UTENSÍLIOS
DE COZINHA
PORTUGAL SÉC. XVI / BRASIL SÉC.XX
Celina Márcia de Souza Abbade (UNEB, UFBA)
1. Apresentação
Ao iniciar o Mestrado na Universidade Federal da Bahia, na área
de Lingüística Histórica, no primeiro semestre
de 1996, sob a orientação da professora Célia Marques
Telles, escolheu-se trabalhar com o estudo de alguns aspectos lexicais
das receitas encontradas no Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, manuscrito
português do século XVI, a partir da edição
crítica de Giacinto Manuppella.
O interesse pelo estudo do vocabulário quinhentista relativo
à cozinha, surgiu primeiramente da curiosidade despertada
ao se entrar em contato com o primeiro livro manuscrito de cozinha portuguesa
conhecido até o momento: O Livro de Cozinha da Infanta D. Maria
que provavelmente pertenceu ao final do século XV e princípios
do século XVI .
Ao deparar-se com tais receitas, reconhecem-se de imediato as diferenças
em relação às atuais: o vocabulário utilizado
na época, tanto pode diferir do atual, como pode ser mantido até
os dias de hoje.
Um estudo diacrônico desses vocábulos mostraria a evolução
de cada um deles, ou a sua permanência na língua resistindo
às modificações através dos tempos. O
presente estudo, entretanto, pretende apenas demonstrar como, apesar
de os tempos modernos terem trazido novos utensílios que não
existiam na época, grande parte deles permanecem, utilizando apenas,
algumas vezes, uma nova “roupagem” seja ela na expressão ou no objeto
material.
Trata-se de um estudo lexicológico, e, portanto, serão
observados apenas os aspectos relativos ao léxico, restringindo-se
o enfoque ao campo dos “utensílios”. Sabe-se, porém, como
é a história de um povo, através do seu vocabulário.
Como textos de base, serão utilizados O Livro de Cozinha da
Infanta D. Maria (para os utensílios utilizados no século
XVI) e O Livro de Cozinha de Pedro Archanjo com As Merendas de Dona
Flor (para os do século XX). A partir desses textos, mostrar-se-á
a evolução ou permanência dos utensílios encontrados
em ambos os textos.
2 Dois livros de receitas
2.1. O Livro de Cozinha da Infanta D. Maria
O Livro de Cozinha da Infanta D. Maria é o manuscrito I-E-33
da Biblioteca Nacional de Nápoles. Teria pertencido a uma Infanta
portuguesa de cultura notável: a Infanta D. Maria de Portugal, filha
de D. Duarte (1515/1540) duque de Guimarães, neta do rei D. Manuel
e sobrinha de D. João III. Moça letrada e culta, lida
em grego e latim, que ao casar-se com Alexandre Farnésio (duque
de Parma, Placêncio e Castro), vai, em 1565, morar em Parma. O manuscrito
que teria sido levado para a Itália pela Infanta, faz parte de um
grupo de cinco tomos de origem farnesiana, doação vinda da
família Farnésio. Consta de setenta e quatro fólios,
divididos em quatro cadernos com setenta e quatro receitas. Um códice
que, apesar dos problemas paleográficos e cronológicos que
apresenta, é deveras valioso, contribuindo não só
para o vocabulário histórico da linguagem nacional,
como também mostrando um lado importante da vida social que é
a arte de cozinhar e bem comer, numa época da história nacional
portuguesa de que muito pouco se conhece e cujo mais antigo documento de
receitas culinárias publicado não é anterior a 1680,
que é “A Arte de Cozinha” de Domingos Rodrigues.
A edição de Giacinto Manuppella do Livro de Cozinha
da Infanta D. Maria, inicia-se com a edição crítica
do manuscrito e em seguida é feita a leitura diplomática
nas páginas de números pares, junto a leitura em ortografia
moderna, nas páginas de números ímpares. Ao final
do livro, encontram-se dois índices que são de
interesse para o estudo do léxico: índice de palavras que
ocorrem no códice (p. 165-244) e índice de assuntos versados
nas receitas (p. 247-249). Como alguns vocábulos são
desconhecidos da maioria dos leitores, fez-se também um glossário
das palavras que ocorrem no códice, o que serviu para colaborar
no levantamento lexical pretendido.
