RASTREANDO A CATEGORIA DO MITO DA ORIGEM E DO SAGRADO EM O PÃO DE CADA DIA DE NÉLIDA PIÑON
Maria Alice Aguiar. Dra. em Teoria Literária pela UFRJ. Prof. Adj. de Teoria Literária, Literatura Brasileira e Literatura Portuguesa da UERJ-FFP; Prof. Titular do Mestrado em Educação da UNIVERSO e Diretora da Rev. Paradoxa - Projetivas Múltiplas em Educação.
O mito de origem remonta a uma situação acontecida in
illo tempore, no tempo primacial, que busca interpretar o modo de ser do
homem, conduzindo-o às estruturas de sua constituição
e de sua origem na existência. Todas as eras históricas conservam
recordações de um tempo mítico em que o homem era
bom, perfeito, feliz. Também os primitivos tinham consciência
de que haviam perdido um “Paraíso” primeiro. Sua condição
não era uma condição original. Já se fundamentava
como resultado de uma catástrofe acontecida ab origine, que
o deserdou do desfrute de uma vida edênica. É a Idade do Ouro,
como diz Roger Caillois , a infância do mundo, por analogia
com a infância do homem. Um verdadeiro paraíso terrestre onde
tudo era presenteado. Seu rompimento obriga a se ganhar o pão de
cada dia com trabalho e suor. É o reino de Cronos sem lutas, sem
comércio, sem propriedade privada. Mas, este mundo de paz, calma,
tranqüilidade é também o mundo das trevas, mundo do
sacrifício humano, mundo em que Cronos devorava seus filhos, era
da criação excessivamente desordenada. O Caos e a Idade do
Ouro constituem-se nas duas faces de uma mesma realidade imaginária:
a face de um mundo sem leis de onde teria emergido o atual mundo regrado.
Assim, a primeira idade surge como um tempo de vigor e de potência
criadora, donde se ergueu o mundo de agora, ameaçado pela morte.
É o reconstruir-se nesta eternidade sempre atual que abrirá
ao homem a possibilidade de reencontrar-se na plenitude da vida, permitindo-lhe
enfrentar o tempo durante um novo ciclo. O mito, portanto, define o habitat
do homem e realiza, pelo imaginário e pelos símbolos um equilíbrio
vital, anunciando uma ontologia espontânea, anterior a toda dissociação
advinda da racionalidade. E é pela repescagem do mito como fundação,
como verdade profunda a nível de ser, como ontofania e também
como elemento tematizado que Nélida Piñon edifica sua escritura.
Sentindo que a expressão já se esgotou na sua forma,
Nélida, seguindo as trilhas da literatura moderna, empreende a ressurreição
de uma linguagem perdida, reinventando, a partir da paródia ritual,
uma nova linguagem universal que aponta para um mundo que nada mais é
do que um rito: um rito como um grande jogo biológico e social entre
os vivos e os mortos, entre o amor e o ódio, entre os jovens e os
velhos, entre o mundo animado e o inanimado, entre a busca da origem e
o apontamento para o futuro.
O tema da origem emerge, então, como uma instância
controvertida do pensar e do ser que, inseridos numa temporalidade atual,
instam por um asseguramento de tempos primevos e por uma visão para
épocas vindouras. Assim sendo, o perscrutar das origens, antes de
ser uma simples busca por marcadas eras míticas ou históricas,
caracteriza-se como uma carência existencial que só adquire
significado quando se descobre o lastro genealógico próprio
e das coisas objetivas, compreendendo-se, simultaneamente, a dimensão
do devir. Fica claro, destarte, que o assunto é particularmente
humano.
Sua última obra - O pão de cada dia
- publicada em 1994 é um livro de fragmentos onde a escritora adentra-se
em meditações verticais sobre o homem, sobre a história
do homem e, sem dúvida, sobre a sua própria história,
rastreando, pela presença constante da memória, as
categorias do mito e do sagrado, já apontados no próprio
título da obra. Há, no panteão grego uma divindade
nomeada com uma função psicológica : Mnemósine.
