CONSIDERAÇÕES SOBRE UM DOCUMENTO NOTARIAL SÉCULO XVIII DA COMARCA DE SANTO AMARO DA PURIFICAÇÃO RELATIVO A INVENTÁRIO DE BENS.
Arlete Silva Santos (UFBA)
O manuscrito é um grande revelador. Mostra-nos uma época,
um fato histórico e a escrita de um período. É, pois,
uma memória viva. Vai aparecendo discretamente, fornecendo-nos novos
dados, incitando-nos a uma busca constante; fala tão alto que é
difícil saber se nos voltamos para a sua história, para seus
fatos lingüísticos ou para seu conteúdo.
O manuscrito de notação M2C1, TOM 0811-0842, CRO, datado
de 30...1730-02-III-1763 trata de um inventário dos bens de Antonio
Gomes de Souza. Ele nos faz voltar no tempo e rever um pouco da história
da Bahia colonial até l770.
1. Breves considerações sobre a Bahia Colonial
No período colonial instituiu-se na Bahia as sesmarias, uma
velha forma de ocupar a terra e fazê-la produzir. Os sesmeiros tinham
direitos semelhantes aos dos donatários. Grandes proprietários
se fizeram às custas das sesmarias. Além das sesmarias, da
doação, da compra, a posse foi a forma mais direta de propriedade
de terra.
As atividades produtivas da grande lavoura ajudaram a formar, na Bahia,
uma sociedade hierarquizada dos produtores (proprietários de engenhos,
fazendas, plantações e escravos), dos lavradores, dos proprietários
de terras, dos lavradores sem terras, dos funcionários da coroa,
dos comerciantes e dos oficiais mecânicos (mestres, oficiais e aprendizes).
O senhor da propriedade atuava como um grande administrador, governava
o engenho e tudo o que a ele estivesse ligado.
A economia colonial na Bahia caracterizava-se pela exportação
agrária e baseada no trabalho escravo. Desenvolveu-se, entretanto,
de forma variada e complexa permitindo alternativa de produção
que a conduziram ao apogeu na 2ª metade do século XVIII. Exportava-se
açúcar, fumo, algodão, ouro, sola, aguardente, farinha
de mandioca, e o Recôncavo era responsável pela produção
de cana-de-açúcar. Nesse período já existiam
linhas de comércio interno de Salvador para o Recôncavo, do
Recôncavo para Salvador e do Recôncavo para o Sertão
e Sudoeste, apesar da política do pacto colonial que gerou
entre os colonos e a metrópole conflitos anticoloniais.
Na 2ª metade do século XVIII, com as alterações
das capitanias, a Bahia já era descrita compreendendo quatro comarcas:
Bahia, Recôncavo, Sertão de Baixo, Sertão de Cima
Viviam na Bahia os senhores de Engenhos Reais de forma opulenta como
afirma Antonil em sua obra . Ser senhor de engenho era título cobiçado,
pois o senhor era obedecido e respeitado por todos, principalmente se possuísse
cabedal.
Os engenhos possuíam caldeiras, tachas, bacias e outros objetos,
todos de cobre; possuíam senzalas, morada para o capelão,
feitores, mestres, banqueiros, caixeiros, uma capela, casas para o senhor
do engenho, oficinas, casa de purgar o açúcar, alambique
e outras coisas mais. O engenho lembra uma pequena cidade e a sua estrutura
funcional apresentava aspectos interessantes, havendo entre os senhores
de engenho semelhança na definição das tarefas dos
seus subordinados assim como nas remunerações, a exemplo
do Capelão, o primeiro a ser escolhido, que era responsável
pelo ensino da vida cristã, doutrinava os escravos e suas famílias,
dizia as missas na capela do engenho, abençoava a safra e por esse
trabalho recebia em torno de quarenta ou cinqüenta mil réis
por ano e mais outras coisas que a ele se oferecia pelos seus serviços,
considerados relevantes. O feitor que coordenava, dava ordens aos escravos
e informava ao senhor sobre todas as ocorrências, recebia sessenta
mil réis, se fosse feitor mor; caso fosse feitor da moenda recebia
quarenta ou cinquenta mil réis quando havia processo de moagem,
quando não, ele fazia outros serviços e recebia trinta
mil réis. O mestre fazia o açúcar e recebia cento
e trinta mil réis. O purgador que procurava o barro que era utilizado
no jirau em que o açúcar secava, recebia cinquenta mil réis.
