A
INTERTEXTUALIDADE
NO TRATADO MEDIEVO CASTELO PERIGOSO
João Antonio de Santana Neto (UCSal / UNEB)
0 Introdução
O presente trabalho tem por objetivo analisar a intertextualidade no
Prólogo do tratado ascético-místico Castelo Perigoso.
Utiliza-se, como referêncial teórico, a teoria polifônica
de Ducrot (1987); as análises dos discursos religioso e pegadógico,
elaboradas por Orlandi (1996), e a teoria semiótica greimasiana.
Uma das características dos discursos religioso e pedagógico
é a intertextualidade, a qual está ligada diretamente às
condições de produção. Considerando a intertextualidade
como uma remissão marcada ou não-marcada a outros textos,
pode-se definir o discurso pedagógico-religioso como um discurso
sobre outros discursos, revelando uma ligação menor com o
seu contexto imediato.
Segundo Blikstein (in: Barros e Fiorin, 1994: 45), nenhum discurso
é totalmente autônomo, pois muitas são as vozes que
falam, “geradoras de muitos textos que se intercruzam no tempo e no espaço,
a tal ponto que se faz necessária uma escavação
‘filológico-semiótica’ para recuperar a significação
profunda dessa polifonia”. Esta busca é que revela como o sentido
do discurso nem sempre corresponde à significação
profunda do intertexto em que se teceu esse discurso.
Na Idade Média, a Igreja – responsável pela religião
e pelo ensino – atribui a posse da metalinguagem ao monje e/ou ao padre,
autorizando-o. Este, por seu turno, apropria-se da religião e da
ciência, confundindo o seu discurso com o delas, não se manifestando
como uma voz mediadora. Através da performatividade do discurso
religioso e científico, apaga-se o modo pelo qual se faz essa apropriação
do conhecimento, pois, na instituição, cabe ao monje e/ou
ao padre o domínio do saber, uma vez que é ele a autoridade
convenientemente titulada e, como apropria-se do conhecimento religioso
e científico, dizer e saber se equivalem.
A Igreja medieva detinha o poder de representante de Deus na Terra
ao mesmo tempo que era também a representante da ciência,
através da sua função pedagógica. Logo, a Igreja
era a responsável direta pelas reproduções religiosa
e cultural. Como conseqüência dessas atividades, a Igreja em
muito contribuia para a reprodução da estrutura das relações
de classe. A sua função de transmissora da informação
acumulada “dissocia sua função de reprodução
cultural de sua função de reprodução social,
aparecendo como colaboradora que harmoniza a transmissão de um patrimônio
cultural que aparece como bem comum” (Orlandi, 1996: 22). Convém
lembrar que há uma correspondência entre a distribuição
do capital cultural e do capital econômico e do poder entre as diferentes
classes:
A posse dos bens culturais, e que uma formação social
seleciona como dignos de serem possuídos, supõe a posse prévia
de um código que permite decifrá-lo. E assim instala-se uma
circularidade: só os possui o que já tem condições
de possuí-lo (Orlandi, 1996: 22).
A Igreja medieval atuava duplamente através de regulamentos, do sentimento de dever que presidia os discursos religioso e pedagógico e esses veiculavam. Definia-se como ordem legítima porque se orientava por máximas e essas máximas apareciam como válidas para a ação, ou seja, como modelos de conduta, obrigatórios. Aparecia, então, como algo que devia ser. A convenção pela qual atuava aparece como modelo, como obrigatória, e tinha o prestígio da legitimidade.
1 Levantamento e análise dos dados
O tratado Castelo Perigoso apresenta um fazer persuasivo do Sujeito
da enunciação (Frère Robert – EU) a partir do jogo
de imagens que esse constrói de si próprio, representante
da Igreja e meio pelo qual Deus fala, e do alocutário (a princípio
Soeur Rose e, indiretamente, suas companheiras, e, posteriormente, o mundo
cristão – TU), crentes e seguidores da doutrina cristã.
