CAMINHOS E DESCAMINHOS DA TRADUÇÃO
Amarilis Gallo Coelho (UFRJ)
Nos caminhos e descaminhos da tradução, qual teria sido
a primeira vez em que precisei decodificar significados e conceitos até
mesmo dentro de minha própria língua? Sim, porque isto ocorre
a cada instante em nosso quotidiano, e geralmente nem percebemos. Teria
sido já na infância, quando ouvia com interesse e registrava
com curiosidade aquele jeito lusitano com que minha querida avó
tratava fatos do dia-a-dia? Ela utilizava com a natu-ralidade da
gente simples do campo, provérbios e outros ditos populares, cujo
sentido só aos poucos fui traduzindo, com o passar da vida e das
situa-ções familiares: “A pão de quinze dias, fome
de três semanas” - Este ditado era sempre empregado por minha avó,
quando queríamos, com teimosia, escolher o que comer e ela, sabiamente,
nos mostrava que a verdadeira fome não escolhe alimento.
Utilizei-o anos depois, com minha filha, na época com seis anos,
que não entendeu muito bem, mas aos poucos, assimilou seu sentido,
“traduzin-do”. Talvez vá utilizá-lo algum dia, quem sabe?
Pois a sabedoria contida nestas formas populares atravessa gerações
e não se detém diante da diversi-dade espaço-temporal.
São frases eternas, carregadas de experiência : “Se queres
bom conselho, pede-o ao velho” - Este era um dos preferidos da vovó
(enriquecido com um bom sotaque do Porto, é claro).
Vocês devem estar se perguntando sobre o motivo de tanta nostalgia.
É apenas uma forma de dizer que traduzir é algo que fazemos
desde sempre, a partir de pequenas coisas do dia a dia, desde que nascemos
e ouvimos as primeiras palavras ou identificamos os primeiros gestos ao
nosso redor.
A necessidade instintiva de compreender e nos fazermos compreendi-dos
nos impele a decifrar e fixar códigos todo o tempo, assim como uma
mãe, em contato constante com seu bebê, procura identificar
tipos de choro e ruídos ou “caretas” do pequenino para que possa
“traduzir” o que ele necessita. E com o passar dos meses e dos anos, aquele
bebê também reco-nhece na voz de seus pais os tons e as modulações
que o levarão a fixar e decodificar, e assim traduzir para assimilar,
a língua e as linguagens que o acompanharão a partir de então.
Após esta nostálgica introdução, devo esclarecer
que não sou uma tradutora no sentido específico da palavra,
apesar de estar sempre ligada, de uma forma ou de outra, a esta atividade
lingüística. Sou sim, uma investiga-dora, que pesquisa, analisa
e inventaria ocasiões felizes e menos felizes do processo tradutivo.
Acho mesmo que este meu pesquisar é um aprendizado, que desen-volvo,
observando quem faz, para quem sabe, um dia, ter a coragem de traduzir
e me arriscar às críticas, que certamente virão.
Toda magia e mistério que uma palavra pode conter impõe
muitas vezes a quem pesquisa, um aprofundado trabalho filológico,
e que seria uma primeira etapa da tradução. E isto me faz
recordar minhas primeiras aulas de Filologia Românica, e lá
se vão tantos anos... Certa vez, ao indagar da professora
a razão de ser da palavra grotesco , ela incitou-me à
pesquisa, dizendo que meu prazer seria maior se eu mesma a descobrisse.
E assim fiz. E partindo do português, visitando o grego, e depois
o latim, chegando ao italiano, e voltando ao português, lá
fui eu traduzindo uma palavra que me incomodava e até achava
“grotesca”, por não atentar com seu significado. Na volta ao passado,
no conhecimento de suas origens, encontrei sua razão de ser e a
tradução de sua beleza.
Não esperem que eu diga a quem por acaso não saiba, como
nasceu a palavra grotesco. Vou seguir o exemplo de minha Mestra e provocá-los
para o prazer da pesquisa.
Como pudemos ver, a tradução, muitas vezes, ocorre já
de LP para LP, ou seja, dentro da própria língua de partida.
Basta lembrar a dificuldade com que nos deparamos diante de determinados
registros profissionais ou classistas, que nos impõem códigos
a decifrar. Indo mais longe, a necessida-de de traduzirmos determinados
dialetos regionais ou locais para a língua padrão, em situações
específicas de confronto lingüístico dentro da mesma
área de língua italiana, por exemplo.
Diante de tantas provocações, no desejo de uma intimidade
cada vez maior com as palavras, venho andando cercada por radicais, prefixos
e sufi-xos, que fazem parte de minha vida, como um prazer curioso e constante,
que muitas vezes contagia. No meu dia-a-dia, as pessoas com quem convivo,
não só alunos e colegas, mas conhecidos em geral, a própria
família, esperam de mim, muitas vezes, a tradução
daquilo que parece à primeira vista intra-duzível, às
vezes em um idioma que não domino, imaginem! O compromis-so
da pesquisa cresce, a expectativa não é mais só minha,
e não é mais pos-sível deter-me nos caminhos e atalhos
que me levarão, fatalmente, a traduzir.