O caixeiro do engenho que recebia o açúcar, encaixava, mandava
para o trapiche, vendia ou embarcava recebia quarenta ou cinquenta mil
réis. Havia no engenho caldeireiros, tacheiros, ajudabanqueiro (que
substituíam os caldeireiros e os tacheiros) e também eram
remunerados. Aos escravos que ajudavam na casa ofereciam-se algum mimo,
se servissem com satisfação.
Os escravos, como se observa, eram os pés e as mãos dos
senhores de engenho que nada faziam sem eles, por isso a cada ano se compravam
mais “peças” que vinham de diversas nações: Ardas,
Minas, Congos, São Thomé, Angola, Cabo Verde, e alguns de
Moçambique. Os Ardas e os de Minas eram os mais robustos; entre
os Congos havia uns bons não só para o serviço da
cana, como também para oficinas e trabalhos de casa. Melhores para
qualquer serviço eram os mulatos, todavia eram considerados soberbos
e achavam-se valentes “aparelhados para qualquer desaforo” .
A casa do senhor de engenho reproduzia a hierarquia social. No andar
superior ficava o senhor e sua família, no nível do solo
ou abaixo a sua escravatura. Possuir escravo na Bahia colonial não
era somente capital, braço, era título, dignidade.
Pela quantidade de escravos media-se a importância do colono. Apesar
da grande opulência dos engenhos, no século XVIII os inventariantes
da Bahia já registravam que o interior de algumas casas revelava
vida modesta. Nas paredes encontravam toscos pratos de cobre ou madeira
com imagens sacras. Em cômodos menores havia um sofá, um par
de escabelos e um crucifixo.
Na Bahia do século XVIII era grande o contraste entre a vida
religiosa e a desmoralização dos costumes. As mulheres brancas
foram tomadas de misticismo extremo e os homens contagiados pela senzala.
Foi no Recôncavo baiano, revestido de verdes canaviais, ricos engenhos,
belas igrejas onde viveram os grandes possuidores de engenho, senhores
poderosos, alguns de trato distinto, outros, porém, rudes e aventureiros.
Muitas eram as freguesias do Recôncavo, é de interesse
deste trabalho a de Santo Amaro da Vila de Nossa Senhora da Purificação.
Sabe-se que Men de Sá, 3º governador do Brasil, foi considerado
o conquistador do Recôncavo, que destruiu e desbaratou mais de trinta
aldeias indígenas. Santo Amaro foi parte do Engenho Real de Seregipe,
construído por Men de Sá, em 1563. Em 1716, o vice-rei do
Brasil, D. Pedro de Noronha viajou pelo Recôncavo e ficou impressionado
com o desenvolvimento de Santo Amaro a ponto de pedir ao Rei D.João
para elevá-lo à categoria de Vila, o que ocorreu em 05.01.1727,
através de Vasco Fernandes César - Conde de Sabugosa , o
vice-rei que mais mandou ouro para Portugal. Infelizmente, de 1727
a 1798 pouco se sabe sobre Santo Amaro face ao desaparecimento dos Livros
das Atas do Senado da Câmara .
São citados no inventário os nomes daqueles que
foram nomeados para Vila de Santo Amaro: José Pinheiros de Leiros
de Araújo - Escrivão de Almotaçaria - nomeado em 04.03.1727;
Caetano da Silva Freire - Escrivão de órgãos - nomeado
em 26.04.1727; Manuel da Cunha Aranha - 2º requerente de causas -
nomeado em 20.09.1727; Manuel Ferreira da Rocha - Alcaide da Vila
- nomeado em 22.04.1728.
No século XVIII, estendendo-se até o início do
século XIX os bens, passavam aos herdeiros legítimos até
o décimo grau de parentesco. A lei reconhecia dois tipos de sucessão:
a testamentária e a ab intestato (ou legítima – tratava dos
casos em que o falecido não deixava testamento). O inventário
dos bens de Antônio Gomes de Souza é um caso de sucessão
ab intestato e observa-se a citação clara de credores e legatários
conforme costume da época, bem como a revelação do
nível social da família, a média de filhos e o cabedal
da família. Ficou claro também as dificuldades para conclusão
de documentos desta natureza, uma vez que o inventário teve início
em 1730 e em 1763 não tinha sido concluído.
2. Critérios para a transcrição do documento
A transcrição do documento em questão tomou por
base as normas da edição diplomática aprovadas em
1993 .
