FUNDAMENTOS SEMIÓTICOS NO DESENVOLVIMENTO DAS DESTREZAS LINGÜISTICAS
Darcilia Simões (UERJ)
A partir da leitura resumida da história Ah, cambaxirra, se eu
pudesse... (Ana Maria Machado, 1984), supomos ter podido dar uma pequena
mostra do quanto é importante a exploração da expressão
humana por inteiro quanto da interação comunicacional. Para
tanto, vimos desenvolvendo alguns estudos que visam a apetrechar os docentes
com dados semiótico-lingüísticos que viabilizem uma
redimensão do espaço da sala de aula, tornando-o agradável
e eficiente a um só tempo.
Trata-se da formulação de teoria semiótica de
ensino-aprendizagem da leitura e produção de textos baseada
na exploração sinestésica da percepção
humana. Trabalho iniciado na década de 80, documentado na tese de
doutoramento O LIVRO-SEM-LEGENDA E A REDAÇÃO (UFRJ, 1994)
e ampliado com experiências desenvolvidas na Faculdade de Formação
de Professores — na disciplina Técnicas de Comunicação
e Expressão — no Instituto de Letras — na disciplina Técnica
de Composição Oral e Escrita — e nas reciclagens de professores
da rede oficial. O trabalho consiste fundamentalmente na aplicação
da teoria da iconicidade (C. S. PEIRCE ?1839-1914), por meio da qual temos
tentado comprovar a necessidade de exploração dos sentidos
humanos da visão, audição, tato, olfação
e gustação — isolados ou sinestesicamente tomados — com vistas
a desenvolver as habilidades lingüísticas de LER, OUVIR, FALAR
E ESCREVER sobre as quais se assenta a comunicação humana.
Os sistemas de signos com que operamos no processo de interação
social (cf. BORDENAVE, 1991), numa primeira análise, tocam-nos
os sentidos — tato, visão, audição, olfação
e gustação. Logo, não há porque centrarmos
as atividades escolares em atividades de natureza precipuamente visuais
e intelectivas, deixando de fora todos os outros contatos sensoriais emergentes
de cada experiência interativa. Observe-se que cada ato de fala está
circundado, no mínimo, por sensações/impressões
de natureza auditiva, visual, tátil e olfativa.
Na interação face-a-face, as pessoas, via de regra, ouvem-se,
olham-se, tocam-se e sentem seu cheiro peculiar (cf. RECTOR &
TRINTA, 1993), logo, não é possível ignorarem-se tais
dados, ao tratar do processo comunicacional na escola. Principalmente se
considerarmos que, ao chegar à escola, o aluno já traz um
potencial comunicativo desenvolvido e eficiente. Cumpre, então,
explorarem-se suas experiências prévias e buscar promover
associações daquelas com as imediatas de sala de aula, com
vistas a objetivar a aplicabilidade dos ensinamentos escolares à
sua prática vital cotidiana (cf. SIMÕES, 1996 ).
Não se trata de excesso de utilitarismo, mas de uma visão
pragmática da aprendizagem humana, posto que via de regra,
a ninguém interessa aprender coisas inaplicáveis ou aparentemente
inúteis.
Nesta perspectiva, vimos trabalhando com propostas de atividades que
viabilizem o cruzamento de códigos (não-verbais e verbal),
assim como a tradução intersemiótica (PLAZA,
1987), ou seja, a tradução de um código para outro
código, por meio do que é possível concretizar
as interrelações emergentes dos contextos sígnicos
que nos rodeiam.
Convém uma reflexão sobre a ação da escola
— desde as primeiras séries do primeiro grau — voltada exclusivamente
para o trabalho com o texto escrito. A escola, tradicionalmente, abraçou
a escrita como ponto de partida e de chegada do processo de aprendizado
da língua, e isto promoveu o desenvolvimento de uma estigmatização
de todos os que apresentam algum tipo de dificuldade na aprendizagem da
leitura e da escrita do texto verbal. Daí nasceu o mito dos letrados
como a elite culta da sociedade. (Como se não houvesse outras modalidades
de cultura!)
Considerando-se a necessidade de desenvolver as quatro destrezas lingüísticas
OUVIR, FALAR, LER e ESCREVER (cf. SIMÕES, 1996 ), nada mais
oportuno que operar sobre o conteúdo sinestésico básico
de tais habilidades:
1. ouvir: ato de perceber pela audição
2. falar: reproduzir vocalmente pela fonação o captado
pela audição
3. ler: perceber pela visão os sinais resultantes da reprodução
tátil-gráfica (entre outras) dos signos reproduzidos pela
fonação após a captação auditiva
4. escrever: reproduzir tátil-graficamente os sinais decorrentes
da percepção auditiva, conseqüente à reprodução
vocal e registro imagético passível de visualização
Tomadas estas premissas técnicas, tendemos nossa pesquisa à
geração e testagem de procedimentos metodológicos
que criassem estratégias orientadoras adaptáveis às
formas específicas de ler cada texto-objeto (cf. FERRARA,
1986).
