METODOLOGIA DE PESQUISA DAS LÍNGUAS INDÍGENAS

Jayme Célio Furtado dos Santos (UERJ)
Nataniel dos Santos Gomes (UERJ)

1. Dados sobre o grupo Xerente:

O termo Xerente significa refugiados, face fuga dos mesmos dos aldeamentos, demonstrando certa habilidade em conviver com não índios, não obstante.
O grupo está localizado a Nordeste do Estado de Tocantins, entre os rios do Sono e Tocantins.
Presentemente, devido a medidas como utilização de vacinas, o grupo tem crescido, estando em torno de 2.500.
O povo Xerente tem resistido a imposição de mudanças, procurando manter-se enquanto diferenciado. Não obstante, observa-se dada mudança interna e externa que influiu na sua comovias, especificamente no que tange aos valores etnossemânticos e mitológicos do discurso Xerente que, no seu singularismo, estabelece uma relação dialética entre os fenômenos da cultura e os da comunicação.
Tal reflexão, cremos, oportunizará uma compreensão do significado do citado discurso, esforço que culminará no seu registro, elemento imprescindível na resistência dos Akwe-Xerente enquanto povo indígena.

2. “Prá você me educar”

Durante os anos em que lecionamos na aldeia, percebemos a necessidade de um material didático que viesse a prover as habilidades e a prática necessária a uma experiência fluente e satisfatória na leitura dos alunos. A pequena biblioteca da Escola Indígena Srêmtowe não conseguia ser eficaz, pois não permitia ao leitor Xerente um texto que estivesse de acordo com seus próprios interesses e necessidades.
O “estardalhaço” em torno de projetos para produção de literatura indígena e treinamento de professores Xerente (tendo participação de uma Universidade pública federal), o que constatávamos nas aldeias era a utilização de cartilhas do “Caminho Suave”, etc, sendo redundante discorrer sobre equívocos na prática docente indígena (como alfabetizar em língua portuguesa). Equívocos estes resultantes, segundo nosso parecer, da ineficiência de alguns órgãos e pesquisadores como verdadeiros sanguessugas, só se utilizando da imagem indígena. Não é incomum que haja parte destes, sempre no discurso político / ideológico bem “elaborado”; seu compromisso e prática deslocam-se proporcionalmente em sentido contrário... Como a  “voz da autoridade”, citamos o Prof. Darcy Ribeiro quando denúncia o que a nosso ver se estende não só a atuação de antropólogos:
Temos o antropólogo que é inimigo do índio, temos antropólogo que é indiferente ao índio, ou o antropólogo, o que é muito freqüente, que está interessado em aprender do índio. Ele vai lá, tira do índio o que é necessário para fazer suas tesezinhas doutorais, para fazer sua carreirinha universitária, mas não quer saber do índio, senão para manipulá-lo em favor próprio.

Em excelente matéria produzida recentemente, Isaac  Costa de Souza, mestre em Lingüística pela UNICAMP,  intitulada: Entre o discurso e a praxis, nos diz que

A descontinuidade entre a teoria e a prática em área indígena dá-se, por um lado, entre os construtos científicos e sua aplicabilidade e, por outro, entre o discurso político e seu compromisso...

Em sala de aula, além da fome estampada no olhar distante dos alunos e das indagações oriundas do massacre cultural que tentam lhes impor, outros desafios se nos apresentavam: com ele, o Xerente interpreta a realidade ao seu redor e o seu papel enquanto ser humano dentro desta realidade?  Por mais filosófico que possa parecer, tal indagação, sendo constantemente realizada, permite menor incidência de erros com os que cometemos ao tentar imprimir certos pressupostos construtivistas que, a partir de indagações, mostraram-se inconciliáveis com a visão Xerente de cultura de repetição (observáveis nos cânticos etc...). No trabalho da língua em si, outra indagação: até que ponto língua e cultura seriam sinônimos? Como trabalhar uma e ignorar outra?
Gostaríamos de citar o texto “Para você me educar”, de Vital Didonet, coordenador da educação pré-escolar:
Para você me educar
Você precisa me conhecer, precisa saber de minha vida,
Meu modo de sobreviver;  conhecer a fundo as coisas nas quais eu creio
E as quais me agarro
Nos momentos de solidão, desespero, sofrimento.
Preciso saber e entender as  verdades, as pessoas e fatos
Aos quais me entrego quando preciso ir além de mim mesmo.

Para você me educar
Precisa me encontrar lá onde eu existo, quer dizer,
No coração das coisas, nos mitos e nas lendas,
Nas cores e movimentos, nas formas originais e fantásticas,
Na Terra, nas estrelas, nas forças dos astros,
Do sol e da chuva.

