A
CORRESPONDÊNCIA DE GONÇALVES DIAS
HISTÓRIA PESSOAL E OBRA
Matildes Demetrio dos Santos (UFV)
Terás santa paciência com minhas cartas, hei de escrever _ sempre, porém não julgues que te quero abafar com cartas.
Gonçalves Dias, pelejador no exílio de si mesmo, faz dos
grandes temas do século XIX, a não-adaptação
ao mundo, o amor-fatalidade e a morte assuntos de sua vida e obra. Suas
cartas são o lugar de alguém em estado permanente de angústia,
bloqueado entre dois tempos: o tempo da referência, repleto de dificuldades
e carências, e o tempo interior, povoado por uma personalidade desejosa,
que almeja e sonha realidades impossíveis. Alexandre Teófilo
de Carvalho Leal, o destinatário-amigo estava ausente, mas
o poeta desejava ardentemente que ele estivesse ao seu lado, por
essa razão escrevia-lhe longas e minuciosas cartas, esperando uma
resposta urgente. No afã de transformar a ausência em presença,
o remetente ensaia um apelo dramático, em que confessa sua solidão
desesperada: Preciso das tuas cartas, de ouvir a tua voz. A razão
do sofrimento, explicava algumas linhas depois, é que o homem culto,
sentia-se incapaz de vencer as adversidades e infortúnios impostos
pelo acanhado meio rústico brasileiro. Os desgostos e o sofrimento
foram freqüentes em sua vida. Filho natural e mestiço num país
escravocrata. Pobre, dependia de cargos e funções do Estado
para seu sustento e, muitas vezes, recorria aos amigos para realizar suas
ambições intelectuais. Nesses momentos, voltava-se para o
amigo, num gesto de total abandono: é-me preciso falar com
alguém que me entenda, e que me responda, é-me necessária
a voz do irmão da minha alma _ voz de amor e de esperanças
[...] porque a sua vida é serena e doce e tranqüila _ enquanto
a minha é rude _ espinhosa e cheia de martírios.
No conjunto, a correspondência do poeta maranhense cria uma ficção
de muitos aspectos, em que o eu revela seus desejos mais profundos,
confessa sua amargura em não poder concretizar seus sonhos amorosos
e intelectuais, se queixa e se afunda na angústia e no pessimismo.
O remetente é alguém em permanente estado de espera. Deseja
uma chegada, uma volta, um sinal nebuloso, um milagre que transforme sua
vida dolorosa.
No território das cartas, tudo é escritura: o missivista,
com a meticulosidade de um memorialista, seleciona um espaço do
seu tempo para expor a sua vida e registrar os efeitos de seu drama diário.
A correspondência é, para ele, um prazer, uma necessidade
e uma forma imperiosa de autoconhecimento. Através dela, Gonçalves
Dias encena lingüisticamente o seu imaginário pessoal. O cenário
pode ser Portugal, onde morou e estudou ou a própria terra, Caxias
do Maranhão. O lugar não importa, pois o poeta filma incertezas
marcadas pelo desconforto e estranhamento:
E eu, que sou? __ Alguém que sofre, e não pode
gemer, e que não tem sequer um recanto onde viva __ que nem sequer
pode fugir para outros climas __ entre gente desconhecida, que em o vendo
perguntasse a si mesma: Esse quem é, que não chora e parece
sofrer tanto?
Triste foi a minha vida de Coimbra __ que é triste viver fora
da pátria, subir degraus alheios __ e por esmola sentar-se à
mesa estranha. Essa mesa era de amigos ... embora! O pão era alheio
__ era o pão da piedade __ era a sorte do mendigo. Compaixão!
É um termo de expressão incompreensível __ não
a quero.
Grandes momentos do epistolário de Gonçalves Dias são
marcados por estimativas do próprio eu, em relação
à sua pessoa. Um Narciso assume a narrativa para descrever sua intermediação
conflituosa com um mundo que não tem limites ou profundidade mensuráveis.