O Livro de Cozinha da Infanta D. Maria é composto de 67 receitas
distribuídas em quatro cadernos e mais seis receitas avulsas que
não tratam especificamente de culinária, mas de receitas
diversas de uso doméstico. O primeiro caderno é o Caderno
dos manjares de carne com 26 receitas (numeradas de 4 à 29); o segundo,
Caderno dos manjares de ovos, com 4 receitas (numeradas de 30 à
33); em seguida encontra-se o Caderno dos manjares de leite com 7 receitas
(numeradas de 34 à 40); e, finalmente, o Caderno das cousas de conserva
com 24 receitas (numeradas de 41 à 64).
2.2. O Livro de Cozinha de Pedro Archanjo com as Merendas de Dona.
Flor
Em 1987 resolvi estudar a obra do meu pai, o escritor Jorge Amado,
para fazer um livro de cozinha. Fiz a leitura de seus romances em ordem
cronológica para sentir a evolução da presença
e da importância da comida e da bebida nos seus livros. Dei-me conta
que o material é muito mais rico do que imaginava e que valeria
à pena identificar não somente os pratos da culinária
baiana, mas tudo que se come e bebe, seja vatapá, acarajé,
jaca, cachaça, champanhe, seja terra, rato, gente.
Assim nasce A Comida Baiana de Jorge Amado ou O Livro de Cozinha de
Pedro Archanjo com as Merendas de Dona Flor. Pedro Archanjo e Dona Flor,
são personagens de romances de Jorge Amado. Foi Pedro Archanjo quem
inspirou Paloma Amado a organizar esse livro de receitas. Manual
de Culinária Baiana é o título dado por Pedro Archanjo,
personagem de Tenda dos Milagres , a seu livro de cozinha. Nas palavras
de Paloma Amado:
Pedro Archanjo é um obá de Xangô, Oju Obá
cheio de conhecimento e sabedoria. Conhece o povo mestiço da Bahia
como a palma de sua mão, seus hábitos, sua cultura. Através
de Archanjo pode-se ter a noção exata da delicadeza e da
força, da simplicidade e da sofisticação desta culinária
que também é fruto da miscigenação, que
junta o dendê africano à mandioca do índio e ao azeite
de oliva português.
Dona Flor é a personagem central de Dona Flor e seus dois Maridos
que, do ponto de vista alimentar, é também um livro de cozinha
baiana. Utilizando novamente as palavras de Paloma Amado, pode dizer-se
desse romance que:
Além de dar receitas ? todas corretas e factíveis ? mostra
o jeito de comer da Bahia; explica os carurus de Cosme e Damião;
ensina o que servir num velório; explica como fazer uma grande merenda
à tarde Em Dona Flor e seus dois Maridos se encontra uma relação
das comidas de candomblé, com os pratos preferidos de cada santo
e as quesilas ? o que os santos e seus filhos não podem comer e
às vezes nem pronunciar o nome.
Após fazer o levantamento de todo o material, Paloma Amado afirma
ter, inicialmente, caído na tentação de fazer
um estudo sobre a alimentação através de um ponto
de vista antropológico ou sociológico, mas resiste e faz
a opção pelo livro de cozinha, devido ao grande número
de material encontrado. Divide esse material por temas e resolve fazer
vários livros. Esse é o primeiro deles e divide-se em duas
partes: a primeira, O Livro de Cozinha de Pedro Archanjo, refere-se aos
pratos utilizados nos almoços e jantares baianos. Na segunda, com
As Merendas de Dona Flor, lembra os pratos não apenas servidos entre
as refeições principais, mas que compõem os cafés
da manhã e os jantares baianos . Mais dois livros se seguirão
posteriormente, um das comidas de candomblé e outro sobre
as frutas devido a enorme variedade delas e a importância que têm
na alimentação. Esses dois não serão tratados
no presente estudo.
