falante nativo de uma língua vote-lhe
uma certa afetividade, pelo fato de ser o instrumento que usou para relacionar-se
com o mundo exterior, expressando suas primeiras necessidades, alegrias,
tristezas, afetos, anseios, etc. A própria organização
do raciocínio se deu, na criatura, através de sua língua.
É inegável a influência da língua sobre o falante
e vice-versa. Daí ser evidente a impossibilidade, até agora
comprovada pela história, de se estabelecer um monolingüismo
mundial, face a ligação afetiva pessoal e a força
socializante exercida pela língua sobre a comunidade que a usa quotidianamente.
Essa a visão de um idioma pátrio, natural.
Entretanto, se é certo que existe essa vinculação
psicológica e afetiva do indivíduo à sua língua
materna, não menos verdade é que, em se tratando de uma língua
que se pretenda seja usada como internacional, esse liame não precisa
necessariamente existir. Um idioma internacional pode ser visto, sentido
e usado apenas como instrumento de comunicação, nada mais.
Contrariando aqueles que têm uma visão um tanto poética
a respeito do papel das línguas, que vêem os idiomas naturais
quase como seres vivos, com existência própria, e vêem
as línguas planejadas como algo tão artificial e desumano
quanto um robô, pode-se argumentar, dizendo que língua é
veículo de idéias, instrumento para a expressão da
inteligência e do sentimento humanos. A língua é um
meio e não um fim em si mesma. Uma língua vale pela sua capacidade
de vestir, de materializar idéias. E, em se tratando de uma interlíngua,
quanto mais apta ele estiver a fazê-lo, quanto menos atenção
consigo própria ela exigir de seu usuário, quanto mais libertá-lo
de preocupações com a forma, tanto mais eficiente e humana
será.
Se uma língua internacional neutra, adotada como segunda língua
por toda a humanidade, produzir alguma vinculação afetiva
entre os seus usuários, tanto melhor, vez que, se o idioma nacional
cria uma certa identidade entre os seus falantes, uma noção
de pertencimento a uma comunidade nacional, não seria interessante,
também, num outro nível, um idioma neutro levar o ser humano
a desenvolver uma consciência planetária?
O uso de uma segunda língua traria inequívocas vantagens
no campo do ensino. As universidades que se dispusessem a ministrar cursos
a estrangeiros poderiam fazê-lo nessa língua internacional,
com grande economia de tempo e indiscutível rendimento no desempenho
dos alunos. O mesmo se daria em relação ao professor visitante
que, fora do seu país de origem, usaria sempre a língua internacional.
No campo científico, a situação é semelhante.
Quando se trata de comunicação escrita, através de
livros ou de periódicos especializados, há tempo de se recorrer
a dicionários e a tradutores. Mas, num congresso internacional,
onde os participantes das sessões de comunicação e
debates científicos são originários de países
diversos, as barreiras lingüísticas, não raro, impõem
grandes prejuízos ao rendimento do encontro.
Apresentar um trabalho, explicar uma nova teoria, expor o produto de
uma pesquisa em língua estrangeira pode não apresentar grandes
dificuldades, mesmo para aqueles não afeitos ao estudo de línguas,
quando essas comunicações não envolvem debates, pois
o autor simplesmente lê um texto previamente preparado, já
revisado, eventualmente com a ajuda de pessoas que dominam melhor o idioma.
Entretanto, no caso de debates em que o autor deve responder a questionamentos
ou esclarecer pontos obscuros, aí ele terá que usar de improviso
a língua estrangeira, ou valer-se de intérprete, o que torna
a atividade menos atraente e menos produtiva.
É comum ouvir-se dizer que alguém fala várias
línguas. O mito de se falar muitas línguas é um tanto
generalizado, mas na verdade é reduzido o número daqueles
que conseguem dominar dois ou mais códigos lingüísticos
com proficiência. Àqueles que dizem: “todo o mundo fala Inglês”
seria lícito perguntar: “em que nível?” É fácil
comunicar-se para solicitar um táxi, um quarto em hotel, um sanduíche,
uma refeição... Mas, esse imenso contingente humano que consome
horas e horas, anos a fio, a estudar uma língua estrangeira estará
em condições de assistir a um filme, a uma peça teatral,
a ouvir uma música, a apresentar uma tese filosófica, científica,
política, discutindo-a depois? Pode-se argumentar dizendo que é
por falta de uso. Sim, é verdade, pois o domínio pleno de
uma segunda língua postula, não só treinamento, como
também uso regular. No caso de um bilingüismo mundial esse
uso seria mais freqüente pelo fato de estarem disponíveis literatura,
filmes, programas estrangeiros de rádio e televisão.
Uma língua internacional aprendida como segunda língua
por todos os povos seria a solução fácil do problema.