Todas as coisas da natureza têm o poder de transformá-lo ou
de influenciá-lo. Seus motivos não têm senso de moderação.
Para ele, tudo é possível pois possui a chave do mundo
do insconsciente e, como um romântico incurável, vive sua
imaginação e exige mudanças contínuas:
Eu sou assim _ todo do primeiro momento _ todo d’impressões
_ por outra _ sou como um espelho _ dentro d’alma. Um sorriso que vejo
em pessoas que eu amo faz-me sorrir _ uma vista de campos engrinaldados
_ alegra-me, satisfaz-me _ um vale à claridade da lua _ me entristece.
O narcisismo com o mundo das impressões, sensações
e sonhos é muito mais importante que as realidades práticas
da vida de cada dia. São muitas as páginas onde, triste e
soturno, plange por um amor impossível e sofre dores imponderáveis
porque nada que tem a seu alcance o satisfaz. Gonçalves Dias amava
Ana Amélia, o amor platônico da juventude e era casado com
Olímpia, moça tímida, frágil, ciumenta e tuberculosa.
Não se sentia feliz no casamento e, para piorar a situação,
morreu-lhe a única filha. Ele próprio vivia melancólico
e se sentia incompreendido. O desejo de fuga se materializa no tema da
morte que, nas cartas, se alterna com a atração fatal que
sentia pela idéia do suicídio:
Viver! Talvez o não saibas, há vidas ignoradas que passam
em guerra em dia de batalha _ há instantes tenebrosos em que é
preciso um grande esforço de virtude para que se não ceda
à vertigem _ à atração do Suicídio _
Estranha esta palavra _ não é verdade?
Seja por sentir-se realmente infeliz, seja por querer impressionar o
amigo com tantas desventuras, o eu apoderava-se da imagem do célebre
Gulliver entre os pigmeus, no país de Lilliput, para exemplificar
sua condição de homem deslocado no mundo. E ao eleger Gulliver
como protótipo, Gonçalves Dias exilava-se na estranheza,
procurando refúgio na literatura. Tratava-se, apesar de todas as
dores e reclamações, de uma escolha consciente, fruto de
uma necessidade interior e fiel ao compromisso de escrever uma obra verdadeiramente
brasileira, ideal nacionalista imbuído no espírito do poeta
romântico:
Às vezes eu digo em mim mesmo: que me aproveita ser poeta? _
E se não desanimo, crê-me, não é por falta de
martírios e pesares. Sem transição _ Ando a estudar
para compor um Poema _ é por agora _ “a minha obra”. Quero
fazer uma coisa exclusivamente americana _ exclusivamente nossa _
eu o farei talvez. Já que todo o mundo hoje se mete a inovar _ também
eu pretendo inovar _ inovarei _ criarei alguma coisa que, espero em Deus,
os nossos não esquecerão.
Esse desejo de criar uma obra original preocupava os intelectuais
contemporâneos de Gonçalves Dias. José de Alencar,
por exemplo, aliava atividade literária e crítica numa luta
sem tréguas em defesa dos ideais nacionalistas. As oito cartas sobre
A confederação dos Tamoios de Gonçalves de Magalhães,
publicadas no Diário do Rio de Janeiro de 1856, com o pseudônimo
de Ig.( tirado das primeiras letras do nome Iguaçu, a heroína
do poema), levantavam todos os pontos negativos encontrados no poema, revelando,
em contrapartida, os elementos literários positivos para a construção
de uma verdadeira literatura brasileira. Castro Alves, com o poema
“O livro e a América” de Espumas flutuante, igualmente proclamava
a idéia de criar um Brasil novo e independente.