Tratando-se de um texto de cunho pedagógico-religioso, o fazer
pragmático apresenta-se mesclado pelo fazer-fazer, uma vez que pretende
que certos comportamentos sejam assumidos pelo(s) alocutário(s),
e pelo fazer-crer, em que busca o reconhecimento do fazer do enunciador.
O AQUI da enunciação é o lugar social de onde
o EU fala, tratando-se de um monje e padre, portanto ungido pelo óleo
sagrado, Frère Robert é o instrumento pelo qual “a voz de
Deus se fala”. Tal fato visa a corroborar a dominação do
Aparelho Ideológico, a Igreja, representante de Deus na Terra. A
subsunção relaciona-se com o simbólico, com o domínio
da disciplina e da Igreja, tão ao gosto da Idade Média. Frère
Robert “não pode” modificá-la, visto que há regras
restritas em que a apropriação é permitida, mas como
membro da Igreja compete a ele, entre outros eleitos para tal serviço,
a performatividade do discurso religioso, pois é ela que possui
a palavra da revelação divina. Portanto, acha-se no direito
de intervir nos pré-construídos, deslocando os significados.
Como membro da Igreja, Frère Robert não possui autonomia,
ele é o representante em relação à voz que
fala nele. O tratado Castelo Perigoso apresenta, nessa perspectiva, a assimetria
entre os planos espiritual e temporal, propriedade do discurso religioso,
quando um dizer, obscuro, sempre já dito, encontra um redizer, isto
é, uma “fómula”, uma “receita” para ser alcançado
o objetivo (salvação).
O AGORA (momento da enunciação) é definido pelo
Locutor, abrindo o espaço discursivo em direção ao
já dito – as citações – para reconfigurá-lo
e provocar aproximações ou afastamentos entre o conjunto
de discursos e ações já produzidos.
As relações de forças entre EU/TU no processo
de interação é marcada pela posição
adotada pelo EU (Frère Robert), o qual, legitimado pela Igreja,
atribui-se o papel de poder dizer e o direito de intervir no conjunto de
discursos (universo discursivo) já produzidos. Ao TU (leitor virtual)
é atribuído uma competência lingüística
e a crença nos dogmas da Igreja que o habilite ao reconhecimento
da “verdades ditas” e assim possa compartilhar o discurso.
Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996: 4) esclarecem que a teoria da argumentação
tem por objeto o estudo das técnicas discursivas que permitem
“provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses
que se lhes apresentam ao assentimento”, girando em torno da concepção
social da linguagem como instrumento de comunicação e de
ação sobre o outro.
Deve-se distinguir a demonstração, ligada à experiência
e à dedução lógica e usuária das provas
analíticas, da argumentação, que emprega provas dialéticas
e “diz respeito ao verossímil, ao plausível, ao provável,
escapando do cálculo lógico” (Barros, 1988: 106).
A versão portuguesa de Le Chastel Périlleux pertence
ao grupo das adaptações, isto é, à vertente
genérica em que o alocutário passa a ser o mundo cristão
e não mais Soeur Rose. A respeito da mudança de auditório
Barros (1988: 107) esclarece que acarreta “alteração em certos
elementos da argumentação, pois os mecanismos de argumentação
dependem, em primeiro lugar, da relação entre o argumentador
e seu ‘público’”. Pois “toda argumentação visa à
adesão dos espíritos e, por isso mesmo, pressupõe
a existência de um contato intelectual” (Perelman e Olbrechts-Tyteca,
1996:16).
