COMPARAÇÃO DA ESTILÍSTICA FÔNICA DE MOTIVO,
DE CECÍLIA MEIRELES E POÉTICA, DE VINÍCIUS DE
MORAES
Alessandra Almeida da Rocha (UERJ)
POÉTICA
De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo
A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.
Outros que contem
Passo por passo
Eu morro ontem
Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
-Meu tempo é quando.
MOTIVO
Eu canto porque o instante existe
E a minha vida está completa
Não sou alegre e nem sou triste:
Sou poeta.
Irmão das coisas fugidias
Não sinto gozo nem tormento
Atravesso noites e dias
No vento.
Se desmorono ou se edifico,
Se permaneço ou me desfaço
-Não sei,não sei se fico
Ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
-Mais nada.
Neste artigo, vamos estudar a estilística fônica
de Cecília Meireles, em seu poema Motivo e de Vinícius de
Moraes, em seu poema Poética, observando as semelhanças e
diferenças de cada autor e a influência estilística
de seus textos para os estudiosos de Língua Portuguesa.
No primeiro verso do primeiro quarteto do poema Motivo
temos o uso repetido da oclusiva /t/ e que nos transmite a afirmação
do “eu” lírico em existir, mas cantando, o fonema /t/ nos lembra
a batida contínua em um instrumento, como um bumbo, lembrando a
sua vontade de viver. Neste verso temos uma aliteração
(repetição de um mesmo som consonantal ) do fonema
./t/.
É interessante observar que ainda neste mesmo verso, o “eu”
lírico utiliza as vogais semi-fechadas /e/ e /o/
e a vogal fechada /i/ dão uma idéia de melancolia e sua duração,
presentes na difícil arte de existir.
No segundo verso do mesmo quarteto vemos uma assonância (repetição
de mesmo som vocálico) das vogais abertas /E/ e /A/, dando a impressão
que o “eu” lírico se anima um pouco em viver e a presença
das oclusivas /t/ , /d/ e /p/ reafirma a musicalidade presente no
verso anterior.
No terceiro verso desta estrofe há uma antítese entre
“alegre” x “triste” entretanto ao colocar as palavras “não”
e “nem” dá um tom de indiferença, mas a melancolia
persiste com o uso das consoantes semi-abertas /o/ , /e/ e as vogais
fechadas /u/ e /i/.
O “eu” lírico se contenta em ser apenas poeta, como afirma no
quarto verso deste quarteto.
Analisando este primeiro quarteto de forma global vemos a existência
de um homoteleuto entre as palavras “existe” (1o verso ) e “triste” (3o
verso) , como que nos disséssemos que a sua existência é
triste. E outro homoteleuto entre “completa” (2o verso) e “poeta”
(4o verso) , interpretamos que o “eu” lírico só se completa
como poeta.
Outro fato é o uso dos verbos “existir” e “ser” mostrando o
tom existencialista de Cecília Meireles.
No segundo quarteto do soneto, em seu primeiro verso há assonância
dos fonemas /a/ , /i/ , /o/ e a presença
do fonema /s/ , ocorrendo uma aliteração, lembra a
passagem do tempo, de forma rápida, como um vento, como o “eu” lírico
diz.
No segundo verso deste quarteto, ele reafirma sua indiferença
usando, novamente, as palavras “não” e “nem”. Há, também,
assonância de /e/ e /o/ e a aliteração da oclusiva
/t/ ; existe uma antítese entre gozo x tormento.
Na terceira estrofe do quarteto há a antítese entre as
palavras “noites” x “dias” e o verbo
atravessar, conjugado na primeira pessoa do singular, dá-nos a impressão
que o “eu” lírico faz isso constantemente , de maneira bem calma,
como que já fosse habitual essa passagem, reforçado pela
aliteração da fricativa /s/ e , novamente, assonância
das vogais /a/ , /e/ e /o/ .Também, é válido observar
a rima feita entre “fugidias” (1o verso) e “dias”(3overso), dizendo que
os dias passam rápido, assim como “tormento” (2o verso) e “vento”
(4o verso) , como se os tormentos de nossas vidas passassem como o vento,
velozmente.
No primeiro verso do primeiro terceto vemos a alternância
de atitudes representados pelo conectivo “ou”, aliados a duas condições
expressas pelo “se”, acompanhadas pelas palavras “desmorono” e “edifico”,
havendo uma antítese, deixando uma dúvida no verso. Continua
a ter a assonância de /e/ , /o/ e /i/ e aliteração
de /d/.