Naquela época, o indianismo já caminhava além
das instituições dos árcades e se estruturava na busca
de uma linguagem estética e ideológica que abrangesse a realidade
nacional. A carta que fala do projeto de um “poema americano” é
de 1844. Com muito esforço e dedicação, Gonçalves
Dias perseguia esse objetivo que realizaria com a escrita da epopéia
inacabada, Os timbiras, quando recria, numa visão trágica,
as cenas de origem da conquista do Brasil. No Canto Terceiro, o poeta relembra
a destruição da nação tupi e lamenta o destino
infeliz da América subjugada pela cobiça de seus colonizadores:
América infeliz, já tão ditosa
Antes que o mar e os ventos não trouxessem
A nós o ferro e os cascáveis da Europa?!
Velho tutor e avaro cobiçou-te,
Desvalida pupila, a herança pingue
Cedeste, fraca; e entrelaçaste os anos
Da mocidade em flor _ às cãs e à
vida
Do velho, que já pende e já declina
Do leito conjugal imerecido
À campa, onde talvez cuida encontrar-te.
Ao lado do projeto de individuação nacional perseguido
nas cartas, Gonçalves Dias confessava que tinha muita dificuldade
em encontrar a paz e o recolhimento necessários à pesquisa
literária. Além das preocupações domésticas,
reclamava que vivia fraco, abatido e sem forças. As viagens que
fazia à Europa, a serviço do Imperador, Dom Pedro II, não
o atraiam, apesar de desempenhar o papel de um embaixador das letras, dando
conta da participação das artes, letras e ciências
do Brasil em terras estrangeiras. Outras vezes, assumia tarefas específicas
como a de Chefe da seção de Etnografia com a missão
de explorar as províncias do norte do Império, coletando
dados e informações sobre os indígenas, nos cartórios
e arquivos daquela região entre, 1859 e 1861.
Outras vezes, muito bem humorado, participava que usava de manhas
e artimanhas para afastar os incautos e intrometidos, como no dia que transcreve
o que disse a uma senhora que costumava aborrecê-lo com suas reclamações:
Eu grito e clamo a quem me quer ouvir: Fugi dos poetas! Fugi deles;
são esquisitos! São caprichosos! Têm manias! Têm
coisas que ninguém entende! Meu Deus eu sou o primeiro a desacreditar
a confraria, tanto que eu daria um braço _ uma perna _ um olho_
para que me não chamassem poeta ou dissessem pelo menos: é,
mas não parece.
Evidentemente, o desabafo soava como uma ironia autodepreciativa, inaugurando
o segundo momento das cartas do poeta romântico. Quando as situações
se atropelavam ou quando o homem era flagrado em deslize, surgia em cena
um-outro-homem diferente do Narciso triste: este, era um sujeito brincalhão,
que assume a narrativa das cartas para descrever os atos e atitudes
de um ser leviano, superficial e amante dos prazeres clandestinos. Em 3
de abril de [1847], à acusação de que passava o tempo
no Rio de Janeiro, entre estudos e namoros, ele se defende dizendo que
acumulava apenas o número “áureo” de 6.247 casos românticos.
Na carta, ele atiça a curiosidade de Teófilo ao confessar
que, farto de amores platônicos, uma vez foi apanhado com a boca
na botija, mas conseguiu com todo o cavalheirismo se safar daquela situação
vexatória.
Na verdade, esse sedutor glorioso se orgulhava de suas conquistas e, prazerosamente, gastava páginas inteiras descrevendo cenas de amores mirabolantes protagonizados por ele. Literariamente, a forma epistolar se transforma para melhor reproduzir a inusitada situação em que se via metido o sujeito das cartas. No trecho selecionado, Gonçalves Dias descreve o encontro que teve com uma viúva, sua namorada. A técnica narrativa convida o destinatário a assistir a cena numa perspectiva dramática:
Anteontem -_ 5 acabei mais cedo o meu trabalho: eram 9 horas. Viva a
liberdade. Viúva da minha alma. Grande coisa é uma viúva.
Não tem a gente necessidade de lhe explicar as coisas mais comezinhas
da vida!