A marca de nasalização, til ou m, a acentuação,
a pontuação original, as maiúsculas e minúsculas
foram mantidas. A ortografia foi conservada na íntegra, não
se efetuando qualquer mudança. Por se tratar de um documento notarial,
manteve-se fólio por fólio as repetições, pois
esta técnica servia para evitar interpolações, fraudes
e extravios do fólio. Quando a leitura paleográfica foi duvidosa,
colocou-se uma interrogação entre colchetes depois da mesma
[?]. As palavras que não puderam ser lidas foram indicadas entre
colchetes [ilegível]. As palavras que se apresentaram parcial ou
totalmente ilegíveis, mas cujo sentido textual permitia sua reconstituição,
foram colocadas entre colchetes. As notas de mão alheia foram conservadas
no manuscrito por se tratar de fato comum entre documentos notariais. As
assinaturas em raso ou rubricas foram transcritas em grifo. Indicou-se
os sinais públicos entre colchetes e em grifo [sinal público].
Os selos, sinetes, lacres, desenhos, etc., foram indicados de acordo com
a sua natureza entre colchetes. Separou-se as palavras grafadas unidas
e uniu-se as grafadas separadamente. As abreviaturas foram desenvolvidas
com o auxílio dos parênteses.
3. Descrição do manuscrito
O inventário dos bens de Antônio Gomes de Souza,
possui 45 fólios, 13 dos quais apenas recto e 16 recto e verso,
faz parte da coleção de Santo Amaro da Purificação
sob a guarda do Departamento de Fundamentos para o estudo das
Letras desde 1975, quando ficou aos cuidados do Setor de Filologia Românica
da Universidade Federal da Bahia. Esta coleção possui 3.084
documentos notariais e 286 documentos relativos à Instrução
Pública da Bahia.
A Coleção de Santo Amaro foi catalogada, dividindo-se
os períodos históricos:
Brasil-Colônia até 1763; Brasil-Colônia de 1763
– 1808; Brasil Vice-Reino – 1808-1812; Brasil 1º Império –
1812-1840; Brasil 2º Império – 1840-1889; Brasil República
a partir de 1889.
Faz parte da coleção de documentos notariais: alvarás,
cartas precatórias, notificações de embargos, despachos,
requerimentos, inventários, intimações, penhoras,
sentenças.
O manuscrito M2C1 foi escrito em papel almaço, de cor amarelada
pelo tempo, com dimensões de 310mmX 220mm. Está grafado em
tinta amarronzada proveniente, talvez da descoloração da
tinta preta, que a ação do tempo pode ter desbotado. Estrutura-se
em coluna, cuja mancha escrita ocupa todo o centro do papel, exceto nos
fólios 01r, 12r, 25r, 26r e 27r, que ocupa o centro e uma pequena
parte mais à esquerda.
Os documentos que fazem parte do manuscrito encontram-se estragados
pela ação do tempo. Na mancha escrita observam-se pequenos
orifícios e manchas que geraram algumas dificuldades na leitura.
As partes superiores e inferiores apresentam-se danificadas, como se tivessem
sido queimadas, embora não comprometessem a compreensão total
do manuscrito. Os fólios apresentam-se manchados como se tivessem
sido molhados, trazem assinaturas e ou rubricas em quase todos, exceto
2r/v, 3r/v, 4r/v, 5r/v. A mancha escrita apresenta diferentes dimensões
em cada fólio, seis caligrafias e cerca de 280 abreviaturas (contração,
suspensão e letra sobreposta).
Por se tratar de um documento notarial registra, nas situações
de erros do escrevente, a expressão digo, como expressão
retificadora. Em alguns fólios aparece o reclamo sinalizando
a continuação do texto.A marca d’água é também
freqüente neste manuscrito, encontrando-se, pelo menos, dez tipos
diferentes em 22 fólios.
Na maioria dos fólios, no final da mancha escrita, aparece uma
linha em toda a extensão horizontal, marcando o encerramento do
texto. Quando a escrita não vai até o final da coluna ora
usam-se traços para complementá-la, ora duas barras verticais
( ___ //). Nos fólios que tratam das relações dos
bens do casal aparecem à esquerda um sinal indicando que houve conferência
dos itens e à direita um sinal indicando a moeda, seguido dos valores.
Os documentos ora apresentam a rubrica de quem os assina, sendo difícil
a identificação, ora apresentam apenas o sobrenome e na maioria
das vezes de forma abreviada.