Sabemos que os gregos colocavam entre seus deuses paixões e sentimentos,
mas Mnemósine apresenta-se como um caso especial. A função
da memória abarca grandes categorias psicológicas como o
tempo e o eu, colocando em xeque um conjunto de manobras mentais labirínticas
e o domínio que se tem sobre ela depende de prática. Rememorar,
não é simplesmente um sentimento. Torna-se conquista. A memória,
portanto, faz o poeta navegar por mares primaciais, recordando um
tempo antigo, um tempo de origem. A emoção do passado, diferentemente
de apenas viver o que já existe, também nos descortina a
ilusão de uma existência. Voltar ao principio dos tempos não
é omitir realidades presentes. Ao afastar-se do presente, o poeta
se distancia do mundo visível. Retira-se do universo humano para
desvendar, por trás dele, outras partições do ser,
outros níveis cósmicos, quase sempre inacessíveis.
No fragmento “Mnemosines” de O pão de cada dia, Nélida diz
que A memória tem a densidade e a ligeireza de uma bailarina. É
algo engraçado, cheio de fiapos que desobedecem ao rigor do tempo.
É como areia movediça. A memória trai.
Ao Esquecimento se atribui uma função de morte.
Só se rastreia a esteira do mundo dos sonhos se se perde a
lembrança e a consciência. Já a Memória surge
como um princípio de imortalidade, um privilégio de não-morte,
dado àqueles cuja reminiscência sabe discernir para além
do presente, o que está soterrado no mais profundo passado e amadurece
no mistério dos tempos a vir. É Mnemósine que preside
à inspiração poética. Como mãe das Musas
cabe-lhe a função de revelar o que foi e o que será.
No fragmento "A caixa da memória" Nélida recorda-nos que
A felicidade dissolve-se no entulho das lembranças. Para trazer
este esboço de felicidade de volta à casa, ao quarto dos
nossos sonhos, é forçoso reinventá-la. Rastrear no
refúgio de estalactites e estalagmites os traços vagos da
memória. Nessa caverna, onde a luz é escassa, escuta-se o
ininterrupto conta-gotas das esparsas relembranças. Será
água ou será vinho com que Baco nos quer embriagar, para
tão-somente nos fazer esquecer?
Ao reinterpretar os mitos ou a remeter-se a eles, ao parodiá-los,
ao redimensioná-los, Nélida, como todo artista da palavra,
descobre, em si mesmo, um poder de demiurgo. O drama ritual reúne
e religa o seu próprio ser de origem, desenhando-se num palco onde
tudo é simbólico. Desta forma, o artista se joga no jogo
do texto e, enquanto nele se joga, é ele mesmo jogado. Faz com que
o jogo seja o dele. Faz com que o jogo seja o próprio jogador. Neste
impasse, a aposta são os passes do mundo, os passos da existência,
todos os atos, inclusive o próprio mistério que o artista
é, antes de se entregar ao jogo, antes de se colocar em disponibilidade
de jogar. Se, no final, consegue identificar-se ou assemelhar-se ao deus,
ou imitá-lo nos lances do jogo primordial, ganhou. E o que faz
Nélida? Joga com a arquitetura de uma linguagem original,
com o sempre desejo de ancorar seu fazer literário no fundo das
águas escorregadias do mito e do sagrado, somando-se a este fato
um compromisso claro que ela assume com a subversão dos gêneros
tradicionais. Sua preocupação com a elaboração
da palavra, peregrina por todas as suas entrevistas cujo cerne seja a sua
obra e na própria obra, como podemos constatar no fragmento
denominado “A palavra da guitarra” onde a escritora toca os seguintes acordes
harmonizados pelo seu verbo:
Nenhuma palavra sai ilesa. Nasce ela contaminada pela índole
do seu criador. O escritor, porém, longe de superficializar a língua,
fornece-lhe, ao som da guitarra de cinco cordas paredes com que reforçar
a vitalidade do pensamento e da imaginação.