No terceiro verso a dúvida com relação a sua existência
permanece na repetição da expressão “não sei”.
Ocorre uma antítese entre as palavras entre as palavras “fico” (3o
verso) e passo (4o verso) , onde a transitoriedade da vida, mais uma vez,
é questionada. As palavras “fico” (3o verso) e “edifico” (1o
verso) estão rimando e nós podemos pensar que, enquanto vivemos,
edificamos na terra alguma coisa, de ordem espiritual ou material, mas
quando “passamos”, tudo se defaz , como observamos na rima que acontece
no segundo e quarto versos.
No último terceto do soneto, primeiro verso, há aliteração
da oclusiva /K/, lembrando um toque de som, um ritmo, como ele afirma,
quando eterniza a música, a canção e a assonância
da vogal /a/ transmite uma alegria do “eu” lírico por saber tal
fato.
No segundo verso vemos a afirmação que espírito
e música são eternos, sendo expresso pela assonância
dos fonemas /e/ e /a/ e aliteração das oclusivas /m/ e /n/
indica essa duração, de sua obra e não de sua vida
terrena: como afirma no terceiro verso, com o uso de aliterações
de /d/ e /t/ e, também, /m/ e assonâncias das vogais fechadas
/i/ , /u/, vogais semi-fechadas /e/ e /o/ indicando uma mistura de tristeza
e constatação da chegada da morte, como coisa certa , observado
no último verso deste terceto. Existem as rimas entre “mudo” e “tudo”,
afirmando que todos, sem excessão, ficaremos mudos e “nada” e “ritmada”,
onde a música que muitos consideram desnecessária, será
e é eterna, como o espírito.
No primeiro quarteto do soneto de Vinícius de Moraes já
há o surgimento de uma anáfora, a repetição
da palavra “de” no início de cada verso deste quarteto.
O primeiro verso do primeiro quarteto vemos uma antítese
entre “manhã” x “escureço” e a vogal nasal /ã/ e as
vogais semi-abertas /e/ e /o/ dão uma idéia de melancolia
permanente.
No segundo verso vemos uma aliteração de /d/ na frase
“De dia tardo”. A oclusiva /t/ dá uma quebra leve na aliteração
e mostra uma mudança rápida na situação,mostrando
o estado de espírito do poeta,presente na antítese “dia”
x “tardo”, demostrando um atordoamento, que está presente em todo
o poema.
No terceiro verso vemos aliterações de /d/ e /t/ e assonâncias
de /a/ , /e/.E no quarto verso aparecem assonâncias de /d/ e /o/
mostrando a duração de sua confusão existencial.
Neste primeiro quarteto é bom observamos as rimas em “eço”,
nas palavras “escureço” (1o verso) e “anoiteço” (3o verso)
havendo um homoteleuto e “ardo” (4o verso) que está rimando e inserido
dentro da palavra “tardo” (2o verso) e há ,também, uma anominação
entre as palavras “tarde” x “tardo”.
No segundo quarteto no primeiro verso, há assonância /a/
, /e/ , /o/ e aliteração da oclusiva /t/ . Na palavra “morte”,
o /r/ representa um obstáculo e , neste caso, insuperável
não só para o peta como para nós todos.
No segundo verso, a nasalisação de /e/ , /o/ ,
nas palavras “contra” x “quem” acentua o seu conflito que é difícil
de superar , representado pelo /r/ em “contra”.
No terceiro verso, as vogais /i/ e /u/ mostram a continuidade da tristeza
do “eu” lírico. Observamos isso, também, pelo aparecimento
do /l/ após o /u/ , na palavra sul. No quarto verso há assonâncias
do /e/ e /o/ e a aliteração do /t/ nos dando uma idéia
de batida, de um ruído que não sai da cabeça do “eu”
lírico / poeta .
É interessante observarmos os homoteleutos existentes em “norte”
/ “morte” e “vivo” / “cativo” . Outro ponto, deste segundo quarteto,
é o jogo que ele faz entre “A oeste” (1o verso) e “O este” (4o verso)
, que acabam por ter o mesmo som e o mesmo significado.
No primeiro terceto do soneto, o poeta rima “contem” (1o verso) com
“ontem” (3o verso). No segundo verso, deste terceto, a repetição
do fonema /s/ em “passo” , temos a impressão deste movimento acontecer
e de forma lenta. E acontece rima no segundo terceto, segundo verso, com
“espaço”, como se o “passo”, o andar, a procura do poeta se perdesse
definitivamente.
