A UTILIZAÇÃO DOS PROCESSOS  ARGUMENTATIVOS EM SALA DE AULA
Ana Cristina Salviato  (CAPES/PET)

Orientador: Paulo de Tarso Galembeck

 O tema proposto para esta pesquisa diz respeito a uma das tendências no estudo da língua falada: o estudo dos processos de construção do texto falado (seqüência tópica, uso dos marcadores da conversação e do processo de interação). Mais especificamente, serão estudados os recursos argumentativos, bem como a sua aplicação em aulas para os ensinos médio e superior.  Dessa forma, será analisada a maneira pela qual os professores se utilizam da argumentação para convencer os seus alunos e em que medida esses processos contribuem para o estabelecimento e manutenção de um canal efetivo entre eles.
 Penteado (1983 : 236 e ss.) menciona dois processos de sustentação de argumentos : as evidências e o raciocínio.  Os exemplos típicos das evidências são fatos ou acontecimentos que ilustram ou representam uma dada situação ou asserção.  Por isso mesmo, um fato pode justificar uma dada afirmação, mas, para que isso ocorra, é necessário que ele seja por si evidente e inegável.  O fato constitui um conceito genérico e bastante amplo, que pode assumir várias feições: o exemplo ( fato particular, representativo de determinada espécie de situações, objetos ou ocorrências); os dados estatísticos (fatos expressos de forma numérica ); os testemunhos (fatos trazidos por terceiros).
 Pelo processo de raciocínio, faz-se uso da razão para julgar e conhecer a relação das coisas e para extrair inferências e conclusões dos fatos.  Os processos de raciocínio são os seguintes: indução (generalização a partir de casos particulares); dedução (aplicação de uma regra geral a uma situação particular); relações causais (de causa e efeito ou de efeito a causa); analogia (relação baseada na semelhança de exames ou acontecimentos).
 Este trabalho procurará, assim, estudar os processos argumentativos (evidências e processos de raciocínio) aplicados a uma situação específica de interação, que é a aula, visando:
a)  classificar os processos argumentativos de acordo com a tipologia referida anteriormente;
b)   verificar a adequação desses processos argumentativos ao assento desenvolvido;
c)   verificar em que medida os processos argumentativos contribuem para que se estabeleça uma interação efetiva entre professores e alunos.
 Segundo Charadeau, para diferenciar os vários níveis de organização é necessário levar em conta as particularidades do modo de presença dos participantes do evento interacional e o modo de revelação que os interdefine em função do quadro situacional (Apud BRAIT, 1995).
 Dessa forma, deve-se enfatizar que as aulas expositivas representam uma situação de interação assimétrica.  Nesse contexto, há uma pessoa que dirige o processo de interação, o qual detém o monopólio da palavra, sendo, geralmente o único responsável pelo desenvolvimento do tópico.  Apesar do poder que é conferido ao mestre, deve-se levar em conta que se trata de algo vulnerável, uma vez que qualquer aluno pode interrompê-lo com objeções e ressalvas.  Por isso, ele procura justificar suas idéias e pontos de vista com evidências e procedimentos de raciocínio e, além disso, tais procedimentos não refletem apenas uma competência lingüística, mas também uma função sóciocomunicativa e pragmática.
 O corpus desse trabalho é constituído por inquéritos do tipo EF (Elocução Formal) nº 377, 338, 405, 124  pertencentes aos arquivos do projeto NURC/SP, publicados em Castilho e Preti, 1986; esses inquéritos constituem aulas para ensinos médio e superior. Esses inquéritos foram selecionados porque neles o assunto tratado tem natureza polêmica e conduz ao emprego de processos argumentativos.
 As ocorrências serão classificadas de acordo com os critérios a seguir:
1. Cidade: S - São Paulo; R - Rio de Janeiro.
2. Processo de sustentação dos argumentos: R - raciocínio; E - evidências.
3. Processo de raciocínio: D - dedução; I - indução; C - relações causais; A - analogia; ? - não se aplica (evidências).
4. Evidências: F - fato; E - exemplo; T - testemunho e citação; D - dados estatísticos; ? - não se aplica (processos de raciocínio).
5. Grau de adequação e pertinência ao assunto tratado: F - forte; R - fraco.
6. Presença de marcas de introdução dos processos argumentativos: S - sim; N - não.
 Por adequação e pertinência ao argumento, entende-se a coerência do mesmo em relação ao assunto tratado, ou seja, se o argumento empregado pelo “mestre” realmente tem o poder de convencer os interlocutores.
 A análise foi feita a partir da divisão do tópico discursivo em subtópicos. Entende-se por tópico o tema que é desenvolvido na exposição.  Assim, a cada mudança de item ou subtema, houve uma nova classificação dos procedimentos argumentativos ali utilizados.
 Os exemplos abaixo foram retirados de uma aula universitária (NURC/SP, 338) cujo tema é “a demanda de moeda”. Mais especificamente o professor expõe três motivos principais considerados responsáveis pela demanda de moeda, sendo eles: demanda de moeda por motivo transação, por motivo precaução e por motivo especulação:

(Exemplo 1)
Ls. 25 - 39
Tópico discursivo: três motivos que fazem com que se retenha moeda. (tópico formado por divisão)
1 2 3 4 5 6
S R/E C T F S

R - Causa
existem três motivos clássicos...(...) são três motivos...ou três razões...(25 - 27)

uma demanda de moeda...por... motivo... tran-sa-ção...existe uma demanda de moeda por motivo...precaução (...)...demanda de moeda por motivo es-pe-culação... (29 - 36)

E - Testemunho
 Keynes...introduziu...uma nova razão pela qual as pessoas...demandam moeda guardam moeda por motivos transação e precaução e adicionou o motivo especulação...vamos então agora...discutir...cada um deles...(33 - 39)

 As expressões “três motivos” e “três razões” introduzem explicitamente o raciocínio por relação causal. O professor utiliza-se dessas expressões para apresentar os motivos (as causas) da retenção de moeda. Observa-se neste primeiro momento que o professor simplesmente expõe os três motivos que levam as pessoas a reterem moeda; ocorre pois, uma expansão do tópico discursivo. Por meio dessa expansão o professor apresenta, já no início, os subtópicos que serão discutidos no desenvolvimento da aula, o que permite também a contextualização das informações que virão. Ao dizer “Keynes introduziu”, o mestre esclarece aos seus ouvintes que ele se utilizará de um pensamento que não é de sua autoria, ou seja, ele evidencia sua fala por meio do testemunho deixado por Keynes, o que garante a credibilidade em sua exposição.

(Exemplo 2)
Ls 117 -235
Subtópico: é preciso relacionar a demanda de moeda por transação com o nível de renda em termos (128 - 129)
1 2 3 4 5 6
S R/E C E F S

R - Conseqüência
mas as nossas variáveis macroeconômicas normalmente...são expressas em termos anuais...então...da sua renda anual que é catorze mil e quatrocentos...as pessoas retêm um vinte quatro avos...dessa...renda POR MOTIVO DE ...transação...(147- 152)

R - Conseqüência (conclui o raciocínio)
ahn...pagamentos maior devem efetuar...transações também...maiores certo?...então a demanda de moeda por esse motivo...é uma função do nível de renda...(215- 218)

então a demanda de moeda é uma proporção k...  a demanda de moeda por TRANSAÇÕES... é uma proporção k do nível de renda é a principal razão...pelos quais todos nós agora temos um certo montante de dinheiro no bolso...certo? (229- 234)

E - Exemplo
então ah relacionar essa demanda de  moeda (por) transações com o nível de renda em termos... no ano quanto que esta demanda de moeda...representa...éh:::da renda anual... do sujeito aqui...a renda mensal...é igual a ...mil e duzentos...a renda anual...então vai ser     igual a ...catorze e quatrocentos né?...(127- 134)

no primeiro dia você já...você tem alguma contas maiores...ou nem assim ou talvez  até coisas desse tipo...certo? isso aqui é mais realmente uma...para dar uma forma didática você está supondo quarenta cruzeiros por dia...realmente não é bem assim... (192- 197).