Portanto, estando a tradução, para mim estreitamente
ligada à pesqui-sa lingüística como um todo, assim como
às atividades de crítica textual, tornou-se desde cedo um
trabalho de análise do léxico em observação,
em textos orais e escritos, incitando-me a considerações
de cunho filológico, sociolingüístico e histórico-cultural.
Isto porque, um tradutor deve ser, antes de tudo, a meu ver, um pes-quisador,
que alcance os intra e extra-textos necessários à compreensão
de contextos envolvidos no corpus.
Aqui, o passado, não muito distante me alcança, e eu
recordo minha Dissertação de Mestrado em Lingüística
e Filologia, que versa sobre Tradu-ção. Entre outras obras
que servem de base a uma crítica textual detalhada, está
a tradução para o italiano da obra O Guarani (Milão:
1871) .
O trabalho realizado pelo tradutor Giacomo Fico denota a presença
do leitor respeitoso e grande pesquisador. E não poderia ser
diferente, me-diante as peculiaridades regionalistas da obra de José
de Alencar.
A análise por mim desenvolvida, em comparação
a outras traduções e outros tradutores visitados, não
encontrou realmente muito a comentar quanto a erros ou omissões,
a não ser quanto à adaptação do título,
Il Frate Avventuriere e la Vergine (O Frade Aventureiro e a Virgem), que
a meu ver supervalorizou a participação do antagonista, colocando
em segundo plano a figura do herói, Peri.
Tentei na época justificar a escolha pela dificuldade que os
leitores italianos teriam, por estar o nome próprio indígena
tão distante da realidade européia. Mas hoje me pergunto:
não seria possível manter o original, inclu-indo-se um subtítulo
que o esclarecesse e não fosse traída a importância
do dado sociocultural?
Outro ponto interessante foi a insistência do tradutor em não
obede-cer o original, que se referia ao antagonista em questão como
“o italiano”. Optou sempre pelo nome próprio, Loredano, acredito
eu, por motivos éti-cos, pois poderia causar ofensa à nacionalidade
italiana como um todo, por tratar-se de um vilão da pior espécie.
Deixando de lado estas escolhas, talvez não muito acertadas,
as solu-ções encontradas pelo tradutor-pesquisador foram
resultado inquestionável de uma incursão cuidadosa no léxico
da flora e da fauna brasileiras, contando inclusive com informantes de
além mar.
Outra ocasião divertida, mas preocupante, foi a leitura e posterior
análise da tradução para o italiano da obra
Angústia (Florença: 1954) , e a constatação
de cochilos, tais como mangue substituído, e não traduzido
por “mangueira”, caatinga, substituída, e não traduzida,
por “lixeira”, e tantos outros deslizes.
Mas vamos ser justos. E as traduções do italiano para
o português, como vão?
Posso citar um exemplo, entre outros: o contato com a obra de Carlo
Emilio Gadda, Quer Pasticciaccio brutto de via Merulana, traduzida com
o título Aquela confusão louca da Via Merulana ( Rio: 1982)
deixou-me no descaminho de quem espera uma solução para um
daqueles casos quase intraduzíveis, e não encontra.
Não quero dizer com isto que eu faria melhor, mas como pesquisado-ra
do repertório lingüístico italiano, em sua diversidade
e complexidade, esperava que o confronto língua-dialetos, utilizado
pelo escritor como indí-cio, mais que indício, constatação
do pastiche sociolingüístico na Roma de 1927, fosse transposto,
traduzido, em toda a sua carga de intenção e signifi-cados
para a língua de chegada.
A escolha do tradutor foi a tradução direta para o português,
sem o enriquecimento das notas de pé-de-página, que tanto
prazer oferecem aos leitores e estudiosos mais interessados. E as
formas dialetais diluíram-se no atalho, menos que caminho, da transposição,
menos que tradução.
Outros caminhos e descaminhos podem ser citados, como o contato com
as obras regionalistas de Deledda e Verga, entre outras. Durante as aulas
de literatura italiana ou em pesquisas mais avançadas, estas obras
ofe-recem inúmeras oportunidades para um confronto lingüístico-literário,
e isto é geralmente realizado com prazer pelos alunos, que
são sempre motivados pelo léxico regional e o espaço
mítico da Sicília e da Sardenha.
Contudo, diversas vezes, mostram-se necessárias, soluções
especiais que, em um processo de tradução, principalmente
dos textos verghianos, resolvam determinadas questões que envolvem
um estilo peculiar, como por exemplo: linguagem dos pescadores, ditos populares,
palavras de pouco uso no dia-a-dia do italiano atual.