Paralelo a este devotamento e criatividade no inventar da língua,
em O mito da criação, ensaio sem data e publicado recentemente
na revista Veredas , Nélida traça os princípios
de sua “profissão de fé”. Neste ensaio, além de discorrer
sobre aspectos históricos, poéticos e sagrados de sua obra,
ela o ilumina, igualmente, com sua biografia. Nomeando a criação
como um ato enigmático e voraz, de onde não se podem expulsar
a mesa, a cama as batalhas, os gestos cotidianos, liga-o de imediato à
sua trilha existencial, ao comentar: A minha vida, como a de todo escritor,
está possivelmente embutida no texto, ali cravada como lança
. Sendo neta de imigrantes espanhóis, provenientes da Galiza - tanto
do lado paterno quanto do materno - Nélida possui a consciência
de ter tatuados numa memória secular, profundos elos com a terra
natal de seus ancestrais. Seu avô Daniel emerge em sua fala como
um homem intrépido que chancelara em sua alma a aventura, quando
deixa seu torrão natal, pleno de utopias e desideratos para emaranhar-se
num país estranho, desembarcando na Praça Mauá, Rio
de Janeiro. Como filho adotivo - aquele que muda de pai mas não
troca de sangue - traz a Galiza consigo e esparge-a com vigor sobre todos
aqueles que o rodeiam e, principalmente sobre a neta, que, por sua vez,
como demiurga, passa a endossar duplo nascimento: um na terra, Brasil
e outro no sonho, Galiza. Fica patente, portanto, que, o que de mais
importante o avô lhe outorga é esta aventura pelo
traçado da geografia primordial, pela busca inicial. Segundo Nélida
ele iniciara em meu nome uma espécie de viagem que me caberia prosseguir
desde que me habilitasse ao imaginário, às dúvidas,
às incertezas .
A viagem do avô funda-se como fonte da viagem de Nélida
pelas águas do imaginário. Aportando em um mundo novo - as
Américas - esse ancestral galego infiltra-se na memória de
Nélida e torna-se, para nossa escritora, o elemento propulsor
de suas andanças pelos arquipélagos da língua. Ratificando
esta posição, o fragmento dedicado ao avô é
pequeno e ao mesmo tempo grandioso. Seu título: Daniel. Seu
texto: Meu avô é a minha narrativa . Assim, Nélida,
cônscia de sua gênese, assimila-a e, no caudal de seu fazer
literário arrasta consigo uma galeguidade plena, espontânea,
sagrada. Envolvida por Mnemosine, rememora, no fragmento “Ternas criaturas”,
a terra que a ajudou a perseverar em seus propósitos de vida
mais contundentes, asseverando:
Recordo Galícia no mês de novembro. Menina ainda, não
temia o frio que penetrava pelas frestas das portas. Mas padecia da violência
do carrasco que à primeira luz do dia introduzia o percipiente facão
na garganta dos porcos da casa que mais pareciam touros.
Eu amava os porcos louros. [...]. Havia naquelas terras uma cultura
sem desperdícios. A migalha do pão que enfeitava o prato
daquelas criaturas vencera milênios de pungentes peregrinações.
Lutaram como lobos para chegarem vivos ao alvorecer. No início,
estranhei. Afinal viera de uma terra de fartas colheitas em que plantando
tudo se reproduz. Em certas regiões as árvores brasileiras
alcançavam sessenta metros de altura. Mas logo compreendi que embora
a dor aflorasse em cada casa galega, havia a tradição de
sufocá-la, de impedir derrames inúteis. O naufrágio
dos sentimentos reforçava-lhes a dignidade do trabalho.
É certo que a porta é um elemento que
se abre sobre o mistério, mas ela detém, na escritura, um
valor dinâmico psicológico, pois ela convida a uma passagem,
que, na acepção simbólica, indica o domínio
do sagrado, além de dar acesso à revelação.
E o que acontecia: o carrasco enfiava o facão - instrumento
carregado de significação fálica - na garganta dos
porcos que pareciam touros. Logo, porcos enormes, de aparência próspera,
mais chegados ao simbolismo da fecundidade e abundância. São
porcos-touros. Segundo a interpretação junguiana, o sacrifício
dos touros representa o desejo de uma vida do espírito que permitirá,
ao homem, triunfar sobre suas paixões animais primitivas e que,
logo após uma cerimônia de iniciação, lhe dará
a paz . E estes porcos são além de touros, louros. Sabemos
que entre os antigos, deuses deusas e heróis eram, em sua maioria,
louros. Mesmo Dioniso, embora Homero o tenha descrito moreno, não
tardou, segundo Eurípedes, em tornar-se um belo jovem de olhos negros
e de tranças louras.
