FUSÃO E CONFUSÃO ENTRE OBJETOS E MÉTODOS DA LINGÚÍSTICA E DA FILOLOGIA
Maria Lucia Mexias Simon
LINGÜÍSTICA GERAL E LINGÜÍSTICA ROMÂNICA
O título dessa mesa redonda fez-me lembrar texto apresentado
pelo Prof. Celso Cunha, em 1973, em CONGRESSO INTERNACIONAL DE FILOLOGIA
PORTUGUESA. Por diversas razões, só recentemente esse texto
chegou-me às mãos, em forma mimeografada.
Logo no primeiro parágrafo, manifestou o prof. Cunha sua estranheza,
pelo título do Congresso, pois já estava se habituando à
diminuição do prestígio, no País, dos termos
filologia e filólogo, diminuição por ele atribuída
(lembremo-nos, em 1973) "à influência da lingüística
monocrônica americana, de técnica descritiva e não
explicativa."
Ressalta, ainda, o prezado mestre, estar, mesmo na França, o
campo semântico de filologia restrito aos estudos dos textos literários
e à sua transmissão, revestido, até certo ponto, de
caráter pejorativo, pela rudeza com que alguns semiólogos
ou formalistas da nova crítica, ridicularizavam os métodos
de alguns de seus cultores.
Também em outros países, onde o termo filologia já
gozou de grande prestígio, ( que em parte ainda conserva ) como
Itália, Espanha, Alemanha, o aspecto tradicionalista da disciplina
tem dada ocasião a críticas de lingüistas erroneamente
fixados apenas à hora presente e que, por sua vez, acusam os filólogos
de não se utilizarem de conquistas recentes, mantendo uma anacrônica
fidelidade a métodos superados. No mesmo texto, o Prof. Cunha cita
Hammarström, 1959: "A bem dizer, há um abismo entre a descrição
dos filólogos e dos lingüistas. A primeira não faz progressos
há cincoenta anos. Ela é, ainda, pré-saussuriana.
Quanto tempo os filólogos, eruditos, e competentes em domínios
distintos da descrição lingüística, prosseguirão
nas maneiras de proceder que hoje pertencem ao diletantismo? Já
não seria tempo de escolher: ou a renovação, ou o
silêncio? "
Como não vim aqui para provocar brigas, muito pelo contrário,
sou levada a pensar que Hammarström via na filologia apenas a conservação
e transmissão de textos medievais de línguas européias,
com o registro de formas fonéticas arcaizadas e o seu possível
étimo, latino ou não, o que já não seria pouco
trabalho, pois incluiria o levantamento, dos documentos, sua autenticação,
o desdobramento de abreviaturas etc. São operações
delicadas que exigem domínio dos grafemas em relação
aos fonemas, nem sempre fácil de ser obtida. "Deve o filólogo
reconstituir a língua de seu autor, como um sistema em si, a um
tempo sincrônico, sintópico, sinstrático e sinfásico
e, por outro lado, deve estar em condições de observá-lo
dentro do diassistema, ou seja, de um panorama que se desenrola em sua
amplitude diacrônica, diatópica, diastrática e diafásica.
A uma filologia atomística, linear, amesquinhadora, opõem-se,
também, os bons filólogos, como, da mesma forma, os bons
lingüistas. Façamos todos o exame da língua oral, no
seu dia-a-dia, no seu sobreviver e renovar-se, assim como também
da língua escrita, conservada nos textos mais ou menos antigos,
como comprovantes de diversidades, de supostas "modernidades", de formas
regionais, tidas como desaparecidas. Se não os explicarmos, na totalidade,
teremos, ao menos, a sua saborosa fruição como recompensa.
Situando a questão nos dias de hoje ( lingüística
x filologia ), consultamos algumas obras, aleatoriamente, a ver como os
diversos autores dividem, se é que dividem, as tarefas que competem
ao lingüista e as tarefas que competem ao filólogo.
Segue-se, logo nesse ponto, por razões práticas, a bibliografia
consultada, a qual será codificada para melhor manuseio:
CAMARA Jr, J. Mattoso. Princípios de lingüística
geral.Rio: Acadêmica, 1964. (CAM )
FARACO, Carlos Alberto. Lingüística histórica. S.
Paulo: Ática, 1991. ( FAR )
IORDAN, Iorgu. Introdução à lingüística
românica. Lisboa: Ed. Fundação Calouste Gulbenkian,
1962. ( IOR )
MELO, Gladstone Chaves de. Iniciação à filologia
e à lingüística portuguesa. Rio: Acadêmica, 1971.
