AS
CONCEPÇÕES DOS ALFABETIZANDOS
SOBRE A ESCRITA: ANÁLISE DE CASOS
Rosimeire Aparecida Montezelli
(CAPES/PET)
Orientadora: Gladis Massini-Cagliari
O aluno em fase alfabetização é um sujeito
que, apesar de desco-nhecer o sistema da língua escrita, formula
uma série de conjecturas sobre a modalidade que está aprendendo,
baseando-se nas experiências de falante nativo.
Essas experiências, no entanto, variam de aluno para aluno
e ficam mais evidentes numa sala de primeira série do ensino fundamental
- afinal nem todas as crianças passaram por uma pré-escola
ou tiveram alguma ins-trução dada pelos pais.
Além disso, é relevante observar, como aponta Cagliari
(1998:63):
O ato de ensinar pode ser feito por um professor diante de alunos;
neste sentido, é um ato coletivo. A aprendizagem, porém,
será sempre um ato individual. Cada pessoa aprende por si, de acordo
com suas caracte-rísticas pessoais...
Muitos alunos, portanto, podem estar bem “atrasados”, em relação
aos demais, e é preciso atentar para suas dificuldades compreendendo
suas dúvidas, evitando, desta forma, que o descompasso torne-se
motivo de infe-rioridade, sinônimo de incapacidade para aprender
e, sobretudo, transforme-se num incentivo à evasão escolar.
Analisando os dados coletados (sob um enfoque lingüístico)
de uma primeira série municipal da cidade de Araraquara, a heterogeneidade
encon-trada revelou duas visões sobre o mesmo objeto - a escrita
- que demons-tram a evolução no processo de aquisição
dessa modalidade.
Antes de qualquer reflexão sobre os dados selecionados,
é impor-tante observar que não se trata de uma investigação
cujo interesse é desven-dar estágios ou níveis, mas
apenas uma análise de situações.
Trabalho A
Num primeiro momento, no caso A, o aluno Tiago demonstra uma
concepção sobre a escrita que, apesar de, aparentemente,
estranha, já evo-luiu muitas etapas, isto é, além
de saber que é com letras que se escreve e não com outros
desenhos quaisquer, também já faz a associação
do som à letra, pois procurou representar a frase - HOJE VIM NA
FESTA JUNINA - ordenado as letras conforme a pronúncia.
A forma, contudo, com que associa o som à letra
segue dois artifí-cios, que são usados pelo aluno simultaneamente,
no seu processo de escrita; e que demonstram a sua fase de transição.
Desta maneira, ora o aluno representa o som mais saliente no mo-mento
da silabação, utilizando, portanto, apenas uma letra, ora
também o uso da escrita já alfabética, ou seja, a
transcrição das consoantes e das vogais presentes nas sílabas
pronunciadas.
Analisando, primeiramente, a representação da sílaba
por apenas uma letra - resultado de uma escrita que só salienta
graficamente os elementos fonéticos mais relevantes - observa-se
que em OGVIMFTAGUA ora o aluno expressa apenas as vogais (oooo ge ge -
hoje, escrito OGE, ju ju ju naaaa - junina, escrito GUA) , pois prolonga
apenas o aspecto sonoro ao silabar, ora expressa só as consoantes
( ooo ge ge ge - hoje, escrito OGE, fe fe fe ta - dito “feta” e escrito
FTA), registrando apenas o aspecto articulatório do som ao silabar.
Neste modo de escrever, é interessante notar, como reforça
Cagliari (1998:74), que:
É curioso observar que essas crianças já conhecem
algumas rela-ções entre letras e sons. Sabem que A=A, O=O,
V=V, etc., mas optam por representar, na escrita, apenas aquilo que lhes
parece mais saliente do ponto de vista auditivo (vogais) ou articulatório
(consoantes).
Portanto, segundo Cagliari (1998:75):
Isso tudo mostra que, na verdade, são as maneiras como as crian-ças
analisam as saliências fonéticas que as levam a escrever do
jeito que fazem, só com vogais ou só com consoantes, e não
a simples atribuição de uma letra a uma sílaba.