As condições prévias da argumentação
e que caracterizam o “contato dos espíritos” são arroladas
por Grice (1982: 87) no seu princípio de cooperação:
a língua comum entre os interlocutores, o desejo do locutor de entrar
em comunicação e, em resposta, a atenção e
interesse do alocutário. Portanto, os dois tipos de endereçamento
do tratado, a princípio particular a Soeur Rose (visto tratar-se
inicialmente de uma longa epístola) e, por extensão, às
suas companheiras, e posteriormente dilatado para a comunidade cristã,
pressupõem o que Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996: 34-45) distinguem
como auditório particular e auditório universal. Conseqüentemente
são utilizados mecanismos diferentes de argumentação,
de que resultam, também, efeitos de sentido diversificado.
O auditório particular é formado, segundo os autores
citados, apenas pelo interlocutor ao qual o locutor se dirige (Soeur Rose);
o auditório universal é constituído pela humanidade
cristã.
O estudo do endereçamento do tratado Castelo Perigoso é
por demais instigante, pois o tratado era inicialmente uma longa epístola
de Frère Robert a Soeur Rose, sua prima. Após ter sido compilado,
foi difundido; têm-se hoje doze manuscritos apógrafos pertencentes
ao grupo de endereçamento particular; levou-se a cabo em língua
francesa uma adaptação, à qual pertencem quatro manuscritos
também apógrafos e que constituem o segundo grupo de endereçamento
genérico. De um apógrafo desconhecido, pertencente a esse
segundo grupo, traduziu-se para a língua portuguesa uma adaptação,
que apresenta diferenças em relação ao grupo de endereçamento
genérico.
O corpus do presente trabalho é constituído pelo Prólogo
da tradução portuguesa, considerado uma seqüência
temática, o qual apresenta o objetivo do tratado. Tomou-se como
base para esta análise a edição crítica elaborada
por Santana Neto (1997) em sua Tese de Doutorado.
Como o objetivo deste trabalho é estudar a intertextualidade,
dividiu-se esta seqüência em recortes enunciativos. Conforme
foi explicitado anteriormente, seguiu-se a teoria polifônica de Ducrot
(1987). Observou-se, então, a possibilidade de dividir esta seqüência
em quatro recortes enunciativos. Considerando as indicações
das fontes utilizadas por Frère Robert e apontadas por Santana Neto
(1997), subdividiu-se os recortes 2 e 4 , conforme quadro abaixo:
Formações
Discursivas Recor tes Vozes
FD1 R1 Enunciador 1 = São Lucas
FD2 R2
R2.1
R2.2 L (ou LI)
L (ou LI) na perspectiva de Santo Anselmo e São Bernardo
L (ou LI) na perspectiva de São Lucas
FD3 R3 Enunciador 2 = Arcarjo Gabriel na perspectiva de São
Lucas
FD4 R4
R4.1 ? (ou LP)
? (ou LP) na perspectiva de Salomão
Tem-se, então, a seguinte aplicação:
R1 ( INTRAUIT JHESUS IN Q<U>ODAM CASTELUM )
R2 (- Luce, XI capitulo. Esta pallavra he <e>scripta no Avangelho
de Sam Lucas e posta por figura da Virgem Maria, Madre do Filho de Deus,
porque este foi h??u castello muito bem gua<r>nido)
R2.1 (de cava de humildade e de muro de virgiindade e de privilégios)
R2 (de todas virtudes e d’avondança de todas graças.
Este glorioso castello achou o rrei da glória assi prazívell
e deleitoso que <h>ouve gram desejo de o pobrar e morar em elle, e enviou
deant<e> seu messegeiro, em maneira de rrei e gram senhor, que lhe fosse
filhar a pousada.)
R2.2 (Est<e> foi o Arcanjo Guabriel que saudou a senhora do castello
devotament<e>, dizendo: )
R3 (“Ave Maria”)
R2.2 (, etc. E a saje e devota virgem, como era de siso comprida, com
gram prazer rrecebeo em seu honrrado castello, scilicet, no templlo do
sseu glorioso corpo, o rrei e senhor e emperador do ceeo e da t<e>rra.
E isto he o que dizem as palavras suso-ditas.)