No segundo verso, do primeiro terceto, há uma aliteração
de /p/ e uma assonância de /e/ e /o/.
No segundo terceto, no primeiro, verso ocorre assonância
de /a/ demonstrando uma esperança de mudança do estado do
poeta.Vemos a rima que acontece entre “nasço” (1o verso) e “espaço”
(2o verso). No segundo verso vemos a assonância de /a/ , /o/ , /e/
. Há a presença de vogais nasais mostra a melancolia que
segue o poeta desde o início até o fim, além das vogais
orais /o/ , /e/ que reafirmam esta condição.
No último verso existe assonância de /e/ , /o/ e a palavra
“quando” fecha o poema com uma interrogação, uma dúvida
se a vida mudará ou não. E essa dúvida é percebida
no fonema /d/ , que quebra um pouco a melancolia, encerrando, assim, os
questionamentos do “eu” lírico / poeta, abrindo uma luz no fim do
túnel, uma esperança para o amanhã.
Cecília Meireles em Motivo e Vinícius de Moraes em Poética
trabalham o mesmo tema, a transitoriedade da vida, a presença da
morte e a dúvida sobre a existência. O dois, entretanto, afirmam
que a obra produzida é eterna, assim como a música e o poema.
É interessante ressaltar a contemporâniedade de ambos e a
educação religiosa que receberam, pois aparece nos poemas
estudados.
Em relação a estilística fônica, os dois
utilizaram de assonâncias, principalmente das vogais /a/ , /e/ ,
/o/ , aliterações das oclusivas /t/ , /d/ . Entretanto, Cecília
Meireles faz muito o uso das vogais /i/ , /u/ para acentuar a sua
tristeza, traço característico de sua obra, e o uso insistente
das oclusivas /t/ , /d/ para mostrar a musicalidade presente no poema,
outro traço importante da autora. Vinícius, neste poema,
não tem intenção de mostrar ou produzir a música,
como faz a poetisa.
Nos dois poemas em questão existem antíteses, sendo que
em Motivo, ela aparece nele inteiro,feito intencionalmente pela autora,
lembrando essa passagem de tempo e em Poética , o autor brinca com
as “combinações das palavras”, muitas delas aparecem no meio
de outras, querendo destacar fatos que acontecem da mesma maneira em nossa
vida.
Outro fato a observar é que nos dois poemas a palavra “passo”,
aparece com significado diferente. “Passo”, em Motivo significa o passar
do tempo e em Poética significa contar cada parte perfeitamente.
Vemos, também, como os poemas são encerrados. Em Vinícius,
o poeta deixa uma esperança para o dia de amnhã, enquanto
Cecília aniquila, de maneira racional, essa mesma esperança
sobre o futuro.
Pudemos observar, neste artigo,que Vinícius e Cecília
utilizaram de assonâncias das vogais semi-abertas /e/ , /o/ , para
transmitir tristeza, melancolia sobre a existência, de aliterações
entre as oclusivas /t/ , /d/ para indicar um movimento, uma passagem de
uma vida para outra.
Outro recurso utilizado, por ambos, é a antítese, mostrando
a dúvida existencialista do ser humano, que não sabe qual
será o seu destino.
Sabemos que Cecília Meireles em seus poemas tematiza a transitoriedade
da vida, a passagem de tempo, a eternização da alma, como
ocorre em Motivo e que Vinícius de Moraes, o amor sensual e seu
término, em sua grande maioria.Entretanto, por ter uma educação
jesuítica, Vinícius fala em Poética sobre a transitoriedade
da vida, assim como Cecília.
Na verdade, os dois poemas Motivo e Poética se completam em
seu tema existencialista e no uso dos mesmos recursos fonéticos,
fazendo com que as duas obras se aproximem em todos os sentidos.
BIBLIOGRAFIA
MORAES,Vinícius. Literatura Comentada. Ed. Abril. São
Paulo, 1980.
MEIRELES,Cecília. Literatura Comentada. Ed. Abril. São
Paulo, 1980.
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. Ed.
Cultrix;3a edição. São Paulo, 1994.
CUNHA,Celso; CINTRA,Lindley. Nova Gramática do Português
Contemporâneo. Edições João Sá. Lisboa,
1994 (capítulo sobre Fonética e Fonologia).
MONTEIRO,José Lemos. A estilística. São Paulo:
Ática, 1991.
COELHO, Nelly Novaes. Literatura e Linguagem. São Paulo: Quiron,
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