Retomando a idéia peirceana de que o mundo é indiscutivelmente
um compósito de signos de variada natureza, tem-se que tal configuração
sígnica seria um grande texto, e que cada porção de
imagem (iconicidade textual imagética — cf. NÖTH, 1995: 47)
permitiria uma decifração de base hermenêutica correspondente
à atividade restritamente definida como leitura. Repetindo MARTINS
(1991: 95), a linguagem verbal e a visual travam diálogos intensos
e imemoriais entre si e provocam outros tantos entre seus autores e leitores,
reforçamos nossa idéia de que o dialogismo estende-se para
além do verbal, e por isso texto e leitura são, respectivamente,
produto e processo emergentes de elaboração sígnica,
independentemente da natureza do código com que se esteja operando.
A partir dessa teoria, temos buscado criar e experimentar atividades
técnico-didáticas de leitura aplicadas a textos verbais e
não-verbais, através do que pomos em teste nossas hipóteses
de transferência de esquemas mentais de um processo para outro.
A disciplina denominada Técnicas de Comunicação
e Expressão abriga um conjunto de dinâmicas que visam
a demonstrar a transferibilidade dos esquemas mentais de processamento
de dados em qualquer modalidade de texto ou signos.
Exemplificaremos a disciplina, descrevendo aqui algumas das dinâmicas
produzidas durante os cursos:
1. Das várias possibilidades de leitura: sacos cheios de objetos
desconhecidos fizemos o reconhecimento (= leitura) daqueles a partir da
exploração do tato e da verbalização das impressões
resultantes das apalpadelas nos objetos-textos.
2. Da viagem musical: em sessões musicais, viajamos nas melodias
e produzimos textos (verbais e não-verbais: pelo desenho, recorte-colagem,
mímica, pintura, etc.) provocados, rememorados, criados pelas sensações
experimentadas pela audição musical.
3. Da exploração da imagem visual: apreciamos quadros,
retratos, livros-sem-legenda, panfletos, etc., e verbalizamos nossas impressões
visuais emergentes daqueles estímulos.
4. Da pantomima: brincando com a expressão corporal, utiliza-se
a mímica para transmitir mensagens. Contam-se histórias,
decifram-se nomes de filmes, personagens ilustres, nomes de músicas,
etc. a partir da transmissão da informação pela pantomima.
5. Da história sem pé nem cabeça: os alunos são
convidados a construir (em atividade secreta de pequenos grupos) partes
soltas de uma história (paisagem, protagonista, antagonista, fato
complicador, fato solucionador, época, vestuário, mobiliários,
etc.) Num segundo momento, os grupos se recombinam (a dinâmica é
a de grupamentos sucessivos), e cada integrante das equipes do primeiro
grupamento se reunirá com um integrante de cada um dos outros grupos,
a partir do que será possível conjugar o trabalho produzido
no primeiro grupamento e compor uma história inteira.
6. Da modernização da história: personagens e
situações de histórias conhecidas são modificados
e trazidos para a época contemporânea, com o objetivo de adaptar
os fatos narrados à era atual. Aqui será possível
encontrarmos um Cinderela, em viagem interestelar, casar-se com o Super
Homem.
7. Das histórias interrompidas: trechos pré-selecionados
de livros são lidos, aleatoriamente, e abandonados. Esta operação
se repete durante uns cinco minutos, de modo a incomodar os ouvintes e
gerar neles o desejo de ler, por inteiro, uma das histórias cujo
trecho fora lido e abandonado pelo professor, arbitrariamente. O fundamental
nessa técnica é a seleção de trechos estimulantes
das histórias, sejam eles cômicos, trágicos, humorísticos,
irônicos, misteriosos, etc.
8. Da composição às avessas: partindo de livros-sem-legenda
— LSL (ou sem texto verbal) — sugerir a criação do texto
verbal correspondente. Diz-se de composição às avessas
em virtude da preexistência da ilustração ao texto
verbal. Esta técnica é muito importante na estimulação
da redação, uma vez que a seqüência de imagens
pictoriais do LSL serve como roteiro para a composição
verbal.
