TEXTO E DISCURSO

Aileda de Mattos Oliveira (UERJ)

Tomando-se como objeto de análise o texto jornalístico que a seguir se transcreve, procurou-se nele determinar, de maneira objetiva, os limites do texto e o domínio do discurso:

Doido para fazer um favor

O embaixador Ítalo Zappa, que morreu na terça passada aos 71 anos, foi um dos principais nomes da política externa terceiro-mundista do governo Ernesto Geisel (74-79).
No final dos anos 60, ele trabalhou na chefia de gabinete do então ministro das Relações Exteriores, Magalhães Pinto.
No primeiro despacho, Zappa levou ao ministro a documentação de transferência de um diplomata da Secretaria de Estado do Itamaraty para a Embaixada do Brasil na França.
-- Esse funcionário vai para Paris, é?! -- perguntou Magalhães Pinto.
-- Sim. Está tudo certo. É só sr. (sic) assinar -- respondeu Zappa.
-- Para Paris?! -- questionou de novo o ministro.
-- É. Está tudo certo, ministro -- repetiu Zappa.
Após segundos de silêncio, o político mineiro decidiu:
-- Não assino, não, Zappa! Peça para alguém me pedir para eu assinar isso.

Antes de iniciar-se o trabalho de determinar o âmbito espacial em que cada um se situa (texto e discurso), é necessário esclarecer o duplo emprego do termo texto no parágrafo anterior.
A referência a “texto jornalístico” já induz o leitor ou o ouvinte a um tipo específico de objeto lingüístico a ser analisado, com diagramação determinada e número de palavras preestabelecido para, a partir dele, ir em busca do texto, já agora considerado como resultado da manifestação verbal do jornalista-autor, isto é, como o conjunto de atos lingüísticos realizados por ele, os quais, por sua vez, determinam a posição do enunciador diante dos fatos enunciados.
A reprodução do diálogo entre o embaixador Ítalo Zappa e o ministro Magalhães Pinto passa também a fazer parte do texto do jornalista, embora a conversa mantida entre ambos componha, à parte, um novo campo textual.
Isso significa que, além da realização verbal do profissional da Folha de S. Paulo, tem-se a realização verbal do embaixador e a do ministro. Há, portanto, três vozes que, de maneira explícita, se alternam na construção do mesmo objeto lingüístico. As duas últimas destacam-se da fala do jornalista, por observarem as características estruturais do discurso direto.-
As diferentes definições do termo texto, encontradas nas diversas obras sobre o assunto, mostram a dificuldade de um consenso conceitual, em razão de o termo já fazer parte do vocabulário gramatical e literário, antes de a lingüística transformar-se numa ciência autônoma e atingir o grau de importância que hoje ocupa dentro de várias áreas disciplinares.
Em síntese, já que o objetivo deste trabalho é tornar o assunto em pauta o mais possível claro, têm-se na transcrição feita acima:
1) o texto, na sua integralidade, como uma estrutura tipológica de análise (jornalístico), composta de elementos gramaticais, pragmaticamente selecionados, de acordo com as exigências circunstanciais a que está submetido o falante, e sintaticamente relacionados, segundo a sua capacidade de organização frasal;
2) o texto como o resultado da manifestação verbal do jornalista, já agora visto como o continente dos enunciados transmissores de mensagem (ou de mensagens), explícita ou subentendida;
3) e o texto como resultado da manifestação verbal dos interlocutores do diálogo; e, da mesma forma, como em 2), uma via que conduz o leitor ou o ouvinte aos meandros semânticos e etológicos de cada qual.
Se em 1), percebe-se um corpo lingüístico, delimitado por um ponto final, em 2) e em 3) percebe-se o conjunto de enunciados que indiciam os valores éticos denotadores da posição de cada um dos enunciadores diante da política, da sociedade, do poder.
Mesmo assim, em 2) e em 3), é comum estabelecer-se uma sinonímia entre texto e discurso. Isso porque deixa-se de perceber o texto como uma unidade “subjacente ao discurso”  e passa-se a considerá-lo como o campo dominante do sujeito da enunciação, um campo-limite, com princípio, meio e fim, condicionado a determinados padrões concretos de organização: o texto jornalístico, o texto literário, o texto humorístico, o texto científico, etc.
Essa não é uma visão ideal do fato. O texto é uma unidade resultante da capacidade de o indivíduo estabelecer relações estruturais complexas que permitem a leitura ou leituras de vários discursos.
O discurso é, portanto, onde domina o eu: o campo em que deixam as suas marcas o eu ideológico, o eu social, o eu cultural. E cultura, aqui, não se situa dentro da superficialidade conceptual como procuram fazer crer algumas vozes empenhadas numa leviana tentativa de uniformização dos sujeitos.
Diz José Castello no Prefácio à obra de Jurandir Freire Costa  que:
A cultura não é, portanto, como querem crer os ideólogos da indústria cultural, um simples artefato de revestimento que retoca as aparências do universo humano. Não é uma “superestrutura”, como os marxistas fizeram crer por décadas; não é um luxo, uma pausa entre dois momentos de seriedade, como faz crer a indústria da diversão e do lazer. Ao contrário, ela é a própria condição de sobrevivência do homem no planeta.