Cheguei, encontrei-a sozinha _ à janela _ Adeus _ Adeus _ Estás
só? Um aperto de mão cerrado, um beijo interminável.
_ Em que pensavas?
_ Em que?! Em quem, não?
Alguns momentos depois, sem que algum motivo houvesse, estava uma cabeça
debruçada sobre o meu ombro, e eu contemplava o arfar de uns seios
entumecidos:
_ Que tens/
_ Nada.
_ Dize-o!
_ Nada.
O diálogo dos amantes ganha um cenário cuidadosamente
descrito e caminha para um climax que o remetente faz questão
de registrar: conversam sobre o amor que sentem um pelo outro, trocam juras
apaixonadas, beijam-se. Frases breves e curtas intercalam-se com pausas
prolongadas, repetindo a técnica do folhetim, com seus inesperados
acontecimentos. Essa escuta fugidia, esse falar à-toa, cria uma
expectativa depois de certo tempo. O homem apaixonado revela que
começou a ficar excitado e mais exigente, porque o objeto
amado respondia laconicamente ou silenciava. De repente, demonstrando maior
positividade, o amante se permite maior liberdade mas a mulher resiste:
Vai-te embora, é tarde!
A decisão inesperada desarma o namorado que, de um instante
para outro, se percebe um intruso e obrigado a abandonar a cena. Rapidamente,
imagina uma saída que dê fim ao encontro. “Artista”, o afoito
Dom Juan se apruma e se autovaloriza ao mascarar o tempo da conquista:
Não te digo nada, meu Teófilo! Caí dessas alturas,
como dizem que outrora caíra o Deus Ferreiro do banquete dos deuses.
Caí do sétimo céu com aquela água chilra que
lançaram na fervura.
Mas tomei uma desforra como nunca espero tomar outra. Seriam dez horas
quando isto se passou: saí à meia-noite.
A dama se surpreende, como descreve o encenador:
_ Que horas serão? Perguntou ela.
_ Meia-noite, respondi eu com impassibilidade holandesa.
_ Já!
E eis aqui a minha desforra.
Naturalmente, o destinatário que estivera fora da cena, na condição
de espectador, é levado a participar, a sorrir da saída inventada
pelo travesso conquistador. Pelo menos no convívio com as mulheres,
o escritor sabia ser alegre e peralta. No entanto, a lembrança de
Ana Amélia perseguia-o com o rigor e o martírio de um pesadelo.
Com freqüência, sua correspondência recorda o passado
e ele não conseguia abafar a dor ao relembrar o dia em que recebeu
a carta em que seu pedido fora recusado, por não ter posição
e não ser considerado um partido à altura da família
de sua amada. Desse modo, externava seu sofrimento, esquecido do amigo
confidente, entregue completamente ao sofrimento que o consumia:
Felizmente não soube nem saberá Ana Amélia com
quanto extremo era amada: os acentos da paixão que ela me inspirou,
mas que não ouviu nunca, ficaram em minha alma e eu não terei
de os repetir a mulher alguma.
É ou não fatalidade! Com tantas famílias em que
eu poderia escolher companheira, fui logo esbarrar com a tua, para que
estou de mãos atadas, não me sendo permitido nem mesmo queixar-me.
Por essa altura, os desentendimentos com Olímpia agravavam-lhe
a saúde e agiam como um chicote na alma do amargurado poeta, trazendo
à tona o Gulliver deslocado, que buscava refúgio na
literatura, sem abandonar nunca a idéia da morte e a sedução
pelo suicídio.
Por conseguinte, as cartas de Gonçalves Dias ao amigo Teófilo
são o espelho dessa alma patética, que muda de estado subitamente,
ora favorável ora arrasado, de uma tristeza digna e comovente.
Vivia e pensava como um romântico em conflito com o mundo, sonhando
com situações ideais, cultivando o Amor absoluto, capaz de
tornar banal todos os outros amores.
BIBLIOGRAFIA
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