R4 (E porque he cousa mui proveitosa seguir o enxempro desta honrrada
senhora, eu, com a ajuda do senhor Deus, quero enssinar a todos e a todas
fundar de seus coraçõoes h??u castello tam fort<e> contra
seus imiigos e tam fremoso e tam bem guarnido de dentro que o doce rrei
Jhesu Christo, verdadeiro esposo das santas almas, se contente e <h>aja
prazer de morar em ell<e>. Ca dise per Salamom que)
R4.1 ( seus viços e prazeres som d’estar e morar com os ffilhos
dos hom??es.)
O tratado Castelo Perigoso inicia-se por uma citação (R1
= FD1) atribuída pelo locutor impessoal (L ou LI) a Luce,
XI capitulo: Intravit Jhesus in quoddam castellum. Trata-se, na verdade,
do capítulo X, versículos 38-9:
...factum est autem dum irent et ipse intravit [Jhesus] in quodam castellum
et mulier quaedam Martha nomine, excepit illum in domum suam, et huic erat
soror nomine Maria ... (Lucam. In: Biblia Sacra, 1983).
Essa advertência já consta nas anotações
ao pé de página do “[Prólogo]” da edição
de Magne (1942: 189).
Trata-se de Betânia, nas cercanias de Jerusalém, onde
moravam Marta e Madalena, irmãs de Lázaro, a quem o Senhor
ressuscitou, motivo por que a localidade tem hoje o nome de El-Azariêh,
‘aldeia de Lázaro’.
Percebe-se que a informação apontada dos versículos
acima não corresponde à alegoria que da nome ao tratado.
Tal fato decorre da mudança contextual, ou seja, é ocasionado
pela transposição da citação, frase completamente
descontextualizada, para um outro contexto temático, o qual gera
uma nova significação para a frase retirada do texto de São
Lucas. Tem-se, no texto original, a informação que Jesus,
já adulto, entrou na casa de Marta, a qual tinha uma irmã
de nome Maria e não Madalena como aponta Magne. No Castelo Perigoso
a informação refere-se ao ato da “concepção
de Jesus”, um dos dogmas do catolismo, e à anunciação
desse futuro nascimento. O Sujeito da enunciação utiliza-se
do enunciador 1 (R1) para dar “veracidade” ao seu discurso, visto que utiliza-se
de uma citação do Evangelho de São Lucas, portanto,
para o alocutário, da lectio divina.
A partir desse novo contexto significativo, o locutor impessoal (L
ou LI) constrói a alegoria temática do seu tratado ascético-místico
(R2). Para tanto (R2.1), vale-se da perspectiva que tanto Santo Anselmo
quanto São Bernardo concebem da Virgem Maria, como também
da imagem que São Lucas constrói da anunciação
à Maria (R2.2), utilizando-se, inclusive, da fala atribuída
por São Lucas ao Anjo Gabriel (R3 = FD3).
Intravit Jhesus ... quid ad gloriosam Virginem ... Lectio ista pertineat
... Castellum enim dicitur quaelibet turris et murus in circuitu ejus ...
Itaque haec duo, murus videlicet virginitatis et turris humilitatis ab
alterutro muniuntur... (Santo Anselmo, Homilia IX, PL 158, 644-5).
tu es castellum in quod Jesus intravit, habens turrim humilitatis ...
et murum virginitatis... (São Bernardo, In Antiphonam Salve Regina,
Serm. IV, PL 184, 1074 AB).
In mense autem sexto, missus est angelus Gabriel a Deo in civitatem
Galilaeae, cui nomen Nazareth, ad virginem desponsatam viro, cui nomen
erat Ioseph, de domo David, et nomen virginis Maria. Et ingressus angelus
ad eam dixit: Ave gratia plena: Dominus tecum: benedicta tu in mulieribus
... (Lucas, c. 1, v. 26-8).
O locutor impessoal retoma a palavra (R2.2) na perspectiva de
São Lucas, apresentando a resposta de Maria ao Anjo Gabriel.
