OS FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA CRÍTICA TEXTUAL

Ruy Magalhães de Araujo (UERJ) 

I. BASES HISTÓRICAS.

Os textos, a rigor, dizem respeito aos seguintes segmentos históricos: antigos, medievais, renascentistas, modernos. Para efeito metodológico, entretanto, melhor será  considerarmos os textos inseridos nas quatro fases tradicionais da divisão histórica: antigos, medievais, modernos e contemporâneos.
Desde os tempos antigos até os nossos dias, as atividades filológicas foram basicamente as mesmas ou se constituíram nas mesmas atividades: fixar, restaurar, comentar e interpretar os textos,  embora sob rótulos e nomenclaturas diversas: crítica textual, ecdótica, crítica verbal, crítica genética, textologia, em consonância com a evolução que se processou em vários países e em épocas diferentes.
Numa rápida perspectiva diacrônica, podemos mencionar os seguintes filólogos alexandrinos como grandes nomes da crítica textual de sua época: Zenódoto de Éfeso (cerca de 280 a.C.) foi o primeiro editor crítico, ao elaborar a edição crítica das obras de Homero. Foi também o primeiro diretor da biblioteca de Alexandria. Atistófanes de Bizâncio (por volta de 257-183 a.C.) deu continuidade e aperfeiçoou os trabalhos de Zenódoto de Éfeso quanto às edições críticas de Homero. Estabeleceu os textos críticos de Hesíodo, Píndaro, Alceu, Anacreonte, e também de seus homônimo Aristófanes. A ele se atribuiu a criação dos sinais diacríticos e a introdução do chamado cânon crítico.
Na Idade Média, destacaram-se: São Jerônimo (373-420), que, utilizando-se dos métodos empregados por Orígenes (outro filólogo alexandrino) sobre a Bíblia, elaborou a edição da Vulgata. Na atualidade, Karl Lachmann (1793-1851), filólogo alemão, criou os princípios da moderna crítica textual, com a edições do Novo Testamento Grego e com a obra de Lucrécio: De Rerum Natura. Seu trabalho está dividido em várias etapas, às quais emprestou nomenclaturas latinas. Outras figuras de destaque foram o italiano Giorgio Pasquali (1885-1952) e o francês J. Bédier (1864-1938).
 

II. DEFINIÇÃO.
                                                                                                            Entendemos por Crítica Textual moderna a ciência e a arte de reconstrução de um texto, – (ou que realiza a sua fixação) –, quer seja o mesmo literário, quer seja jurídico, quer seja histórico, quer seja filosófico, quer seja político etc, o qual nos foi transmitido com erros e imperfeições. Essa reconstrução se faz através do exame meticuloso de cada uma de suas palavras e por meio da comparação de cada uma das versões constantes dos exemplares com que o mesmo foi publicado.
Os seus objetivos agrupam-se, grosso modo, em:
? investigar a autenticidade dos textos;
? fazer o levantamento de toda a tradição textual, em caso de análise;
? classificar os testemunhos de manuscritos e impressos;
? estabelecer critérios para a publicação de novas edições;
? avaliar a fidedignidade das transcrições, tanto em edições antigas quanto em modernas.
A Crítica Textual é a expressão da cultura individual e coletiva por intermédio dos textos.
Configura-se, também, como uma ciência autônoma, posto que a linguagem humana tem sido objeto de especulação por parte de outras ciências.
É de sua competência:
? preparar edições críticas de textos cuidadosamente estabelecidos;
? apontar o texto mais representativo da última vontade lúcida do autor;
? preparar um trabalho cuidadoso das variantes;
? preparar a edição crítica comentada.
O seu ponto culminante é a publicação da edição crítica.             Edição crítica é a reconstrução de um texto viciado, imperfeito e defeituoso em sua transmissão, com base na comparação dos diferentes estados em que se encontra o mesmo nos vários exemplares apresentados, aproximando-o, tanto quanto possível, daquele que o autor considerou definitivo.
Uma edição crítica possui, muitas vezes, maior número de páginas do que a obra criticada.
 