Para você me educar
Você precisa estar comigo onde eu estou,
Mesmo que você venha de longe e que esteja muito adiante.
Só há adiante para mim: aquele que construo e conquisto.
Só há uma forma de construí-lo: a partir de mim mesmo
E do meio em que  vivo.

Para você me educar
Precisa comprender a cultura do contexto
Em que se dá meu crescimento.
Pois suas linhas de força são as minhas energias.
Suas crenças e expectativas são as que passam a construir
O meu credo e minhas esperanças.
Mas eu também estou aberto para as outras culturas.
Identidade cultural não significa prisão ao espaço que ocupo,
Vindo de fora, nos pode fazer mais nós mesmos.
A cultura universal é produto de todos os homens.
Mas como posso contribuir com essa fraternidade se não constitui
O meu EU e não tenho minha expressão cultural própria?
A educação que eu necessito é aquela que me faz mais eu,
Que desperta, do mistério do meu ser, as potencialidades
Adormecidas. E uma educação que promove minha identidade pessoal.
Eu me educo fazendo cultura e neste ato do geração cultural
Eu construo minha educação, conquisto o meu ser,
Na relação dialógica HOMEM/NATUREZA.

Destarte, a necessidade de um comprometimento de caráter ético, ideológico, não só da nossa pesquisa, mas de nossa ação. Enquanto pesquisador ouvindo-os sempre e atentamente, como também incentivando-os no ideal de uma postura auto-crítica, tão necessária nesses dias em que a manipulação de tantos permite que o indígena seja “sujeito da linguagem, mas não sujeito da ideologia.”
Além de participativa, P.A.se desenvolve em um espiral introspectivo (pesquisa continuada). É  um agir imediato, muito próximo do planejamento participativo. Uma forma de indagação introspectiva coletiva (porque imagina-se pesquisar povos indígenas com preconceitos de índios. Comportando preocupações de caráter ontológico etc, na esfera de cosmovisão do grupo). Na P.A., o pesquisador é um a mais no grupo, integrando-se. Empreendida por participantes em situações sociais concretas, o objetivo seria ode democraticamente situar a ação no grupo pesquisado buscando compreender as problemáticas, transformando-as (é uma pesquisa aplicada, na verdade, pesquisador e pesquisados tentam melhorar o grupo). Usa-se a reflexão e auto-reflexão como potencialização da emancipação humana.
 

Uma pesquisa participativa e aberta a probabilidades

No mundo macroscópico da Física Clássica, os cientistas aplicaram as leis de Newton e deduziram matematicamente entre outras coisas, as órbitas elípticas dos planetas em torno do sol, bem como suas velocidades ao longo desse trajeto. Os resultados foram confirmados posteriormente por observações astronômicas. Mas as partículas atômicas  e subatômicas não descrevem caminhos ou trajetórias tão bem definidas e continuas.
Um ponto interessante a ser considerado é que para a Física das partículas, o observador influência a coisa observada, e nessas condições o ser humano interage com o fenômeno ao participar da observação. Quando utiliza um instrumento de medida, como por exemplo um objeto macroscópico, para observar o comportamento de uma partícula, ele altera o estado da partícula de forma que só se pode dizer de seu comportamento (da partícula) em torno de probabilidades e não de certezas.
Quem teve a oportunidade de estar em contato com livros tais como Nossos índios, nossos mortos (Martins, 1979), Enterrem meu coração na curva do rio (Brown Dee, 1970), entre outros, sabe da dizimação das populações indígenas e da inquestionável realidade de um verdadeiro holocausto no encontro de civilizações, por ocasião da invasão da América. Quem teve oportunidade de vasculhar arquivos estando em contato com registros históricos sabe da sutileza na desde sempre, sistemática espoliação das terras indígenas. Enfim, basta o mínimo de informação e sensibilidade para perceber o quão imprescindível é um engajamento na luta daqueles para com os quais temos dívida histórica. Não há isenções! Por isso, Rubem Alves conclui seu livro A filosofia da ciência com as seguintes citações:
“A bondade não necessita de legitimações epistemológicas”.
Como Brecht, poderíamos afirmar:
“Eu sustento que a única finalidade da ciência está em aliviar a miséria da existência humana.”
3. O discurso Xerente