Et ait angelus ei: Ne timeas Maria, invenisti enim gratiam apud Deum:
ecce concipies in utero, et paries filium, et vocabis nomen eius IESUM:
hic erit magnus, et Filius Altissimi vocabitur, et dabit illi Dominus Deus
sedem David patris eius: et regnabit in domo Iacob in aeternum, et regni
eius non erit finis. Dixit autem Maria ad angelum: Quomodo fiet istud,
quoniam virum non cognosco? Et respondens angelus dixit ei: Spiritus sanctus
superveniet in te, et virtus Altissimi obumbrabit tibi. Ideoque et quod
nascetur ex te sanctum, vocabitur Filius Dei. Et ecce Elisabeth cognata
tua, et ipsa concepit filium in senectute sua: et hic mensis sextus est
illi, quae vocatur sterilis: quia non erit impossibile apud Deum omne verbum.
Dixit autem Maria: Ecce ancilla Domini, fiat mihi secundum verbum tuum.
Et discessit ab illa angelus. (Lucas, c. 1, v. 30-8).
A Formação Discursiva 2 (FD2) corresponde à fala
do locutor impessoal, o qual não se identifica, não se representa,
mas coloca o dizer do OUTRO (narrador – o que conta o fato) sob a perspectiva
da Bíblia (São Lucas) e dos Padres da Igreja (Santo Anselmo
e São Bernardo) a serviço do que pretende significar.
Do ponto de vista formal, o locutor impessoal inicia o seu dizer com
a expressão verbal he <e>scripta ... e posta, a qual indica que,
no momento da narração, este era o fato. A expressão
verbal he o que dizem estabelece uma concomitância semântica
entre o evento narrado e o momento da narração.
O emprego do verbo ser apresenta a qualidade semântica de essência,
a qual, através do presente do indicativo, dilata a validade do
relato, que se deseja inquestionável. Para justificar a posição
adotada, o locutor impessoal vale-se da narrativa, organizando a FD2 em
torno do pretérito perfeito: foi, achou, houve, enviou, foi, saudou,
recebeo. Apresentando, então, os seus argumentos que determinam
a escolha divina: r = Jesus entrou no ventre da Virgem Maria, porque:
a) foi h??u castello muito bem guarnido de cava de humildade e de muro
de virgiindade e de privilégios de todas as virtudes e d’avondança
de todas graças; b) achou o rei da glória assi prazívell
e deleitoso que houve gram desejo de o pobrar e morar em elle
O locutor impessoal continua o relato apresentando a forma como, segundo
São Lucas, Deus anuncia à Virgem Maria a “posse” (filhar)
do seu ventre para gerar-Lhe o Filho (e enviou deant<e> seu messegeiro,
em maneira de rrei e gram senhor, que lhe fosse filhar a pousada. Est<e>
foi o Arcanjo Guabriel que saudou a senhora do castello devotament<e>,
dizendo: “Ave Maria”). A citação de São Lucas, que
contém a fala atribuída por este ao anjo Gabriel, visa a
confirmar a veracidade do fato apresentado, através do emprego do
Ave – segunda pessoa do singular, modo imperativo do verbo avere (Deus
a salve) – observa-se que não foi dada a Maria nenhuma chance de
opor-se ao designo divino, razão pela qual a resposta foi: Ecce
ancilla Domini, fiat mihi secundum verbum tuum (Lucas, c. 1, v. 38). Verifica-se,
mais uma vez, a característica do autoritarismo, tanto no que tange
ao discurso religioso quanto ao pedagógico.
O emprego do pretérito imperfeito era serve como ligação
entre o fato narrado e o fazer persuasivo do locutor pessoal, o qual o
explicita na FD4. Tal ligação é possível dado
ao aspecto de continuidade que o pretérito imperfeito possui (ação
iniciada no passado e não concluída).