9. Do programa de rádio: técnica pela qual os alunos
mais inibidos podem atuar despreocupadamente, já que as atividades
se realizam por detrás de um biombo, que funciona como um estúdio
radiofônico. Ali os alunos realizam leituras orais expressivas de
notícias, de diálogos de novelas, de comentários esportivos,
de comerciais, de programas de entrevistas, etc; produzem sons especiais
(sonoplastia) com auxílio de objetos, para reforçar os cenários
onde se realizam os textos apresentados.
10. Do texto parlamentar: dinâmica pela qual a classe é
dividida em dois grupos de parlamentares onde um deles produz e apresenta
projeto de lei, que é lido e apreciado pelo outro grupo, com vistas
à aprovação do texto em consonância com a melhoria
da qualidade de vida da sociedade. Trata-se, portanto, de um exercício
de redação legislativa, por conseguinte, voltada ao exercício
efetivo da cidadania.
11. Da outra face da história: trabalho por meio do qual a classe
é levada a reescrever um texto mudando o ponto-de-vista da narrativa,
a partir da passagem do relato para outro personagem da história.
Nesse trabalho já foi possível fazer o cordeiro contar a
fábula, o geógrafo dizer o que o Pequeno Príncipe
encontrou naquele país, o caçador dar a sua versão
sobre a caça ao lobo do Chapeuzinho Vermelho e, até mesmo,
Capitu defender uma nova leitura para o texto de Dom Casmurro.
12. Do brechó (ou do Teatro à queima-roupa): brincando
de compor uma loja de coisas usadas, os alunos tornam-se compradores, vendedores
e usuários de objetos fora de moda e trasvestem-se em personagens
exóticos que são levados a produzirem uma história
emergente do contexto criado pelas novas vestimentas. Desta atividade nascem
performances muito interessantes e diálogos criativos que nos levaram
a entender a atividade como uma sessão de teatro experimental.
E muitas outras dinâmicas foram criadas e vivenciadas, por meio
das quais pudemos acompanhar a evolução dos alunos no seu
potencial de ler/produzir textos, a partir da exploração
dos seus mais variados dispositivos produtores de interação
e comunicação. Nessas atividades vimos aperfeiçoando
nossas hipóteses teóricas testadas e comprovadas em nossa
tese de doutoramento.
A hipótese que mais se destacou foi a da transferência
dos esquemas semióticos de leitura para qualquer atividade relativa
à produção/compreensão de textos. As bases
dessa hipótese foram calcadas na própria história
das linguagens humanas, uma vez que, antes da produção de
uma linguagem articulada, o homem já manifestava suas sensações,
impressões e necessidades por meio de sons associados a gestos —
portanto, usando código complexo — o que nos leva a considerar que
os procedimentos escolares restritos à linguagem escrita já
nasceram defasados, pois reduziram a comunicação humana ao
verbal escrito, deixando de fora toda uma gama de sinais não-lingüísticos
de alta relevância para a compreensão das mensagens. Isto
porque, ao lermos (interpretarmos) um texto (lato senso) os significados
organizam-se em nossa mente, onde a imaginação incessantemente
projeta imagens em nossa tela interior, segundo palavras de CALVINO
(1990). Ou seja, mesmo quando não vemos com os olhos físicos,
o fazemos com os “olhos da imaginação”, logo: operamos com
imagens.
Como é possível deduzir, nosso trabalho acaba por desaguar
numa pedagogia da imaginação, fundada nas capacidades de
percepção imanentes ao seres animais (cf. NÖTH,
1995: 147), em geral, e aos seres humanos, em especial. A saber, pretendemos
demonstrar a cada aprendiz as suas potencialidade imaginativas enquanto
possibilidade de aprendizagem geral, a partir do que buscamos encorajá-lo
para o enfrentamento dos atos de interação comunicativa (de
leitura ou de produção textual, posto que entendemos que
a leitura é, em última análise, uma co-produção).
Nossa proposta de trabalho visa, sobretudo, minimizar o problema da
evasão escolar a partir do encorajamento do aluno no sentido de
demonstrar-lhe seu potencial de descoberta e criação enquanto
um ser de linguagem, inteligente e potencialmente gregário e interativo.
Dessacralizando o mito do letramento como base única da formação
intelectual, buscamos demonstrar que todos temos condições
de entrada nos textos; e, apesar das diferenças individuais, podemos
imprimir ritmos de trabalho equilibrado durante o processo de ensino-aprendizagem
da leitura e da redação se buscarmos explorar como ponto-de-partida
as linguagens em que somos mais hábeis.