3. Utensílios de cozinha: do séc. XVI ao séc.
XX
Pelo fato de as técnicas culinárias no séc. XVI
não se mostrarem excessivamente complexas (assar, cozer, fritar,
estufar ou afogar eram as principais técnicas empregadas), poucas
variedades de utensílios se tornavam necessárias: para levar
os ingredientes ao fogo usavam-se tigelas, panelas, tachos, púcaras
ou púcaros; o peixe era frito em frigideiras e sertãs; bacias
e bacios serviam para lavar os alimentos, misturá-los e os levar
ao lume; as panelas eram cobertas com tapadeiras, testos, telhadores ou
sapadeiras; colheres, garfos e facas, geralmente de ferro, assim como escumadeiras,
jueiras, graais, rolos, furadores, machadinhas, carretilhas auxiliavam
os cozinheiros. À mesa, levava-se alimentos em pratos, escudelas,
tachos etc. Desde a Idade Média que se usavam nas mesas
toalhas e guardanapos. Nesse período, a faca era instrumento
por excelência, desconhecendo-se garfos e utilizando-se com pouca
freqüência a colher. Para beber usavam-se copos um pouco
maiores dos que os atuais. Embora se recorresse às escudelas para
sopas e outros alimentos líquidos, comia-se inicialmente a carne
e o peixe em cima de grandes rodelas de pão, substituídas
mais tarde pelo talhador de madeira e, depois, por escudelas que serviam
para duas pessoas .
No Livro de Cozinha da Infanta D. Maria encontram-se quarenta utensílios
diferentes: agulha, albarada de bico, alfinete , algujdar (alguydar), bacia,
bacio, borcelana, caninhas (canynhas), canyuete, canudo, capadeira, carretilha,
colher(es), escudela(s) (escudella), escumadeira, fogareiro (ffogareiro,
fugareiro), furador, fuso (ffuso), gral, jueira (juejra), lagia, machadinha,
panela(s) (panella), pano(s), pao rrolyco, peneira (pineira, pinejra, pineyra,
pyneyra(s)) , prato(s), púcara (pucaro(s), pucoro, pucaros), rrapadoura,
rrolo(s), sesto, sertã (sartãa, sertãa, sartam, sertam,
certãa), tacho, tapadeira, tauoa, telhador, testo, tigela [tejalla,
tegela(s), tigella(s), tijella, tyjela, tijela, tijella] , toalha, vasilha
(vasylha, vazilha).
A Comida Baiana de Jorge Amado traz uma variedade de quarenta e seis
utensílios a saber: assadeira, batedeira, braseiro, caldeirão(zinho),
caneca, churrasqueira, colher (de pau), compoteira, concha, copo, cortador,
cumbuca de barro, cuscuzeiro, escovinha, escumadeira(espumadeira), espátula,
espeto, espremedor, faca, folha de bananeira, fôrma, forminhas,
forno, frigideira, garfo(ão), geladeira, grelha, liqüidificador,
martelo de carne, moedor de carne, molheira, palito, panela(lão),
pano, papel absorvente, peneira, prato, rolo, tábua
(de carne), tabuleiro, tampa, travessa, tigela, urupema
(peneira de palha bem fina), vasilha, xícara.
Atualmente, algumas técnicas mais requintadas podem ser utilizadas
após a invenção de batedeiras, liqüidificadores,
multiprocessadores, fornos elétricos, forno de microondas,
dentre outros. Mas basicamente, continua-se cozinhando, assando e fritando
os alimentos, como se fazia no século XVI. A variedade de utensílios
utilizados na cozinha atual é maior, mas nada tão distante
daqueles tempos. É importante lembrar que, já no século
XIV, Leonardo da Vinci, com suas experiências culinárias e
sua mente criativa, já fazia desenhos de maquinários e utensílios
que poderiam contribuir e facilitar as cozinhas da época. Ele já
imaginava picadores de carne, máquinas de lavar, descascadores de
nozes mecânicos e coisas semelhantes. Com o tempo, seus desenhos
transformam-se em objetos reais.
Se no Livro de Cozinha da Infanta D. Maria foram encontrados 40 utensílios,
no livro A Comida Baiana de Jorge Amado encontram-se 46. À
primeira vista, a diferença é bem pequena, apenas seis utensílios
a mais. No entanto, apenas dez deles são encontrados em ambas as
épocas (colher, escumadeira, panela, pano, peneira, prato, rolo,
tábua, tigela, vasilha). Os demais trinta e seis utensílios
do livro A Comida Baiana de Jorge Amado não citados no Livro
de Cozinha da Infanta D. Maria, poderiam até não existir
no século XVI. Mas dos trinta utensílios restantes do Livro
de Cozinha da Infanta D. Maria, que não são citados
em A Comida Baiana de Jorge Amado, apenas sete deles não são
mais utilizados atualmente (albarada, caninha, gral, sertã, sapadeira,
tapadeira, telhador). Os outros vinte e três apenas não se
encontram no livro em questão, mas existem atualmente, mesmo
que sejam de pouco uso(agulha, alfinete, alguidar, bacia, bacio, canivete,
canudo, carretilha, cesto, escudela, fogareiro, furador, fuso, joeira,
lage, machadinha, pau roliço, porcelana, púcara(o), rapadeira,
tacho, testo, toalha) .