Apesar de posicionar-se como impessoal, o Sujeito da enunciação
incursiona por toda a FD2. Esta incursão pode ser verificada pelo
emprego de palavras afetivas, as quais demonstram um julgamento à
luz da ideologia doutrinária da Igreja:
1. Substantivos – Virgem, Madre, humildade, virgindade, privilégios,
virtudes, avondança de todas as graças, gram prazer, templlo,
etc.
2. Adjetivos – glorioso castello, prazívell, deleitoso, saje
e devota virgem, honrrado castelo, glorioso corpo, etc.
O locutor pessoal (? ou LP) assume a palavra – FD4 – e
apresenta o objetivo de seu tratado (R4). Assujeitado que é à
Igreja, propõe-se a ensinar com devem os fiéis agir para
seguirem o exemplo de Maria, ou seja, submeter-se à vontade divina
para alcançar o plano espiritual e, conseqüentemente, a salvação.
O Prólogo é, então, finalizado pelo locutor pessoal
na perspectiva de Salomão (R4.1). A expressão verbal som
d’estar e morar empresta um aspecto durativo à afirmativa que se
deseja verdadeira.
Ludens in orbe terrarum; Et deliciae meae esse cum filiis hominum...
(Salomão, Liber proverbiorum, c. 8, v. 31).
A sua proposta abarca ao mesmo tempo tanto o discurso religioso
quanto o discurso pedagógico.
O fazer pedagógico do Sujeito da enunciação possui
os seguintes argumentos: r = eu, com a ajuda do senhor Deus, quero enssinar
a todos e a todas fundar de seus coraçõoes h??u castello
tam fort<e> contra seus imiigos e tam fremoso e tam bem guarnido de
dentro que o doce rrei Jhesu Christo, verdadeiro esposo das santas almas,
se contente e <h>aja prazer de morar em ell<e>: a) porque he cousa
mui proveitosa seguir o enxempro desta honrrada senhora [Virgem Maria];
b) Ca [Jesus Cristo] dise per Salamom que seus viços e prazeres
som d’estar e morar com os ffilhos dos hom??es.
Observa-se que o Sujeito da enunciação assume-se como
pessoa no mundo (?), utilizando, para tanto, do pronome EU. Os verbos passam
para o presente do indicativo – he, quero. O que cria um efeito de verdade
dilatada no tempo, pois reflete o momento da enunciação,
a qual será atualizada a cada leitura.
Segundo Greimas e Fontanille (1993), o verbo querer apresenta uma vontade,
um desejo do Sujeito da enunciação em realizar /fazer/ uma
ação pedagógica. As modalidades /querer-fazer/ e /dever-fazer/
são classificadas como virtualizantes (instauram o Sujeito da enunciação),
a partir das quais torna-se necessário /saber-fazer/ e/ou /poder-fazer/,
modalidades atualizantes (que o qualificam para a ação),
que conduzem à modalidade de realização /fazer-ser/.
O Sujeito da enunciação como membro da Igreja, monje e possivelmente
padre, possui o dever de conduzir os fiéis à salvação,
como meio de cumprir sua missão ele quer ensinar a todos e a todas
a fundar (fazer) um castelo em seus corações onde Jesus Cristo
“haja prazer” em morar. Considerando-se que a Igreja (Aparelho Ideológico),
ao ungi-lo, tomou-o como seu representante e, conseqüentemente, como
representante divino, ele possui o poder, pois ele é o instrumento
pelo qual Deus fala. Sendo um instrumento da voz divina, o seu saber emana
diretamente de Deus. Por estas razões, o fazer de Frère Robert,
o tratado Castelo Perigoso, tem a legitimidade dos discursos religioso
e pedagógico. Ao segui-lo, o discípulo será salvo,
pois o professor diz que e, logo, sabe que, o que autoriza
o aluno, a partir de seu contato com a lição do mestre, a
dizer que sabe, isto é, que ele aprendeu.
