A ICONICIDADE DA LINGUAGEM VERBAL
CATEDRAL: UMA LEITURA DE CORPUS COMPLEXO
Elizabeth Corrêa de Albuquerque (UERJ)
A semiótica dedica-se ao estudo de uma enorme e intrincada rede de sinais como as imagens, os gráficos, os mapas, os números, as luzes, os objetos, as figuras musicais, os sons, os gestos, etc. Trata-se, portanto, de uma ciência multimídia, cujo conhecimento e exploração se tornam obrigatórios numa era que se quer cibernética.
A semiótica também estuda os fatos culturais, as atividades e práticas sociais, sempre que estes constituem práticas de internação social e produção de linguagem e de sentido, ou seja, em práticas significantes.
Na ótica peirceana, a semiótica examina os modos de constituição e captação dos fenômenos, buscando a compreensão do seu processo significativo e da produção do sentido[1]. Em suma, a Semiótica vista a distinguir o ser-de-linguagem dos fenômenos, isto é, sua ação de signo.
Acrescendo-se às leituras de signo não verbais apresentadas nos itens 1 e 2 deste artigo, trazemos ao texto uma exploração semiótica de texto verbal associado ao texto melódico da música Catedral. Trata-se, portanto, de uma leitura de corpus complexo, ou seja, constituído de signos de natureza diversa: os verbais em língua portuguesa na letra e os não-verbais, melódicos, que constituem a música.
Partindo-se da premissa de que em toda tradução há criação, especialmente quanto se trata de texto poético, uma vez que cada língua retrata uma cosmovisão particular que envolve uma configuração estilística específica, relembramos a teoria da iconicidade[2] (PEIRCE, 1839-1914), que no ato criativo em linguagem verbal se dá uma desconvencionalização do signo na direção de qualidades analógicas, inusitadas, primeiras. Assim, passa-se da terceiridade simbólica e automática para a primeiridade icônica e criativa. E é nessa qualidade que vamos buscar ler Catedral, com vista à, ainda que de modo sucinto em respeito à limitação do tempo-espaço destinado a este trabalho, apontar marcas do diálogo travado entre o verbal (letra) e o não-verbal (música) na edificação da mensagem contida no texto-corpus desta análise.
Eis o texto –Corpus:
Catedral[3]
O deserto
que atravessei
ninguém me viu passar
estranha e só
nem puder ver
que o céu é maior
tentei dizer mas vi você
tão longe de chegar
mais perto de algum lugar
É deserto onde eu te encontrei
você me viu passar
correndo só
nem pude ver
que o tempo é maior
olhei para mim me vi maior
olhei para mim me vi assim
tão perto de chegar
onde você não está
No silêncio da catedral
um templo em mim
onde eu possa ser imortal
mas vai existir
eu sei que vai existir
vai resistir nosso lugar
Solidão
Quem pode evitar
te encontro em fim
meu coração é secular
sonha e deságua
dentro de mim
amanhã devagar
me diz
como voltar
Se eu disser
que foi por amor
não vou mentir para mim
se eu disser
deixa pra depois
não foi sempre assim
tentei dizer mas vi você
tão longe de chegar
mais perto de algum lugar
Nossa leitura partirá da conotação, focalizada sob o ponto-de-vista da lógica, onde conotação é a propriedade que tem um termo de designar um ou mais seres, dando a conhecer alguma coisa de sua propriedades (s.v. DIC. AURÉLIO). Ainda no âmbito da lógica, é sinônimo de compreensão, definida como o conjunto dos elementos (características, propriedades, qualidades) pertencente a um conceito (id. ib.). Destarte, examinar a conotação implica investigar o processo de compreensão de algo; e no corpus de nosso estudo, a iconicidade da linguagem verbal será explorada no eixo das conotações, uma vez que o plano denotativo, ao contrário, finca-se na terceiridade simbólica, convencional, enquanto o plano metafórico da conotação nos leva à exploração dos raciocínios associativos, portanto, estimula a imaginação criadora e receptor.