Mas a dificuldade de traduzir não é um fato isolado,
e não diz res-peito somente aqueles que estejam ligados diretamente
às profissões de ensino e comunicação. Desde
um simples manual de funcionamento de ele-trodomésticos até
um animado chat (bate-papo) pela Internet, aquilo que parece de início
ser, não é; o significado das palavras flutua e é
necessária uma grande dose de curiosidade e comunicação,
para que aquela palavra traduza, ou seja, passe adiante, toda a carga de
valores, informações, senti-mentos e intenções
que deseja veicular.
Pobre tradutor, muitas vezes, a limitação nas fontes
de consulta o transformam por momentos em um cientista à procura
do elo perdido, em um trabalho, que como costumo dizer a meus alunos, é
quase de escavação arqueológica, e muitas vezes, em
terreno bastante árido.
Mas que terreno é este? Querem um exemplo? Em textos de léxico
e estrutura dialetal, não traduzir certos signos ambientais é
não traduzir 50% do estilo e da intenção temática
do escritor. E a bibliografia de apoio, como acessar? Sei por experiência
própria, que às vezes é bem difícil, por serem
obras bem específicas e caras. Mas é preciso traduzir, pois
não estaremos traduzindo apenas uma palavra, mas toda a história
e a geografia que a cer-cam.
E assim, vejo-me envolvida, sempre com o prazer deste contato, com
sons transcritos da forma como são emitidos, em uma sintaxe nem
sempre organizada, onde “radicais livres” se sucedem em palavras truncadas
sem a menor preocupação , deixando fluir aquilo que a língua
tem de mais vivo, a espontaneidade da expressão oral.
É esta vitalidade inerente às formas orais de expressão
que enriquece a língua de novos vocábulos, que convivem com
outros mais antigos, que mantêm seu valor expressivo e se ampliam
em significado, através de novos usos.
É esta ampliação de significados que favorece
a criatividade lingüísti-ca, e ao mesmo tempo, requer a cautela
daqueles que se dedicam ao trabalho de tradução. Um bom exemplo
disto é a obra literária do escritor Carlo Levi.
Por que citar Carlo Levi? Explico em poucas palavras: era escritor
meridionalista e pintor, envolvido com as dores e as cores do sul italiano.
Na obra Cristo si è fermato a Eboli , escritura e pintura
se confundem, durante dois anos de exílio, por motivos políticos,
no sul italiano.
Palavras, cores e formas se misturam, em uma produção
pictórico-literária, que já se tornou também
filme , e que desperta o interesse, pelo caráter descritivo da língua
e das linguagens, carinhosamente trabalhadas pela sensibilidade do artista
e eternizadas pelo respeito daqueles que o valo-rizam, nas três formas
de expressão: literária, pictórica e fílmica.
Após ter sido o tema de minha Tese de Doutorado, a obra de Carlo
Levi em geral, em sua narrativa e textos poéticos, continuou sendo
material amplo e valioso para pesquisas lingüístico-literárias.
No momento, desenvol-vo uma análise que envolve os métodos
utilizados na tradução para o por-tuguês
de Cristo si è fermato a Eboli, que recebeu com fidelidade o mesmo
título Cristo parou em Eboli.
Durante as leituras dos textos levinistas, sempre ficava a curiosidade
de um dia pesquisar como seria feita a tradução, principalmente
desta obra. E me perguntava: como conseguiria o tradutor, principalmente
não sendo pintor, alcançar as sutis nuances de cor ou o concretismo
das palavras, que se distribuem organizadamente em seus textos, como formas
e cores, luzes e sombras em suas telas?
Como traduzir todo o lirismo daquelas imagens? Como não trair
a emoção mágica que move tantas palavras e tantos
símbolos: o negro de luto que envolve o espaço narrado, nos
olhos e nas roupas; o amarelo das faces marcadas pela malária; o
branco de aridez do solo, o verde que falta e que quando ocorre, parece
caído por acaso de algum outro lugar, como o pró-prio Levi
descreve: “Sobre as argilas brancas, as pequenas manchas de verde, espalhadas
aqui e ali, brilhavam ao sol, ainda mais intensas e mais estranhas, como
gritos.”
Críticas? Realmente ainda não as tenho, pois estou no
início deste novo caminho. Apenas um detalhe aqui, outro ali, que
por respeito e solida-riedade ao tradutor (a solidariedade é uma
constante em Carlo Levi), analiso com cuidado, antes de atirar pedras.
E falando de pedras, para Levi, a pala-vra pedra pode ser traduzida, entre
outras opções de significado, por “pala-vra”.
Por enquanto, entre formas e cores, pedras e palavras, vou lendo e
analisando, com a mesma tranqüilidade com que Levi admirava o pôr-do-sol,
antes de poder traduzi-lo com suas letras e tintas.
Assim, para terminar, lembro-me outra vez de minha avó e seus
pro-vérbios: “Antes que conheças, não louves, nem
ofendas” ou ainda “Entende primeiro e fala derradeiro”.