III. ETAPAS FUNDAMENTAIS.

Em consonância com a nomenclatura utilizada por Karl Lachmann, e de acordo com as adaptações que fizemos, são as seguintes essas as etapas fundamentais:
1. Considerações prévias      1.1. Aspectos históricos e culturais: o contexto   1.2.Aspectos biobliográficos: dados da vida do autor, livros do autor e sobre o autor.
2. Momentos de preparação da edição crítica:
2.1 Recencio. Recensão. Etapa inicial. Consiste em recolherem-se todos os elementos relacionados com a obra a ser estudada: manuscritos, impressos etc.
2.2. Collatio. Colação. É o cotejo, a comparação de todos o material recolhido.
2.3. Eliminatio codicum descriptorum. Consiste em localizar e eliminar os manuscritos  impressos que não se reconhecem de capital importância como representantes da última vontade do autor.
2.3.1. Classificação dos textos não eliminados.
2.3.2. Separação do texto que se irá examinar, a fim de ser escolhido como representante da última vontade autoral.
2.4. Stemma codicum. Estemática. Adaptação de originem detegere, revelar a ascendência. A palavra é grega ??????, através do latim stemma, coroa, grinalda,  diadema. Aqui se trata de uma espécie de árvore genealógica de textos manuscritos e impressos. Não há regras fixas. Cada caso é um caso à parte a ser considerado.
2.5. Emendatio, de emendare, emendar, corrigir. É o conjunto de operações que busca a correção de erros de falhas encontrados no texto de base, os quais são infinitos. Abrangem letras, palavras, frases inteiras, por incúria e ignorância dos copistas, tipógrafos e revisores, e também por interferência descabida dos preparadores de textos.

3. Outros procedimentos de preparação da edição crítica propriamente dita:
3.1. Escolha do texto de base, isto é, aquele que se julga ser o mais representativo da última vontade do autor.
3.2. Fixação do texto crítico: atualização ortográfica, revisão tipográfica (se for o caso).
3.3. Fixação exaustiva das variantes em notas de pé de página. As variantes constituem modificações introduzidas pelo autor e seu registro representa uma fonte riquíssima de informações.
3.4. Organização da introdução crítico-filológica: motivos, planos, critérios adotados, aspectos histórioco-sociais etc.
3.5. Registro filológico (também chamado apparatus criticus, aparato crítico. No final do volume: [Comentários filológicos].
3.6. Glossário.
3.7. Reprodução da fac-símiles, se houver.
3.8. Bibliografia.
Obs. Os três últimos itens constituem partes não essenciais da edição crítica, embora necessários.
À crítica textual cambem ainda as seguintes tarefas:
a) Mostrar a história da criação do texto:
*o pré-texto: fase de mentalização;
*o prototexto: redação dos manuscritos, que constitue atualmente moderna ciência denominada crítica genética ou manuscriptologia. Os manuscritos podem ser autógrafos e apógrafos;   b) examinar e provar a fidedignidade e a autenticidade dos textos: autor, época, fatores de ordem histórico-social, jurídica, política, econômica, ideológica, religiosa, econômica etc. Os textos podem ser: autógrafos ou autênticos – de autoria comprovada; apócrifos: de falsa procedência ou de fonte duvidosa; apógrafos: copiados e não assinados;
c) organização e publicação de boas edições;
d) supervisão de trabalhos de textos escritos para gravações sonoras: discos, fitas magnéticas, bem como  para  trabalhos informatizados;
e) exegese e hermenêutica de textos.

Além da edição crítica, conhecem-se outras edições, as quais funcionam, digamos assim, como subsídios valiosos para a própria edição crítica.
i) edição diplomática ou paleográfica: é aquela que reproduz uma obra manuscrita com todas as características gráficas que a mesma contém, ou seja, ipsis litteris virgulisque;
ii) edição diplomático-interpretativa: é a que altera a edição diplomática, separando as palavras que no manuscrito aparecem unidas, colocando as abreviaturas por extenso, atualizando a ortografia, enfim, superando toda e qualquer omissão ou falha que por acaso venha a comprovar-se;
iii) edição fac-similar ou fotomecânica: reproduz um texto, manuscrito ou impressso, por meio de procedimentos fotográficos;          iiii) edição princeps: é a primeira edição de um texto.
 

BIBLIOGRAFIA BÁSICA

AZEVEDO FILHO, Leodegário A. de. Iniciação em crítica textual. São Paulo: Presença/Edusp, 1987.
HOUAISS, Antônio. Elementos de Bibliologia. Rio de Janeiro: INL, 1967.
LAUFER, Roger. Introdução à Textologia. Trad. de Leda Tenório da Motta. São Paulo: Perspectiva, 1980.
MELO, Gladstone Chaves de. Iniciação á Filologia e à Lingüística Portuguesa. 4ª edição, Rio de Janeiro: Acadêmica, 1975.
SILVA NETO, Serafim da. Textos medievais portugueses e seus problemas. Rio de Janeiro: MEC/FCRB, 1956.
SPINA, Segismundo. Introdução à Edótica. São Paulo: Cultrix, 1977.