E - Testemunho
para simplificar a demanda de moeda é um proporç/por motivo transação...e  uma proporção...é uma parcela...da renda...e esse k...esse k esse coeficiente k...é chamado de coeficiente...ahn marshalliano... devido a Marshall...(167- 171).

aliás nos vamos sentir na próxima aula um pouquinho melhor...a teoria da moeda segundo os clássicos e segundo Keynes nós vamos confron/ confrontá-las...(206- 209)

 O marcador “então” é constantemente utilizado na língua falada para introduzir um raciocínio feito por conseqüência. Observa-se que nos três exemplos citados o “então” poderia ser substituído por expressões como “por isso” ou  “em conseqüência disso”. Também a expressão “é a principal razão pelos quais(...)”, utilizada após a explanação de uma causa, antecede o relato de suas conseqüências. Por meio do raciocínio por relações causais, o professor procura contextualizar a teoria exposta, fazendo com que os alunos se incluam na situação e aceitem suas conclusões -  nota-se também o uso do pronome da primeira pessoa do plural, como em  “nossas variáveis econômicas”; “...pelos quais todos nós agora temos”.  Os exemplos, apesar de neste caso não serem introduzidos por uma expressão explícita, são utilizados para fazer com que a explicação se torne mais clara e próxima à realidade do aluno. O professor admite sua intenção ao explicar que trata-se de uma suposição, uma forma didática, segundo ele, de ensinar. Como no exemplo anterior, o mestre faz alusão a outros autores conhecidos, usando as expressões “devido a Marshall” e “segundo Keynes”. Ao incorporar idéias de terceiros à argumentação o professor confere autoridade e confiabilidade à exposição.

(Exemplo 3)
Ls. 368 - 429
Subtópico: a demanda de moeda por especulação
1 2 3 4 5 6
S R C ? F S

R - Causa
vamos então entender ...por que então existe esse tipo de demanda de moeda pre/ por especulação...existe esse tipo de demanda de moeda  porque  existe uma exPECTATIVA sobre...rentabilidade futura...--(eu) bom escrever isso daí--...então por que que existe...a demanda de moeda por especulação?...esse esse novo tipo de demanda...que não é nem para transações nem para precaução...é por um terceiro motivo...certo? então...demanda de moeda...es-peculação... porque ...ah::...as pessoas... julgam que... a
rentabilidade...futura...(...) seja maior que a rentabilidade...atual.(368- 384)

 Neste exemplo, o marcador que introduz  o raciocínio causal é o “porque”, com o  qual o mestre anuncia a explanação da causa da  demanda de moeda por especulação.

Exemplo 4)
Ls. 430 - 470
Subtópico: Keynes
1 2 3 4 5 6
S E ? T/E F S

E - Citação ( T )
a gente vai discutir isso Keyna/Keynes deu uma ênfase exageRAda a esse tipo de motivo...provavelmente ele é o menos  importante dos três...mas Keynes deu uma ênfase exagerada porque na época...realmente era um problema (430- 434)

E-  Exemplo (ilustração de um fato real)
ele mostra...por exemplo... em mil novecentos e vinte e nove uma situação...conhecida como a armadilha da liquidez...em que especificamente neste caso a teoria clássica não funciona...(453- 457)
 Após estabelecer as relações de causa e conseqüência referentes à demanda de moeda por especulação, o professor remete-se imediatamente a Keynes - renomado economista - para posteriormente, inferir uma opinião pessoal a respeito da posição do economista referido - “Keynes deu uma ênfase exagerada”.  Assim, observa-se que a evidência por citação é utilizada não só para dar credibilidade à explanação, mas também, para que o autor seja questionado e contestado. Em seguida, para provar o que afirmara anteriormente, o professor emprega a expressão “por exemplo” e  remete-se a um fato real que comprova sua fala.
O exemplo a seguir foi retirado de uma aula universitária (NURC/SP, 124) cujo tópico principal é a influência da língua na personalidade do indivíduo: a diferença entre a forma de pensar dos hopi e a dos indivíduos de tradição cultural do ocidente.