Percebe-se num primeiro momento, três tipos principais de discurso: o narrativo, o exortativo e o expositivo.
? O discurso narrativo seria usado para descrever os acontecimentos triviais da vida, como as caçadas, viagens, atividades diárias etc.
? O discurso exortativo seria usado em questões específicas como casamentos, ritos de passagens, competições etc. Para se transmitir aconselhamentos e exortações.
? Finalmente, o discurso expositivo seria aquele usado sempre que se queira apresentar a defesa ou reivindicação dos direitos do povo, suas prerrogativas, privilégios, obrigações e deveres.
Exemplificando: (vide anexo)
Estando junto aos Xerente em mais de um momento em que “continuavam a resistência teimosa de existir”. Cerca de 200 policiais armados, apontam metralhadoras para os índios, insistindo em acuá-los a menos de 50 metros, isto dentro do território indígena, devidamente demarcado.
Em tal contexto, impressiona-nos o fato de vir a decisão de abrir fogo ou não contra os policiais, não de seus mais de 30 caciques e sim de dois velhos, representantes das 2 metades Xerente. As posições eram divergentes, e assim, durante horas usavam de um expediente para conseqüente decisão: o discurso Xerente, bastão em punho, o wawé (velho) desempenha a função de orador, músico, poeta e profeta. Nisto diríamos preliminarmente constituir-se o velho índio Xerente no uso da palavra mágica, mística e apaixonada.
Quais seriam as descobertas em se trilhar os caminhos de tal discurso? De qualquer forma, é imperativo tal jornada pois, lamentavelmente, tal discurso tende a desaparecer devido ao desinteresse total da geração atual pelo mesmo, ficando tal conhecimento nos seus significados denotativos, conotativos e figurativo restrito a uns poucos anciãos.
4. Níveis de pesquisa.
Faz-se imprescindível o aprendizado, com respectiva descrição da língua do grupo em questão, bem como a tradução do discurso. Teríamos portanto a priori, a necessidade de traduzir os discursos, produzindo texto escrito em língua fonte (Xerente) para a língua receptora (português).

Língua fonte     Língua receptora
  ?      ?
 Texto a traduzir    Tradução
   ?    ?
  Descobrir o significado  Re-expressar o significado
    ?  ?
         Significado
 
   Na coleta de dados nas diversas categorias lingüísticas (fonética/fonologia; morfologia; sintaxe e semântica), algumas observações:
1º O povo é a única fonte disponível para o aprendizado da língua. Assim sendo, a importância das relações interpessoais. A princípio  seremos  sempre “o estrangeiro” que quer enriquecer a custa deles. Dai ser importante ter verdadeiro interesse pelas pessoas e procurar conhecer certas coisas sobre a comunidade.
2º Agir coerentemente com a cultura do povo, não etnocentricamente. Procurar perceber o mundo através da cosmovisão do povo e não pela nossa própria cultura. Isso implica no desejo de ser aprendiz e não aluno.
O aprendiz:
? Prioriza o conhecimento do povo;
? Pega o que precisa, aprende o que pega; olha para trás e avalia-se, olha para a frente e planeja. Gasta tempo com o povo.

O aluno:
? Prioriza o estudo da língua;
? Estuda muito segundo um esquema rigoroso. Fica preso a seu gabinete.

3º Ter consciência dos fatores que dificultam o aprendizado.
? A complexidade do sistema de sons (no Xerente há 14 vogais, nove orais e cinco nasalizadas. Fonemas, consoantes totalizam 10); devido a um fenômeno de apócope, há 13 padrões silábicos no Xerente sendo seis considerandos como básicos e sete resultantes da perda de vogal em construções gramaticais;
Ex.: CCCCCV – kvbrbe – falar
       CCVCC – kvkoddakv. pre – “espécie de macaco”
? A complexidade gramatical (no Xerente fala masculina / feminina, dual)
? variedade lingüística na comunidade (fala restrita a anciãos);
? oportunidades para contatos com o povo;
? a atitude do povo a respeito dos forasteiros;
? a disponibilidade de tempo para aprender;
? a falta de análise da língua;
? a tendência a usarmos e racionarmos em português.
Por fim, tendo como a priori a afirmação de que sem contexto não há texto (e o meio cultural que o produz). Temos buscado registrar num arquivo de universais aspectos da cultura material, organização econômica, social e política e temos ainda buscado; registrar as formas de controle social, sua perspectiva mundial (conhecimento, filosofia e sobrenatural), divertimento e arte vem como o ensino de cultura.
Desta forma ao traduzirmos o discurso Xerente poderemos considerar a noção de sujeito, ideologia, situação social e história. Naturalmente tal reflexão trará a tona questões de poder como a das relações sociais e interéticas. Como nos diz Gouldner:
No campo social – e o que é que está fora dele? – Não existe realidade alguma que não seja carregada de valor.
 