O emprego de adjetivos afetivos, que enunciam tanto uma propriedade
do objeto ao que determinam quanto uma reação emocional do
Sujeito da enunciação frente a esse objeto, com advérbios
intensificadores – mui proveitosa, (castello) tam fort<e> e tam
fremoso e tam bem guarnido (de dentro) – ou sem intensificadores - doce
(rei Jhesu Christo), verdadeiro (esposo das) santas (almas) – demonstram
o fazer persuasivo da sua proposição: ensinar a todos e a
todas a fundar de seus corações um castelo onde Jesus Cristo
se contente e haja prazer em morar.
Dentre os argumentos de prestígio, o mais nitidamente caracterizado
é o argumento de autoridade, que utiliza atos ou juízos de
uma pessoa ou de um grupo de pessoas como meio de prova a favor de uma
tese.
Para o estudo da argumentação, o argumento de autoridade
é extremamente importante, não se podendo, mesmo quando se
lhe contesta o valor, descartá-lo como irrelevante. Às vezes
parece-se atacar o argumento de autoridade, mas é a autoridade invocada
que é questionada.
No Castelo Perigoso, as autoridades são as mais variadas: a
Bíblia – 226, os Padres da Igreja – 147, textos medievais religiosos
– 48, provérbios – 11, filósofos da Antiguidade – 3, textos
medievais não religiosos –1. Geralmente o argumento de autoridade
completa a argumentação em vez de constituir a única
prova. A seleção das autoridades é elaborada conforme
coincida ou não com a opinião do locutor.
Outra característica textual fundamental para a edificação
do alocutário impõe-se, além dos exempla: a presença
da lectio divina. Trata-se das referências à Bíblia
e aos Padres da Igreja, que funcionam como o argumento de autoridade que
objetiva fundamentar “as verdades inquestionáveis”. No Tratado Castelo
Perigoso, as autoridades invocadas são específicas: suas
opiniões corroboram com as do locutor (Frère Robert), a autoridade
delas é reconhecida pelo(s) alocutário(s) ao(s) qual(is)
o tratado se destina (Soeur Rose e suas companheiras, e o povo cristão).
Durante a Idade Média, vários são os exemplos
em que existe uma relação vital entre mártires e santos
da Igreja com imagens relacionadas ao livro. Assim sendo, as referências
à Bíblia e aos Padres da Igreja funcionam como a lectio divina,
revelando o argumento de autoridade.
Nessa concepção do argumento de autoridade há
um ambíguo achatamento de locutor, significado, significante e referente
na Sagrada Escritura. Observa-se que o próprio Eco considera
Cristo como a Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo, pois,
enquanto Logos, Cristo é o emissor das Escrituras, que porém
são discurso e, por isso, Logos e falam do Logos-Cristo como seu
referente último; mas falam Dele de modo indireto, mediante significados
indiretos, discursos (?????), que é preciso interpretar. Mas o primeiro
intérprete da Lei, o comentador por excelência, é ainda
Cristo como Logos (todo comentário é imitatio Christi e na
luz do Logos todos nos tornamos ???????) (Eco, 1991: 229-30).
O argumento de autoridade, segundo Ducrot (1987: 140) e Koch (1984:
148), utiliza os atos ou julgamentos de uma pessoa ou de um grupo de pessoas
como meio de prova a favor de uma tese. Trata-se de um procedimento retórico
que existe quando, a propósito de uma proposição p,
ocorre ao mesmo tempo que: a) indica-se que p já foi, é ou
poderia ser objeto de uma asserção; b) apresenta-se esse
fato como valorizando a proposição p, isto é, como
reforçando-a, acrescentando-lhe um peso particular.