Isto porque a cor loura vem apontar para as forças psíquicas
emanadas da divindade. Entre os celtas, uma cabeleira loura é sinal
não apenas de beleza, seja de que sexo for, mas, de beleza de reis.
Tal privilégio, sem dúvida, provém de sua cor solar,
manifestação de calor e de maturidade. São, portanto,
animais que trazem a marca do sagrado que serão sacrificados. E
os galegos, enfeitavam seus pratos com migalhas de pão que venceram
milênios de peregrinações dolorosas e com a carne destes
animais sagrados, que caminhavam, apaziguadamente, no sentido de servirem
de alimento a este povo que lutou como lobo para chegar vivo ao amanhecer
da história. Porque como lobos? Porque a simbologia positiva do
lobo combina, exatamente com o chegar vivo ao amanhecer do dia. O lobo
muda-se, no contexto, de sinônimo de selvageria para símbolo
da luz, herói guerreiro, ancestral mítico. Este é
o prato do inverno cortante da Galiza, a comida sagrada que torna o povo
prenhe de esperança, força, sacralidade. E nossa escritora
vai mais além, amalgamando fronteiras, separadas geograficamente
por milhares de quilômetros, congeminando-as numa mesma perspectiva
de emoção em “O cenário da festa”, quando declara:
No Natal, vou enfeitar a mesa e o coração com flores
do campo, frutas, as velas de sempre e os enfeites antigos, tudo que nos
resta no horizonte do afeto.
Não quero alterar os hábitos que nascem da esperança.
O bacalhau foi trazido da Espanha, em meio às meias, aos sabonetes
Myrurgia, ou chouriços que aglutinam os restos sagrados dos míticos
porcos galegos. Tudo mais, havendo ou não, constitui a fome da ilusão
que ilumina os pavios das velas vermelhas fincadas nos corações
dos candelabros de prata. O cenário da festa indica a insubordinada
vontade de resistir.
Neste texto, mesa e coração estão perfilados num
mesmo horizonte de afeto, mantendo o vigor da esperança: flores
do campo, frutas, velas, enfeites antigos, bacalhau da Espanha, sabonetes
Mirurgya são elementos que pertencem ao clima do Natal - festa que
evoca toda uma sacralidade, coadunando os opostos morte-vida e originando
uma nova era - estão acompanhados pelos chouriços que enlaçam
os restos sagrados dos míticos porcos galegos. O sagrado é
uma categoria da sensibilidade. Não há nada que não
possa tornar-se sede do sagrado. E a festa é um dos principais recursos
desta categoria teórica. Na vida corrente ele, o sagrado,
se manifesta através dos interditos A mesa farta, que indica os
excessos da festa, é sagrada; são sagradas as coisas que
rememoram a consagrada terra de Espanha e, principalmente da Galiza; e
é sagrado o cenário da festa de Natal, tempo consagrado ao
divino, que indica a insubordinada vontade de resistir. A própria
insubordinação já faz parte da transgressão,
sustentáculo do sagrado.
Criando um fragmento denominado O Orujo, bebida galega semelhante à
nossa cachaça, nossa escritora entrega-se e integra-se à
sacra bebida do povo galego sorvendo-a, gole a gole, palavra a palavra,
para, no jogo dionisíaco do éxtasis e do entusiasmós,
deixar-se sair de si para que este deus penetre em sua persona poética,
conclamando o vigor do imaginário galego e a exaltação
de sua capacidade de contar histórias, pois
O Orujo, com o prestígio de uma entidade de água queima
as cordas vocais do povo galego. Homiziado por anos no barril de carvalho,
ele às vezes enfraquece o dom da fala, tão comum naquela
região de ardente narrativa. Outras vezes, ao bebê-lo, pronto
instiga-se o fervoroso imaginário de uma raça que a prepotência
castelhana tentou soterrar ao largo de quatro séculos.