Isto posto, apresentamos o tripé de nossa proposta metodológica:
1. O letrado e o não-letrado podem entrar no processo de condições
equilibradas
2. Todos temos pré-disposição à leitura/produção
de textos seja qual for o signo eleito.
3. Desde os tempos das cavernas, o homem provou ser capaz de operar
com variados tipos de sinais.
Considerando-se que o âmbito deste trabalho é o desenvolvimento
das habilidades de interação verbal e não-verbais
indispensáveis à prática social, temos que, por meio
das dinâmicas descritas será possível fazer despontar
o cidadão eficiente que habita cada um de nós, posto que
a capacidade de dizer o que se pensa e de compreender o que o outro diz
tornar-se-á uma realidade prática, objetiva e sem mistérios.
Imbuído de um trabalho destinado ao sucesso, o aprendiz tende a
aceitar os desafios das atividades propostas e, com isso, desencadear o
exercício de suas potencialidades comunicacionais,
Num estágio mais avançado, partimos para a prática
de leituras mais sofisticadas, como o levantamento de esquemas intersígnicos
emergentes de contextos tais como:
No âmbito da semiótica translingüística
1. diálogo entre estruturas verbais (= sintagmas) e não-verbais
(desenhos, gráficos, formas, cores, posições, sons,
ritmos, tons, etc.
2. diálogo entre estruturas verbais (= sintagmas) e conteúdos
culturais
? textos não-verbais e vinculações sócio-histórico-culturais
(Ex: Fantasias das Escolas de Samba, vestuário teatral, linguagem
cenográfica, etc.)
No âmbito da semiótica lingüística
? diálogo entre estruturas lingüísticas (sintagmas),
significados e sentidos
1. mesmo texto-objeto & vários leitores
2. mesmo texto-objeto & mesmo leitor
A comprovação da multiplicidade do potencial semântico
dos códigos, dos textos e dos leitores, isto é, a plurissignificação
imanente aos signos e captável pelos leitores também se torna
manifesta a partir da metodologia que utilizamos e aqui apresentamos como
sugestão. A esta altura somos levados a evocar a teoria peirceana
da semiose ilimitada, ou seja, se cada signo cria um interpretante que,
por sua vez, é representâmen de um novo signo, a semiose resulta
numa “série de interpretantes sucessivos”, ad infinitum. . (CP 2.303,
2,92 — Apud NÖTH, 1995b: 74). A conseqüência disto é
uma leitura abundante, plural, ainda que correspondente aos limites da
contextualização do sinal.
Ilustrando:
Uma ? pode significar:
a) numa igreja = fé
b) numa estrada = morte
c) num hospital = vida
Um ? pode representar:
a) numa carta: amor, paixão
b) numa clínica: cardiologia
c) numa igreja: caridade
Nossa proposta metodológica de encaminhamento da leitura na esteira
da iconicidade sustenta-se na convicção peirceana de que
qualquer signo, mesmo o mais convencional , é apreendido em primeira
instância como ícone, isto é, como impressão
qualitativa de sua qualidade concreta (SANTAELLA, 1996: 152), ou
seja, é percebido em sua “materialidade”. Assim, a ilusão
que torna o ícone próximo de-ser-coisa e o distancia de-ser-signo
é o dado facilitador da relação leitor/signo, em que
sustentamos nossas hipóteses teórico-metodológicas,
porquanto a ilusão da materialidade do signo concretiza-o ante o
observador, gerando familiaridade entre observador/observado, logo: funciona
como eliminador de barreiras, dilui nódulos de obscuridade e desbloqueia
a cognição do fenômeno, gerando significados “legíveis”.
Numa tentativa de simplificar nossa aplicação metodológica
dos pressupostos semióticos, temos que o texto (produzido em qualquer
código) é uma imagem perceptível e interpretável,
portanto, passível de tradução para outro código
(distinto do que a gerou). E o leitor (tradutor ou intérprete) executa
a transcodificação (= tradução intersemiótica)
projetando nesta o seu conhecimento prévio, adquirido vivencialmente,
portanto, em princípio, igual e diferente de seus pares. Igual,
se consideradas as características homogêneas de contextualização
sócio-histórica; diferente, tomando-se por base que cada
ser humano é único, é um indivíduo na espécie
humana.
Assim, assentada num conjunto de práticas interdisciplinares
e intertextuais, cremos ser possível a transformação
das aulas de línguas — sobretudo as de língua materna — num
espaço de alta produtividade. E o desenvolvimento das habilidades
lingüísticas básicas — OUVIR, FALAR, LER e ESCREVER
— serão desse modo exploradas de forma natural, espontânea
e eficiente.