Isso esquematizado, dará o seguinte:
FONTE UTENSÍLIOS ENCONTRADOS UTENSÍLIOS EM COMUM UTENSÍLIOS
DIFERENTES
Livro c. inf. D. Maria 40 10 30
A comida b. de J. Amado 46 10 36
FONTE UTENSÍLIOS UTILIZADOS UTENSÍLIOS POUCO USO UTENSÍLIOS
SEM USO
Livro c. inf. D. Maria 27 9 7
Partindo do Livro de Cozinha da Infanta D. Maria pode observar-se,
portanto, que lexias como agulha, alfinete, bacia, canivete, canudo, carretilha,
cesto, colher, escumadeira, fogareiro, furador, laje, machadinha, panela,
pano, peneira, prato, porcelana, rolo, tábua, tigela, toalha, vasilha
são utilizados atualmente, mantendo o mesmo significado. Outros
? como alguidar (vaso em forma de tronco invertido), escudela (tigela de
madeira, pouco funda), fuso(instrumento roliço e pontiagudo que
serve para fiar), joeira (peneira que serve para separar o trigo do joio),
pau roliço (qualquer pedaço de madeira em forma de rolo),
púcara(o) (pequeno recipiente com asa, ordinariamente destinado
a extrair líquidos de outros recipientes maiores), rapadoura (instrumento
próprio para rapar), tacho (recipiente largo e pouco fundo, em geral
com asas), testo (tampa) ? existem ainda, porém são de muito
pouco uso. Algumas unidades lexicais achou-se documentadas no Estado da
Bahia: alguidar, tacho, testo e púcaro foram registrados por Nilton
Vasco da Gama no município de Marogogipe, no Recôncavo Baiano.
Porcelana está documentada em toda a região do “falar
baiano” no Atlas Prévio dos Falares Baianos . Em todos os casos,
mantém-se o sentido do século XVI.
Albarada, caninha, gral, sertã, sapadeira, tapadeira, telhador
não mais existem no vocabulário atual. Para caninha utiliza-se
caniço, para gral usa-se cálice, para sertã tem-se
frigideira ou torradeira e sapadeira, tapadeira e telhador foram
substituídos por tampa. Bacio tinha o mesmo sentido de bacia hoje.
4.Considerações finais
Estudar o léxico de uma língua é descobrir
um mundo com inúmeras possibilidades de mudanças e pode dizer-se
que essas mudanças fazem parte da nossa própria evolução
como seres humanos.
Através dos tempos os utensílios de cozinha, assim como
as coisas do mundo, vão se transformando, vão surgindo outros,
melhoram-se os já existentes, que permanecem em constantes mudanças.
Porém, mais importante que as mudanças, é a capacidade
humana de poder realizá-las ou não.
Referências Bibliográficas Básicas:
COSTA, P. 1994, “A Comida Baiana de Jorge Amado ou O Livro de Cozinha
de Pedro Archanjo com as Merendas de Dona Flor”, São Paulo,
Maltese.
FERRO, J. 1996. “Arqueologia dos Hábitos Alimentares”, Lisboa,
Dom Quixote.
GAMA, N. 1976. “Breves considerações sobre o vocabulário
de uma variante lingüístico profissional em Maragogipe”, in
I Encontro Nacional de Lingüística. Conferências/ PUC-RJ,
p.406-433.
MANUPPELLA, G. 1986. “Livro de Cozinha da Infanta D. Maria de Portugal”,
Códice português I.E.33 da Biblioteca Nacional de Nápoles,
Lisboa, Imprensa Nacional / Casa da Moeda.
ROSSI, N. 1965. “Atlas Prévio dos Falares Baianos” Salvador,
Universidade Federal da Bahia – Faculdade de Filosofia - Laboratório
de Fonética. Instituto Nacional do Livro: Carta 46.
ROUTH, S.y J. 1996. “Notas de cocina de Leonardo da vinci”, Compilación
y edición. Traducción de Marta Heras. Madrid, Temas de Hoy
SA.