Ao achar-se alguém em presença de um interlocutor falante
de idioma desconhecido, apelaria imediatamente para o denominador comum,
a segunda língua. Assim, desde a escola elementar, o indivíduo
teria dois canais de comunicação: a língua pátria
para falar com seus concidadãos – ou com estrangeiros que eventualmente
falassem a sua língua – e um segundo idioma para uso internacional.
Solução racional e prática, adotada internamente em
vários países, como na Itália, por exemplo, onde o
cidadão comum, ao perceber que seu interlocutor não fala
o seu dialeto, passa imediatamente para o Italiano padrão, o idioma
nacional, aquele que se originou de um dialeto, do “Volgare” de Florença,
divulgado por Dante. É interessante observar que foi em torno desse
idioma comum que o povo italiano chegou à unificação
nacional. É de se notar, também, que os italianos nunca abriram
mão do uso dos dialetos regionais na intimidade local ou doméstica.
Adotando uma língua comum, demonstraram bom senso capaz de solucionar
um problema social, tendo em vista o fato inegável de serem muitos
dialetos italianos ininteligíveis entre si. Por que não estender
aso mundo um bilingüismo internacional, a exemplo de tantos nacionais?
Características principais de uma interlíngua
Uma interlíngua deve ser absolutamente neutra. Não pode
ser vinculada a nenhum poder político, econômico ou religioso.
Deve ser igualmente acessível a todos os povos, sem ser propriedade
particular de nenhum. Logo, não pode ser um idioma natural.
Entretanto, se por um lado não pode ser um idioma natural, por
outro, deve necessariamente basear-se em elementos naturais, buscado ao
mesmo tempo um alto padrão de regularidade, capaz de dar ao seu
usuário segurança nas analogias e generalizações
que venha a fazer.
Deve levar a um índice máximo as características
positivas das línguas naturais. Para alcançar essa condição
ideal deve:
Ter perfeita correspondência fonema/grafema, ou seja a escrita
deverá ser a própria transcrição fonêmica;
Ter acento tônico constante, dispensando assim a acentuação
gráfica e dando completa segurança na reconversão
oral;
Não conter flexão verbal de pessoa, eliminando com isso
a necessidade de memorização de conjugações;
Ser aglutinante, dentro de um padrão de regularidade absoluta.
Assim, a formação de novas palavras seria de competência
do usuário comum e o dicionário já não mais
seria o árbitro a decidir sobre a legitimidade da formação
de um neologismo;
Não ter gênero gramatical. A diferenciação
masculino/feminino se restringiria aos seres sexuados;
Ser absolutamente regular a flexão de número dos substantivos
(e adjetivos, se for o caso);
Ter possibilidade de enriquecimento do seu léxico da mesma forma
como ocorre com os idiomas naturais, obedecidos os seus padrões
morfo-fonológicos.
Além dessas características intrínsecas, o idioma
proposto como segunda língua para toda a humanidade deverá
apresentar resultados práticos de funcionalidade, comprovados pelo
uso efetivo, tanto como elemento de comunicação oral, quanto
como código de registro escrito. Deve provar a capacidade de expressar
o pensamento humano nos mais variados níveis e situações.
A adoção de um código neutro de comunicação
internacional é apenas questão de tempo. Ao homem que, inteligentemente,
adotou a linguagem internacional das notas musicais, do Código Morse,
dos sinais de tráfego, que universaliza de modo crescente o sistema
métrico, não lhe será impossível adotar uma
língua planejada neutra como um código de comunicação
falada e escrita, o que constituirá uma demonstração
de espírito prático, de bom-senso e, sobretudo de justiça!
RESUMO
Análise da necessidade de uma língua auxiliar neutra
para uso internacional. Desproporção entre o avanço
tecnológico e científico alcançado nos dois últimos
séculos e a precariedade da comunicação humana. Em
nível internacional. A falta de sensibilidade dos lingüistas
diante do problema da comunicação internacional. Exame das
possíveis conseqüências negativas face à adoção
de uma língua natural, em caráter oficial, como interlíngua.
Considerações sobre a eficácia da tradução.
Proposta de um bilingüismo mundial, com base em uma língua
planejada. Características mínimas exigíveis de uma
língua planejada para o desempenho do papel de segunda língua
de toda a humanidade.
RESUMO
Analizo de la bezono de helpa neùtrala lingvo por internacia
uso. Malproporcio inter la atingoj de la teknologio kaj scienco dum la
du lastaj jarcentoj kaj la malefika homa internacia komunikado. La manko
de sentiveco de la lingvistikistoj fronte al problemo de internacia komunikado.
Analizo de la eblaj malkonvenaj konsekvencoj rilate al la oficiala adopto
de iu ajn nacia lingvo, kiel interlingvo. Konsideroj pri efiko de tradukado.
Propono de monda dulingvismo surbaze de iu planlingvo. Minimumaj nepraj
karakterizoj de planlingvo por ludi la rolon de dua lingvo de la tuta homaro.
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