A organização argumentativa de um discurso depende das
imagens mútuas que se pressupõem fazer locutor e alocutário;
depende das imagens que se pressupõem fazer locutor e alocutário
sobre o referente; depende, em último lugar, dos atos de linguagem
que o locutor realiza em seu discurso. É o conjunto que permite
a cada um justificar-se na sua função pragmática,
isto é, na relação com um fim determinado que o locutor
visa a obter no alocutário. Essas imagens podem ser equacionadas
segundo uma perspectiva interpessoal na qual o locutor entende que o direito
à palavra ou a apropriação da palavra lhe garante
uma posição de domínio sobre o próprio alocutário
e segundo uma perspectiva dos pressupostos que tem sobre o alocutário,
isto é, daquilo que considere que o alocutário deve ter como
válido e indiscutível.
Nessa perspectiva, o argumento de autoridade, a lectio divina, conduz
o receptor à aceitação da sua proposição,
pois, segundo Lausberg (1982: 105), a persuasio também pode manifestar-se
na criação por um consentimento afetivo do árbitro
da situação (alocutário), considerando-se que o consentimento
afetivo pode preencher possíveis lacunas da convicção
intelectual.
No tratado Castelo Perigoso, quer na sua vertente pessoal (locutor
- Frère Robert / alocutários - Soeur Rose e companheiras),
quer na sua vertente genérica (locutor - Frère Robert [Igreja]
/ alocutários - cristandade), o argumento de autoridade presta-se
como fundamental à persuasão, visto que representa, conforme
mencionou-se anteriormente, a lectio divina, a verdade inquestionável.
Conclusão
Uma das formas pela qual a instância ideológica funciona
é a da interpelação ou assujeitamento do sujeito como
sujeito ideológico, considerada na reprodução das
relações de produção. Tal assujeitamento tem
por objetivo conduzir cada indivíduo, sem aperceber-se de tal fato,
a ocupar seu lugar num grupo ou classe de uma determinada formação
social. As classes sociais, então, mantêm garantidas as reproduções
contínuas das relações estabelecidas pelos Aparelhos
Ideológicos do Estado.
O discurso, então, pode ser considerado como pertencente ao
gênero ideológico, visto que ele constitui um dos aspectos
materiais de ideologia. Ou seja, uma ou várias formações
discursivas interligadas são um dos componentes da formação
ideológica. Logo, os discursos são dirigidos e organizados
a partir das formações ideológicas.
Face ao exposto, observa-se que a seqüência analisada do
tratado Castelo Perigoso pertence à uma só formação
ideológica. Esta é delineada no Prólogo, quando o
Sujeito da enunciação assume-se como pessoa no mundo e apresenta
o objetivo do discurso – FD4 – (E porque he cousa mui proveitosa
seguir o enxempro desta honrrada senhora, eu, com a ajuda do senhor Deus,
quero enssinar a todos e a todas fundar de seus coraçõoes
h??u castello tam fort<e> contra seus imiigos e tam fremoso e tam bem
guarnido de dentro que o doce rrei Jhesu Christo, verdadeiro esposo das
santas almas, se contente e <h>aja prazer de morar em ell<e>.), objetivo
este que já fora anteriormente fundamentado, através do locutor
impessoal – FD2.
O Sujeito da enunciação, Frère Robert, e o seu
leitor, Soeur Rose e suas companheiras ou a cristandade, estão assujeitados
à ideologia da Igreja. Portanto, a argumentação do
Aparelho Ideológico (a Igreja) é o seguinte: como representante
de Deus na Terra, cabe a ela conduzir as pessoas ao e no caminho da salvação.
Para tanto, conta com os seus representantes (classe a qual pertence o
Sujeito da enunciação, Frère Robert), os quais possuem
a performatividade, isto é, através deles Deus fala. Os requisitos
para se alcançar a salvação é ter fé
e seguir os ensinamentos da Igreja. Como membro da Igreja, Frère
Robert re-apresenta em seu tratado os ensinamentos dela, que são
reconhecidos pelos fiéis. Estes, como estão assujeitados
à ideologia da Igreja, seguem esses ensinamentos, objetivando alcançar
a salvação.
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