(Exemplo 5)
Ls. 71 - 115
1 2 3 4 5 6
S R/E C E/T F S

R-  Causa e conseqüência
...isto tem um:: uns resquícios desta teoria ((tossiu))...nalguns autores...mas em suma eu acho uma coisa muito interessante como sugestão como hipótese de trabalho...a idéia de que a viagem os povos do ocidente...que viveram...em constantes...andanças...Europa é uma península da Ásia que sofreu todas as invasões possíveis...então esta mobilidade deu uma certa idéia de mobilidade social...e de mobilidade no tempo e o espaço...até nós chegarmos às idéias de tempo e espaço... que existem na nossa cultura...e que são o fruto da elaboração milenar do pensamento...(ls.71- 83).

E - Testemunho
chegou a uma forma precisa...por exemplo em relação ao espaço...num homem que se chamava René Descartes...compreendeu? mas antes de René Descartes houve um outro que chamava-se Leonardo da Vinci...e que deu a forma final a uma noção de pers-pec-tiva...certo? todos vocês conhecem a Santa Ceia pelo menos...para não falar da Gioconda não é? (83-90)

E - Exemplo
...os pontos de fuga...as coisas que vêm do fundo...até nós...esta idéia de espaço...não é universal...por exemplo...em toda pintura egípcia não havia essa noção de espaço...para se representar...o faraó...punha-se a primeira fileira do exército...num plano...em seguida...acima desta fileira...outra fileira...compreende? e assim por diante...na na plástica nas artes plásticas no Oriente e na China...e no Japão...a perspectiva é diversa...(96 - 107)
 O professor procura relacionar a idéia da viagem com a elaboração do pensamento, colocando a primeira como sendo conseqüência da segunda. Para isso, ele introduz a conseqüência com o marcador “então”, e a causa, com a expressão “são o fruto da(...)”. Mais uma vez vê-se a utilização do raciocínio por relação causal para expandir o tópico principal. Além disso, é utilizado para a inferência de uma opinião pessoal -“eu acho”- e para a aceitação da mesma. As citações referentes a Descartes, a Leonardo da Vinci e a obras como a Santa Ceia e Gioconda, conferem credibilidade e a veracidade do que foi dito. Os exemplos, introduzidos pela expressão “por exemplo”,  somados às citações são responsáveis pela contextualização do assunto, aproximando-o da realidade do aluno -“vocês aprenderam isso nas aulas de desenho?”
 Pôde-se notar nas aulas analisadas - todas possuidoras de um tema  polêmico ou passível de refutação - que o professor emprega processos argumentativos como recurso para envolver os alunos.
 Os processos que predominam são o raciocínio por relações causais e a evidência por citações e exemplos. Os demais procedimentos de argumentação (a indução e a dedução ) praticamente não são empregados, por requererem uma elaboração mental maior, sendo mais próprios à escrita.
 Conclui-se que o emprego dos recursos mencionados possuem mais que uma função na exposição da aula. Eles não só possibilitam convencer o aluno  da importância e da veracidade do assunto, mas funcionam também como recurso para a expansão  do tópico discursivo, elemento essencial para o processo de interação na fala. Além disso, tais recursos contextualizam o tema exposto aproximando-o da realidade dos ouvintes.  Eles possibilitam ao professor demonstrar a relevância do assunto para a formação do aluno sem risco de construções redundantes.
 
 

BIBLIOGRAFIA

BRAIT. B.  O processo interacional in: PRETI, D. Análise de textos orais.  2ª ed.  São Paulo: FFLCH/USP, 1995.
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GARCIA, O . M.  Comunicação em prosa moderna.  Aprenda a escrever, aprendendo a pensar.  2ª ed.  Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1971.
PENTEADO, J. R. W.  A técnica da comunicação humana.  8ª ed.  São Paulo:  Pioneira, 1982.
RODRIGUES, A.C.S. Língua Falada e Língua Escrita in: PRETI, D. (org.) op. cit.  São Paulo: FFLCH/USP, 1995.
TRINGALLI, D.  Introdução à retórica e retórica como crítica literária.  São Paulo:  Duas Cidades, 1988.