Individualizando o Orujo como entidade, Nélida Piñon doa-lhe
um prestígio de ser, humanizando-o. Um ser aquoso que queima as
cordas vocais do povo galego. O álcool é a água de
fogo, a aguardente que queima a língua e se inflama com a menor
faísca. Em A psicanálise do fogo Bachelard esclarece que
o álcool de Hoffmann é o álcool que chameja e está
marcado pelo signo inteiramente qualitativo, inteiramente masculino do
fogo. Já o álcool de Poe é um álcool que submerge
e traz o esquecimento e a morte; está marcado pelo signo inteiramente
quantitativo e feminino da água. E nós completamos: o álcool
de Nélida realiza a síntese da água com o fogo, do
masculino com o feminino, da androginia, instituindo-se como ser sagrado,
como sagrado é o carvalho onde ele é homiziado por anos.
Símbolo do fogo da vida o é, igualmente, da inspiração
criadora. Ele não apenas excita as possibilidades espirituais como
também as cria, sendo, inegavelmente, um fator de linguagem, naquela
região de ardente narrativa. É, portanto, a comunhão
da vida com o fogo, fazendo convergir mil experiências íntimas.
O álcool, aqui, equivale ao vinho. É a embriaguez
sagrada. tão enaltecida pelos gregos; estado de espírito
que aproxima o homem dos deuses, que os faz transcender a si próprios,
atingindo a plenitude do ser. Vindo à luz de mãe selvagem,
o vinho, como a cachaça, é o líquido onde se mesclam
a morte e a vida multiplicada; em que se revezam o fogo incandescente e
a umidade refrescante. Uma droga que atua sobre o homem no sentido de fazê-lo
superar-se ou metamorfosear-se em animal; instiga-o a descobrir o êxtase
ou ajuda-o a mergulhar na bestialidade. O Orujo eclode como elemento transformador,
reconduzindo a estagnação ao movimento. É o veneno-remédio
com o qual Dioniso tempera as convulsões internas dos galegos e
os faz atingir, por alguns momentos, à plenitude do Ser como
Verdade, e a tornarem-se, após a vivência do transcendente,
outros, neles próprios, capazes de emergir dos escombros atirados
sobre eles através dos séculos.
Em minhas continuadas pesquisas sobre a obra de Nélida Piñon,
pude perceber, tatuada em seus textos, a perquirição da
origem e a trilha do sagrado. É ainda em O mito da criação
que ela explicita :
[...] o ato mesmo de criar concretiza toda a interpretação
que faz da vida. É um inventário que o autor faz da vida,
segundo o seu ponto de vista. No ato de criar, tudo lhe é integralmente
cobrado. Não há qualquer inocência. Diante do papel
em branco você coloca o que precisa pôr, e expulsa o que deve
ser repudiado. É um instante dinâmico e trágico, em
que o autor se sujeita a limites insuportáveis. E, completa: a língua
só tem sentido através dos sentimentos que os homens imprimem
às palavras ao longo dos séculos.
É deste sentimento que estamos a falar. Repescando origem e
marcando o espaço do sagrado em sua obra, Nélida está,
sem dúvida dando sentido único à sua escritura ao
imprimir às palavras os sentimentos originários que traz
dentro de si. Sentimentos advindos de pés que pisaram, convictos,
o santuário de Santiago de Compostela - seus ancestrais -, lugar
de segredos e de penetração nos mistérios divinos.
Sem dúvida, as peregrinações a Santiago de Compostela,
atestadas desde o século IX, determinam uma força operante
e renovadora da cultura da Galiza, lugar onde se encontra um dos principais
santuários do mundo. Com o descobrimento do sepulcro do Apóstolo
Santiago, em começos do século IX, Compostela exilou-se do
anonimato de campos e selva, passando a iluminar um dos cenários
da história, por obra do milagre. E esta paisagem, chancelada
na história desta escritora que já viveu milênios,
atemporalidade com a qual ela se identifica em cada declaração
que faz sobre o tempo de seu tempo, fincou, como as espadas de santos e
heróis, a plenitude do mito e do sagrado em sua alma, conseqüentemente,
em sua obra.