( MEL )
MIAZZI, Maria Luísa Fernandez. Introdução à
lingüística românica. S. Paulo: Cultrix, 1976 .( MIA
)
SILVA NETO, Serafim, Manual de filologia portuguesa: história,
problemas, métodos. Rio: Presença / Brasília: INL,
1988. ( SIL )
Excetuando-se a obra de Mattoso Câmara, que se propõe
e, de fato é, uma lingüística geral, nos demais só
temos o título filologia, nas obras dos mestres Gladstone e Silva
Neto, sendo que, com exclusividade, apenas nesse último.
Faremos, comparativamente, o traçado das definicões e
tarefas, atribuídas, por esses vários autores às disciplinas
em questão:
FILOLOGIA GERAL / ROMÂNICA LINGÜÍSTICA
GERAL / ROMÂNICA
CAM A lingüística propõe-se a estudar
a língua e não o discurso, a fala, ( a parole);nos
discursos individuais, só devem interessar os elementos vocais coletivos
e a sua organização normal. Se os discursos, que a
cada passo, se nos apresentam à observação são
atos mentais individuais, o indivíduo não cria a sua linguagem,
apenas faz aplicação daquela que lhe foi passada e, até
mesmo imposta no interior de uma sociedade . É, portanto a língua
o objeto de estudo da lingüística . Ressalte-se a hipótese
de depreender do ato lingüístico, o que há nele de individual,
isto é, o esforço do falante em expressar-se da maneira mais
adequada à situação em que se encontra, fugindo a
automatização. A língua será, então,
de maneira geral, coletiva; terá peculiaridades, ou , ao menos,
preferências, constituindo assim, de certo modo, múltiplas
línguas individuais, ou idioletos, mas adequadamente estudados pela
estilística . O estilo é, em princípio, individual,
mas os traços estilísticos coincidem, em grande parte, nos
indivíduos pertencentes a uma sociedade. Em resumo, cada ato de
linguagem se fundamenta num sistema lingüístico, que é,
propriamente, a língua , e também sistematiza os recursos
lingüísticos usados nas peculiaridades individuais e
coletivas dos membros de uma comunidade. ( p 12 e seguintes)
FAR A lingüística histórica lida com
o fato de que as línguas mudam com o passar do tempo: não
são estáticas, pelo contrario, sua configuração
se altera continuamente, no tempo e, também , no espaço.
Essa dinâmica é o objeto de estudo da lingüística
histórica. A maioria dos falantes, ou não tem consciência
das mudanças, ou as têm como erros , com base num padrão
, que deveria ser permanente, uma vez que não sofre variações
uniformes, num mesmo ritmo. Culturas que possuem língua escrita
tendem a desejar para essa um uniformidade, cuja rutura só é
observada e "perdoada" em textos muito antigos ou "regionalistas".
O autor faz, também distinção entre historia da lingüística
e lingüística histórica , ressaltando ser a tarefa
dessa última estudar as mudanças que ocorrem na língua
à medida em que o tempo passa. ( p. 7 e seguintes ) .
IOR Embora só há algumas décadas se fale
de filologia românica, como uma ciência histórica, necessária
ao estudo da língua românica escrita e falada, o certo é
que ela não é descoberta das últimas gerações.
Já na Idade Média se tinha desenvolvido o seu estudo, com
fins práticos e teóricos, à maneira do que se fazia
em Grécia e Roma com a língua e a literatura gregas e latinas.A
partir do século XVIII, os estudos sobre as línguas e
as literaturas românicas apoiaram-se nas ciências aparentadas,
tidas como exatas, na época, compartimentada e enfileirada,
alimentada e delimitada como o determinismo, o evolucionismo, o naturalismo,
etc. Por outro lado, enquanto o nacionalismo favorecia o estudo dos
falares locais, não deixando de opô-los aos falares padrão,
o imperialismo tomava em consideração as línguas ditas
selvagens. Também o estudo da história do país
e das ciências jurídicas obrigava à coleta e à
determinação do significado de palavras arcaicas existentes
nas obras da história e do direito. A filologia passou a trabalhar
sobre textos já existentes e ter a tarefa de separar a palavra dialetal
da expressão equivalente da língua culta. Já
no século XIX , graças aos irmãos Grimm ,
Friedrich Diez e Franz Bopp, formou-se uma visão histórica
da língua, com métodos e objetos próprios. ( p. 8
e seguintes ). Considerando Friedrich Diez como o pai da lingüística
românica, o autor afirma ter sido esse estudioso o primeiro a dedicar-se
ao estudo sistemático das línguas românicas, analisando
e comparando, pela primeira vez, seu patrimônio, sua evolução
fonética, seu sistema de flexão, de derivação
e de sintaxe, servindo o método histórico-comparativo de
elemento de confirmação de fatos já evidentes a muitos
estudiosos do assunto. ( p.7 e seguintes)
MEL A filologia, confundida com a pior deformação
da gramática, andou ...entregue ...a indivíduos corregedores
de erros. A conseqüência é que se foi filtrando
entre os leigos um conceito bem pouco lisonjeiro de ser a filologia
especulação de desocupados. Se ninguém pergunta a
um matemático qual sua opinião sobre determinado ponto de
sua matéria, não falta quem pergunte ao filólogo
o que ele acha disso ou daquilo . O objeto da filologia é
nitidamente estabelecido, com seus métodos próprios, seguros
e apurados, com suas conclusões definitivas. Esse objeto é
a forma de língua atestada por documentos escritos. Trata-se de
uma ciência muito antiga e pode abranger um tipo de língua
ou uma família de línguas. É, sem dúvida,
uma ciência aplicada, onde se pode , ainda, incluir a história
da literatura , já que, quem estuda cientificamente a língua
culta portuguesa, tem que conhecer, muito bem seus monumentos literários.