Além disso, é a partir do eu cultural que se pode avaliar o universo de valores de cada enunciador, reproduzido no discurso que, no momento de sua realização, torna-se o macrossigno de uma dada realidade, uma vez que comporta outras tantas marcas sígnicas que delineam o seu (do enunciador) perfil personalístico.
José Castello relaciona quatro atributos - “todos detestáveis” - característicos da cultura brasileira no momento presente: o cinismo, a delinqüência, a violência e o narcisismo . A relação não está completa. Pode-se acrescentar mais uma qualidade, esta, uma herança de cinco séculos, por isso, já integrante do próprio gene nacional: a acomodação ideológica.
No discurso do jornalista, é perceptível essa acomodação, ao preferir ser um crítico cínico, à maneira de um chargista - e o título “Doido para fazer um favor” bem define essa posição- a ser um crítico analista do comportamento político de um ministro da República, interessado no favorecimento, próximo ou remoto, que a aposição de sua assinatura no documento, pode render-lhe.
É certo que o chargista também é um crítico, porém, a dose de humor que reveste a charge, torna o fato criticado, amenizado aos olhos do leitor menos afeito a interpretações alegóricas.
Por outro lado, nada impede a suposição de que, por considerar a impunidade já uma instituição e o escambo uma norma política, o jornalista limite-se ao relato de mais um fato para não ser redundante nas suas conclusões.
Isso significa que a anedota transforma-se numa anedota, isto é, o que poderia ser inédito, passa a ser um mero e redundante fato jocoso, pitoresco.
Pressupondo-se que isso tenha ocorrido e considerando-se que o ato lingüístico é de natureza ética, não se pode negar que a ausência de indignação, consolida a descrença no que é legal, na igualdade de direitos e, por conseguinte, a aceitação da violência do poder e da arbitrariedade como um ato rotineiro na vida política do país.
Em Prometeu Acorrentado , a personagem Violência é muda, portanto, só é reconhecida através das feridas abertas que as palavras cáusticas do Poder deixam no corpo e na alma de Prometeu. Isso porque a violência é resultante de algo, é uma conseqüência, seja de um ato físico ou de um ato verbal, e não uma entidade independente, causativa.
É necessário salientar que a violência reside naquele que se manifesta pelo discurso e que as palavras tornam-se tão-somente os instrumentos semânticos de sua posição belicosa. Mas são muitos os artifícios de que o homem se utiliza para dissimular a violência nos escaninhos do discurso e amenizar a brutalidade de sua voz.
No texto transcrito, por exemplo, “Paris”, embora seja referencial de um mesmo ponto geográfico (referente), tanto no discurso do embaixador Zappa, quanto no discurso do ministro Magalhães Pinto, adquire valores sociais e políticos diferentes em cada um deles, de acordo com as exigências funcionais ou com o transverso jogo de interesses políticos.
Enquanto para o primeiro é a capital de um país europeu, o lugar de chegada e permanência de um diplomata, transferido burocraticamente de acordo com o seu mérito e hierarquia, dentro do que determina o quadro funcional de acesso, para o segundo, é a capital de um requisitado país europeu, cultuado como centro cultural de primeira linha e, portanto, designatum de lugar selecionado’, ‘de ‘lugar restrito a alguns’, enfim, de ‘lugar que se reserva para prestação de favores” .
Ocorre, então, que através do dizer do ministro tem-se a denúncia de seu fazer, isto é, do indivíduo (a)ético que é, que descreve a si mesmo, sem perceber que assim o faz, através da realização de seus próprios enunciados. Sim, pois se o indivíduo os realiza, realiza-os para um interlocutor, co-participante desse jogo de representação, o qual, como o do caso em questão, terá de aceitá-lo, a fim de não ser surpreendido com retaliações políticas, imediatas ou futuras.
Não cessam, porém, nesse ponto, as divergências conceituais nos discursos dos dois representantes da elite governamental. Cada um segue uma linha diretriz da posição assumida no instante da sua enunciação, mantendo-se, embaixador e ministro, dentro dos limites significativos dos interesses que os movem, respectivamente, a promover e a não promover o diplomata, centro da questão.-
Não cessam, também, nesse tópico, as divergências conceituais entre os dois interlocutores.
É evidente que, dentro da linha de trabalho de uma análise meramente semântica, não se pode negar a equivalência sígnica entre os vocábulos “diplomata” (inserido no discurso do embaixador) e “funcionário” (integrado ao discurso do ministro) se ambos se mantivessem restritos ao contexto em que enfatizassem, de forma genérica, a situação de servidor de Estado.