Paralelamente a esse critério, o aluno também escreve
usando a es-crita alfabética, isto é, representa, através
de letras, cada segmento pronunci-ado; é o que nota-se na palavra
VIM e nas sílabas: TA de “feta” e GU de “junina”; nestes casos,
cada segmento foi representado conforme a sua es-trutura cv (consoante/vogal),
contudo, como afirma Cagliari (1999:75-76), sobre a escrita alfabética:
A simples escrita alfabética não passa de uma transcrição.
O nosso sistema de escrita, mais do que alfabético, é ortográfico...
A representação de consoantes e vogais serve apenas para
se observar a fala e ter-se uma orientação inicial para escrever
uma palavra. Depois, é preciso conhecer qual é a ortografia
da palavra e representá-la da maneira estabelecida.
Desta maneira, a utilização deste princípio pelos alunos em fase de alfabetização será um ponto de partida para, futuramente, adotarem a escrita ortográfica. Os alunos que já desenvolvem esse artifício escrevem exata-mente como falam, realizando verdadeiras transcrições fonéticas. É, justa-mente, o que acontece com o trabalho B:
Trabalho B
Nesta fase, o que se observa, na construção da aluna
Paula, é uma es-crita que apresenta os sons da palavra, usando consoante
e vogais. A aluna forma as sílabas escolhendo as letras conforme
o som representado por estas e não segundo a norma ortográfica
vigente.
É o caso, por exemplo, do uso da vogal u substituindo a consoante
l, cujo som, na posição de final de palavra, deixa de ser
a lateral /l/, como é comumente pronunciada no início de
palavras, e passa a /?/:
legal [le’ga?]
- especial [is’pesia?]
O resultado, portanto, é uma escrita que está errada
ortograficamen-te, mas, sob o ponto de vista dos sons pronunciados, está
correta e até pode-ria ser aceita, dada a coerência entre
som e letra, se não houvesse um padrão ortográfico
a ser seguido. Em outras palavras, como se trata de uma tentati-va de transcrição
fonética, a escrita da aluna revela que esta ainda concebe a escrita
do português como puramente alfabética, em que as relações
entre letras e sons são biunívocas e de um a um.
Enfim, o que deve ficar evidente nessas duas análises realizadas
é a importância da lingüística enquanto um instrumento
técnico para o conheci-mento e compreensão dos mecanismos
da aquisição da língua, fornecendo explicações
para a ocorrência de formas que não podem ser consideradas
simplesmente “erradas”, mas reflexo do processo de construção
do aprendiz do sistema de escrita que adquire.
Desta forma, ao considerar as explicações da lingüística
para a ocor-rência de formas aparentemente “estranhas” e “incompreensíveis”,
no pro-cesso de alfabetização, o professor chega a desvendar
o processo de cons-trução da escrita pelo aluno e acompanhar
o seu andamento, podendo, en-quanto mediador, fazer intervenções
mais adequadas ao momento em que se encontra o aluno na sua caminhada.
Referências Bibliográficas
CAGLIARI, Luiz Carlos. (1998) A respeito de alguns fatos do ensino
e da aprendizagem da leitura e da escrita pelas crianças na alfabetização.
In: Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas.
ROJO, Roxane (Org.). São Paulo: Mercado das Letras.
Bibliografia de Apoio
CAGLIARI, Luiz Carlos. (1989) Alfabetização e Lingüística.
São Paulo: Scipione.
CAGLIARI, Luiz Carlos. (1997) Análise Fonológica. Série
Lingüística, Vol. 1, Campinas: Edição do Autor.
FERREIRO, Emilia. (1987) Reflexões sobre alfabetização.
7ª edição. São Paulo: Cortez.
MASSINI-CAGLIARI, Gladis. (1997) O texto na alfabetização:
coesão e coerência. Campinas: Edição da Autora.