Um sagrado arcaico e peregrinante, nascido nestas terras e tornados
universais pela profusão simbólica de sua narrativa
e grandiosidade de sua construção estética. Seria
interessante, neste passo, que as gentes que caminham para servir ao Altíssimo
recebem três nomes: palmeiro se eles vão a ultramar
- aos Santos Lugares - de onde, trazem a palma; peregrinos, se vão
à Galiza, já que Santiago foi sepultado mais longe de sua
pátria como nenhum outro apóstolo; romeiros, se vão
a Roma. Assim, a palavra peregrino pode ser entendida em sentido amplo
e em sentido restrito. Em sentido amplo, peregrino é todo
aquele que se encontra fora de sua pátria, e, em sentido restrito,
é peregrino somente aquele que vai à casa de Santiago ou
retorna dela. Neste caso, Nélida Piñon recebeu, dos seus
primórdios, a marca de peregrina em sua plenitude. No sentido amplo
- como aquela que está longe de sua pátria. E esclarecemos:
não da pátria de nascimento, mas da pátria de legado,
a pátria marcada, em seu peito, pelo fogo das lendas, talvez e mais
provável pelas histórias do rapsodo Xan, de A República
dos Sonhos. E o sentido restrito celebra-se por suas sempre
andanças pela Galiza, seja no plano da "realidade" ou no plano do
imaginário, enfim, aquela que sempre vem a casa de Santiago ou retorna
dela. Por todas estas manifestações de sua vida, já
que, como Nélida mesma, em um de seus inúmeros acordes
de memória galega, no fragmento denominado "A pátria do pai",
assevera:
Sou quem nutre profunda nostalgia por uma Galícia que conheci
menina, mal sabendo que existia a geografia dos homens e que cada terra
- dentro desta estranha noção de pátria - , levava
um nome. Um nome no mapa, um nome na geopolítica, um nome, sobretudo,
na alma.
Já no fragmento “Compostela” consagrado ao Apóstolo,
Nélida impõe um sentimento de incerteza: Santiago, o Santo,
preside o desatino humano. Cada peregrino leva no coração
o pergaminho da dúvida que os anos inscreveram como sinal de fé
. Este espírito peregrinante, pecador e santo, místico
e mítico, profano e sagrado, deambula pela linguagem, pela
temática, pelos personagens e pela estrutura narracional de O pão
de cada dia. Portanto, viver o mito implica penetrar num determinado estilo
de manifestação espiritual de um povo, tal como sua música,
sua poesia, sua pintura, sua escultura, sua ciência. É ainda
Nélida, em parte do fragmento denominado “A esperança do
mito” que diz:
O mito da criação vai ao encalço de quem escreve.
A quimera que dele emana alimenta as ilusões secretas. Uma vez que
a arte pode ser uma fatalidade, é no território da criação
onde melhor transita o instinto da aventura. Graças à arte
se dissolvem os nodos da dimensão totalitária da verdade
Espelho e cúmplice do homem, o mito depende do outro para propagar-se.
Assim como a realidade depende da ilusão para perdurar na consciência
humana.
Muitos séculos se passaram para que se entendesse que era necessário redescobrir, no ser humano, outros níveis de pensar a vida que não o puramente racional. Elaborando em outros termos, redescobrir que o ser humano é colocado no ser não pela razão ou mesmo pelo intelecto, mas, sim, pelo desejo. Em tempo de crise, quando o homem, ao sorver da água da fonte de Lete, esqueceu-se de todas as suas possibilidades, de todas as suas utopias, nada lhe restando senão o fastidioso cotidiano, emerge nele um imenso desejo: o de mergulhar em seu passado e buscar suas origens, sua arché. Parece-nos que a humanidade atual vive em constante ruptura com o universo mítico das hierofanias. Pois, defrontar-se com tal universo configura-se-lhe ver, num espelho, a própria face do destino humano. Assim sendo, ao falar do mito da criação, Nélida Piñon demonstra que o poeta confere o ser às realidades que invoca e evoca. Ele as convoca de acordo com o coração do homem. Re-criador de novos mitos é ele quem, através de sua escritura, dá sentido ao mundo. De sua própria obra ele aprende a sua soberania. O santuário da linguagem se faz mito pelo ritual eterno do tentar dizer o indizível, do comando da voz que fala, no comando da mão que escreve. “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o verbo era Deus”, ensinando ao homem a orar pelo pão de cada dia.