No entanto, a evidente intenção do ministro não é a de ratificar com o seu deferimento a situação funcional do diplomata, mas a de desprestigiá-lo como postulante ao cargo numa das Embaixadas mais disputadas no continente europeu.
Cabe-lhe, pois diminuir o valor hierárquico e, portanto, social, de seu subordinado dentro do órgão ao qual pertence, a fim de criar uma justificativa para a sua não participação na representação brasileira em tão qualificado centro político e cultural europeu.
Ao designá-lo pelo nome genérico de “funcionário” e não lhe conferindo a qualificação hierárquica de “diplomata” que lhe cabe por direito e conquista e que já lhe tinha sido dada pelo embaixador, deixa-se revelar a manipulação dos fatos pela manipulação da língua.
Assim, no enunciado interrogativo do ministro: “- Esse funcionário vai para Paris, é?” sobressaem-se dois elementos lingüísticos ( “esse” e “é”) que evidenciam a intencionalidade do enunciador no esvaziamento da capacidade profissional do postulante ao cargo.
O pronome demonstrativo “esse” reifica o indivíduo do qual o substantivo é referencial, vulgariza-o, dessemantiza-o no seu valor social.
“É” (=tem certeza?), por sua vez, adquire um matiz irônico, demonstrativo de que a vida profissional de um não depende apenas de capacitação pessoal, mas pode estar sujeita à inteferfência da vontade política de outro.
Nesse caso, “Paris” e “funcionário” são incompatíveis, uma vez que a cidade francesa citada pelo embaixador, deixou de ser a mesma cidade francesa citada pelo ministro. Se o referente é o mesmo, os signos que o representam não o são. A Paris deste último só poderá tornar-se a meca dos que se permitem favores intercambiáveis.
O que ressalta no diálogo entre os dois interlocutores é um fio de surpresa que perpassa pela mente do embaixador e que é entrevisto quando insiste no pedido de assinatura do documento apresentado ao ministro.
Não havendo possibilidade de reflexão ética por parte de um dos interlocutores, deixa de ser consensual o mundo axiológico e nesse caso, qualquer situação é possível, é válida, é lícita.
Justifica-se, portanto, o atributo “delinqüência” com o qual Castello compôs, junto com outros três já citados, o perfil do homem brasileiro, principalmente, o do homem político brasileiro. Essa delinqüência está relacionada à violência da arbitrariedade e ao narcisismo do eu autoritário.
A interferência do discurso do jornalista vem corroborar a análise que aqui se realiza, ao ressaltar com a expressão “político mineiro” as variações semânticas que essa expressão carreia na caracterização do aspecto matreiro, do comportamento do ministro.
O jornalista reconhece que os signos-chave dos discursos de ambos os interlocutores - “Paris” e “funcionário”- adquirem sentidos distintos no discurso de cada um, porque definem as posições divergentes dos que permanecem em campos de poder idênticos, mas com diferentes forças de poder, razão da publicação do fato, já histórico, mas não o último.
Como o fato ético é temporal, uma vez que o comportamento humano se modifica de acordo com o desenvolvimento social, a semântica do discurso tenderá a sofrer as conseqüências não só da visão de mundo progresssista dos enunciadores, mas também a dos leitores ou dos ouvintes, tornando a mensagem (ou mensagens) um novo campo de discussão filosófica.
Mas o que se deseja ressaltar neste trabalho, é que o texto mantém-se como uma unidade de organização lingüística, na qual se pode avaliar a base gramatical que o constituiu: se o nexo entre sujeito e predicado realiza-se por meio de verbos de estado ou de ação; se o esquema frasal utiliza-se de sintagmas nominais ou de sintagamas verbais; se o núcleo substantivo é fortalecido pelo universo adjetivo ou dele se abstém; se o campo interfrástico realiza-se através de elementos conjuntivos ou disjuntivos; de elementos explicativos ou causais; de elementos conclusivos ou conseqüenciais, enfim, as oposições categoriais.
Do mesmo modo, é no texto que se vão destacar as oposições graduais no eixo semântico, como “diplomata” e “funcionário” e muitas outras, de acordo com o objeto de análise.
No discurso, no entanto, é onde se encontram a intencionalidade do dizer e o plano de contéudo da verdade instancial; é onde a palavra adapta-se de maneira flexível à vontade de quem dela se utiliza, tornando-se um signo sempre em busca de uma nova atualização semântica.
A língua, como afirma Greimas , jamais é denotativa; viver sob a ameaça constante da metáfora é um estado normal, uma condição da “condição humana”.
Assim, o ajuste contínuo entre significante e significado decorre do ajuste contínuo entre indivíduo e sociedade; entre indivíduo e vontade; entre indivíduo e poder.
Esse processo de atualização axiológica do comportamento do indivíduo, só pode ser analisado na extensão de seu discurso - o seu dizer - a sua vero marca sígnica.