( p. 20 a 23 ) Se a filologia stricto-sensu é o estudo
científico de uma língua, atestada em seus documentos escritos,
logo se deduz que, onde não há documentos escritos
, não pode haver filologia. Não é, portanto,
possível, uma filologia carajá Cumpre ressaltar
ser a filologia uma ciência aplicada, seu papel é fixar, interpretar
e comentar os textos.
A lingüística, porém, ou glotogia é ciência
especulativa.
O seu objeto é a língua em si mesma, a língua
como fato social. Não a língua A ou B, mas o fenômeno-língua,
sua estrutura, seu conteúdo, sua essência, seus processos,
suas relações com o pensamento, com o sentimento, com a vontade,
com a sociedade, com a cultura, sua desagregação, causas
de estabilidade e fatores de diferenciação, interação
lingüística, etc. Onde houver atividade lingüística,
haverá matéria para a curiosidade científica do lingüista:
línguas de minorias, gírias , falar de crianças,
jargões técnicos, etc. ( p. 20 a 23 )
MIA Costuma-se chamar filologia românica o estuda
das línguas românicas, desde os tempos mais remotos até
às fases atuais. A rigor, deve-se estabelecer diferença entre
filologia e lingüística românica, ou seja, estudo de
textos neolatinos ( não apenas literários, como de ordem
pragmática ) e o das várias línguas oriundas do latim,
tanto sincrônica como diacronicamente. Do ponto de vista
filológico, portanto, cabe ao romanista a pesquisa e publicação
de textos. ( p. 15 a 17 ) . ( A autora cita ainda o Prof. Sílvio
Elia, que considera a filologia um aspecto da lingüística histórica,
do plano diacrônico, em oposição ao plano sincrônico
que seria a gramática - parênteses meus .) No plano
lingüístico estudam-se os vários aspectos da história
das línguas neolatinas, sua evolução a partir do latim
vulgar, as influências externas que receberam, os contatos que mantiveram
entre si, a sua fragmentação dialetal, enfim todos os fenômenos
concernentes ao léxico, à fonêmica, à morfo-sintaxe,
considerados dentro do conjunto neolatino. ( p. 15 a 17 )
SIL Não é absoluta e impermeável
a distinção entre sincronia e diacronia . Cada estado
de língua é continuação de um anterior e, por
sua vez, encerra os germens que o tornarão um novo estado lingüístico
. Se a filologia encerra os estudos possíveis sobre
uma língua ou grupo de línguas , para tanto vai necessitar,
muitas vezes, do fio condutor constituído por sólida base
lingüística. Nas atividades filológicas há Marta
e há Maria. Há o trabalho de campo, os estudos dialetológicos,
a geografia lingüística, como há concentração
na análise de antigo texto da língua, ou nas várias
fases evolutivas dela. ( p. 15 a 18 ) A lingüística
é uma ciência de princípios gerais, aplicáveis
a quaisquer línguas. Desse modo, não podemos falar
em lingüística francesa, lingüística inglesa, etc.
A lingüística será sempre geral. Por sua vez,
o lingüista tem que conhecer os fatos da história de
várias línguas , para poder alcançar seus princípios
gerais. ( p. 15 a 18 )
Fizemos, aqui, transcrições não aspeadas dos autores
citados, pois vimo-nos na necessidade de resumí-las, na esperança
de não ter faltado à fidelidade ao que foi dito.
Podemos observar, assim diversos pontos de vista, ou diversas colocações,
como se diz mais modernamente. Podemos escolher entre elas, ou somar
umas com as outras, no todo ou em parte, ou ficarmos, numa atitude, tão
conciliatória como ávida de trabalho, com todas elas.
Espero que os senhores lingüistas/filólogos, assim como
os senhores filólogos/lingüistas tenham material que nos leve
a meditar e a unir cada vez mais nossos esforços, o
que já estamos fazendo aqui neste Congresso.