    5. Exemplos da análise dos padrões de ordem vocabular da língua Karajá (Tronco Macro-Jê)
Estes dados são fornecidos para demonstrar os resultados de uma breve pesquisa com um informante nativo e bilíngue.
a) Posição de sujeito, verbo e objeto: verificamos que a ordem SOV é considerada básica, através de dados dos informantes nativos.
    S            O            V
1.Korera halukuere rirubunãra
jacaré   onça        matou
“O jacaré matou a onça”

S            O              V
2. Kai     idjata    tetota
2ªsg   banana   comeu
“Você comeu banana”.

É interessante notar que o objeto também pode vir prefixado ao verbo em forma de pronome.

S        O              V
3. Teki   riwa-hatenara
    3ª sg    1ª sg-bateu
“Ele me bateu”.
 

 b) Adposição:  esta língua apresenta posposições, conforme o esperado em línguas do padrão OV:
 1. Habu rakre koworoku-ko
     homem  vai   roça-para
“O homem vai para roça”.

c) Construção relativa:  vem posposta ao nome, o que contraria a expectativa do padrão OV:
1. habu riuma rara korera rityreri
  homem caçar foi jacaré trouxe
“O homem que foi caçar trouxe o jacaré.”

d) Adjetivo: vem posposto ao nome, fugindo ao padrão.
 1. hetoku nihikã
     casa    grande
“Casa grande”.

e) Construção Genitiva: genitivos antepostos ao nome.
1. Krobi ma
   macaco fígado
“O fígado do macaco”.

f) Demonstrativo: anteposto ao nome.
1. kua  itxorosa
aquele cachorro
“Aquele cachorro”.

g) Numeral: anteposto ao nome.
1. teki kytura rimãra
    3ªsg peixe  pegou
“Ele pegou um peixe”.

Conclusão:
Terminamos nossa breve exposição com a esperança da demonstração prática de como se faz um trabalho deste nível, longe da teoria desumana, desejamos a prática real.
 

 Anexos:
Índios invadem e interditam obra
Correio Braziliense, p.10, 31/08/94
 
Revoltados com a insistência do governo  do estado do Tocantins de construir uma estrada que irá dividir suas áreas, os índios Xerente invadiram, no último domingo, o canteiro de obras, interditando a construção da ponte sobre o Rio do Sono.
O índios temem que com a chegada de invasores, facilitada pela conclusão da estrada, o território venha a ser depredado e seus costumes violentados.
Uma decisão judicial mandou que as obras fossem suspensas e à revelia da Justiça os trabalhos foram reiniciados no domingo, apesar do governador Moisés Avelino ter se comprometido junto à FUNAI de que seria aguardado o julgamento do mérito.
Os índios atearam fogo em um caminhão que transportava materiais e encontram-se acampados ao lado da ponte em construção. Até mesmo funcionários da FUNAI estão sendo impedidos de terem acesso ao local.
Funcionários da FUNAI temem que uma tragédia seja desencadeada na área, já que policiais militares de Tocantins, fortemente armados, encontram-se de prontidão para invadir o local e garantir a retomada das obras.
A interferência dos Xerente para impedir a construção da estrada tem gerado retaliações aos indígenas por parte do governo local, como a ida dos mesmos às cidades vizinhas para compra de alimentos e prisões arbitrárias dos líderes da tribo, inclusive com violência.
 

Clima é tenso em reserva indígena no TO
 

Folha de S. Paulo, 01/09/94

A situação é tensa na reserva Xerente (a 80 km de Palmas), no Tocantins. Os 1.500 índios da reserva estão armados com flechas e espingardas antigas e fizeram pinturas de guerra em seus corpos.
Eles querem que o governo estadual pare a construção da ponte sobre o Rio do Sono.
O administrador da FUNAI, Edson Beiriz, está na área  negociando com os índios.
Segundo Pedro Paulo Santos, 46, da FUNAI de Gurupi, os índios deram o “grito de guerra” ontem de manhã, quando chegou o reforço da PM. Ele firmou que cerca de 200 policiais estão na área.
 

Conflito à vista

Jornal do Brasil, p. 15, 01/09/94.

Por determinação do ministro da Justiça, Alexandre Dupeyrat, agentes da Polícia Federal e cinco funcionários da FUNAI viajaram ontem para a região de Tocantins e Aparecido do Rio Negro, no Tocantins, para evitar conflito entre 1.500 índios xerentes (sic) e policiais militares. O conflito começou, de acordo com a FUNAI, no último domingo, após o governo do estado ter determinado o asfaltamento de uma rodovia e a conclusão de uma ponte que corta a reserva indígena. Os índios invadiram o canteiro de obras, incendiaram um caminhão e estão mantendo quatro funcionários da FUNAI com reféns.