Iniciando no título, tem-se que Catedral apresenta dois textos – o lingüístico e o melódico – associados de modo transsígnico – de modo a tornar perceptíveis as oposições resultantes de modo a tornar perceptíveis às oposições resultantes do confronto entre os semas de catedral e deserto.Tomados iconicamente, é possível percebê-los como representantes da amplidão. por um lado, e da solidão, por outro. Catedral é a amplidão nos limites da fé e da religiosidade, o que sugere uma solidão passageira, resolvida no espaço das crenças e das descobertas; deserto é a amplidão limitada, que aponta para o infinito e para a solidão perpétua.
Ambos os termos nos remetem à idéia de grandiosidade.
A catedral evoca o relacionamento introspectivo de si para consigo mesmo, subjetivo. Em contrapartida, o deserto aponta para o relacionamento com o outro, o objetivo. no diálogo com a melodia, emoldurando os enunciados referentes à catedral, o som é produzido por órgão (instrumento de sopro) em lenta cadência; mas os sons que envolvem os enunciados relativos a deserto são acelerados e envolve outro naipe d instrumentos que não o sopro, como para amenizar a força dos ventos que, via de regra, sopram na vaguidão do deserto.
O deserto da catedral é diferenciado verbalmente no enunciado O deserto / que atravessei/ ninguém me viu passar, pois o outro deserto é representado pelos versos tão longe de chegar / mais perto de algum lugar, portanto, com as noções de amplidão solitária e um distanciamento físico, enquanto que o deserto da catedral contém uma amplidão não-solitária com distanciamento psicológico.
O código melódico acompanhada o mesmo raciocínio, tanto na distribuição do ritmo, como no aproveitamento dos naipes instrumentais, ora lembrando a música religiosa, ora sugerindo ritmos exóticos que apontam para o desconhecimento, o outro.
A mudança do ritmo também pode ser lida como índice ícone da mudança de condição do eu que se manifesta nesta letra: Inicialmente só, encontra o amor no deserto.
Observe-se o trecho: É deserto/ onde eu te encontrei/ você me viu passar/ correndo só.
Na terceira parte da música, há uma modificação mais forte ainda, pois deserto e catedral tornam-se sinônimos de magnitude e ensimesma, onde a solidão e o silêncio (características da catedral e do deserto) se encontram no diálogo interior. A esperança se constrói na fé de existir, resistir e encontrar o nosso lugar (do eu + o outro). E a melodia iconiza essas crenças ao manter uma estrutura que se repete nos dois movimentos polares da música configurados nas estrofes: 1 e 3 (ritmo lento) // 2 e 4 (ritmo acelerando). No entanto, a 5ª estrofe traz uma renovação melódica, inaugura compasso novo (ritmo mais lento que o das estrofes 1 e 3 ), que pode ser interpretado como ícone sonoro da transformação do eu a partir do conhecimento (= compreensão), no mínimo, da existência do outro. É o resultado da dupla peregrinação: do eu em si mesmo (nas vias da catedral) e do eu no outro (pela amplitude do deserto).
Visualizando:
Catedral Deserto
amplidão e silêncio
pseudo-solidão + distanciamento psicológico solidão + distanciamento físico
grandiosidade
magnitude extensão
solidão passageira solidão perpétua
Desta forma, explorando o percurso gerativo de sentidos manifestado no texto, é possível verificar o potencial icônico das linguagens verbal e musical, a partir do que os autores puderam compor um mapa com os recursos expressivos-impressivos característicos de cada código, com vistas a sensibilizar o receptor (tocando-lhe os sentidos) e orientar-lhe a leitura.
A partir desta leitura, torna-se viável a produção de novos textos, uma vez que o receptor já foi inundado por uma série de elementos novos emergentes das reflexões provocadas pela incursão no corpus complexo da música.
Da mesma forma que no trabalho com os códigos não-verbais apresentado nos itens 1 e 2 deste artigo, o que se pretende com esta amostra de análise é estimular aulas de língua e linguagem mais dinâmicas e produtivas.
[1] SANTAELLA, Lucia (1995) A teoria geral dos signos: semiose e autogeração. SP: Ática.
[2] PEIRCE, C. S. (1990) Semiótica, SP: Perspectiva ..... (1975). Semiótica e filosófica, Introd. seleção e trad.: O.S. da Mota e L. Hegenberg. SP Cultrix, EDUSP.
[3] De autoria de Zélia Duncan (a versão) e Christian Oyens (o original)