O manuscrito não é pontuado nem acentuado, também
não há uniformidade na grafia e na utilização
das abreviaturas, muitas vezes determinadas pelo escrevente que não
era o mesmo, como é demonstrado a seguir:
fo 06v linha 18 dephunta fo 08r linha 14 defunta
fo 02r linha 03 certidão fo 08v
linha 09 sertidam
fo 18v linha 03 sertifico fo 07r linha 14
certifico
fo 01r linha 03 coatro
fo 03r linha 07 quatro
fo 02r linha 15 chita
fo 18r linha 16 xita
fo 02r linha 03 aratório fo 16r
linha 25 oratório
fo 01r linha supplicante fo 12r linha 03 suplicante
Arha ___________ Ar(an)ha
Arra ___________ Arr(anh)a
Do ____________ D(it)o
Dto ____________ D(i)to
Partª __________Part(ilh)a
Parta __________Part(ilh)a
Herdro ________ herd(eiro)
Herdro _______herd(ei)ro
Aparecem ainda expressões que fazem parte do discurso jurídico,
inerente ao texto:
fo 06v linha 14 curador;
fo 12r linha 12 partilha;
fo 22r linha 18 e 19 sobrepartilha;
fo 06v linha 02 termo de juramento;
fo 24r linha 18 pelo ratta;
fo 7r linha 11 citação do curador
O sinal que marca a nasalização das palavras assemelha-se
a um S sobreposto por um V maiúsculo. Constata-se também
que ora as palavras recebem am ora recebem ão. Ex.: Avaliasam/avaliasão.
As letras maiúsculas são usadas no início
do texto ou em nomes de pessoas ou lugar, porém sem muita regularidade.
Ex.: fo 08 r linhas 02e03 vila de nosa Senhora da purificaçam
de santo amaro; fo 08 linha 12 Joseph da costa queiros.
Observa-se a presença de várias grafias para o S. Dois
apresentam-se no início das palavras. O primeiro é longo
com uma pequeníssima curva nas extremidades; o segundo possui uma
espécie de espiral na parte anterior, prolongando-se para cima de
forma levemente curva. O S final é sempre ligado à letra
anterior, eleva-se ligeiramente e uma parte curva é puxada para
baixo. O S medial é também ligado à letra anterior,
elevado um pouco acima da linha, puxado para baixo, tomando parte da linha
posterior.
4. De que trata o documento
O manuscrito M2C1, TOM 0811-0842 CRO Inventário de Antônio
Gomes de Souza traz o seguinte teor:
? A primeira parte trata da abertura do inventário em que se
declara que a esposa do suplicante, Maria Ferreira, por falecimento lhe
deixou quatro filhos menores de vinte e cinco anos, razão porque
se faz o inventário (fo1).
? Segue-se a relação dos bens separando-se objetos de
prata, cobre, móveis, objetos pessoais, animais e escravos; logo
após aponta-se as dívidas do casal; (fo2 r/v;3 r/v; 4 r/v;
5 r).
? Termo de citação do Escrivão Caetano da Silva
Freire de 30 de março de 1730. (fo5v).
? Nomeação do curador dos menores e o termo de juramento
(fo6r).
? Termo de juramento do curador (fo6v e 7r).
? Citação do curador (fo7r).
? Notificação do Dr. Joseph de Praga de Vasconcellos
Juiz dos órfãos (fo8r).
? Certidão passada por Joseph da Costa Queiros (fo8v).
? Avaliação a peso de ouro e prata da defunta Maria Ferreira
(fo9r).
? Documento do síndico Joze Gonçalves Lisboa confirmando
ter recebido 5.000 de esmola ... (fo10r).
? Despesas com a morte da defunta Maria Ferreira (fo11r).
? Documento em que se justifica a partilha (fo12r)
? Recibo passado para Antonio Gomes de Souza (fo13r)
? Documento em que se nomeia os partidores públicos do conselho
(fo14r/v)
? Ato da partilha que se fez dos bens que ficaram da defunta Maria
Ferreira (fo14v, 15r/v, 16r/v, 17r/v, 18r/v, 19r/v).
? Termo de conclusão (fo19v e 20r).
? Documento em que Pedro Ferreira, caixeiro do engenho de D. Maria
Ribeira de Andrade declara a safra (fo21r).
? Sobrepartilha dos bens que haviam ficado da defunta Maria Ferreira
(fo22r).
? Quinhão do inventariante cabeça do casal (fo22v).
? Quinhão do herdeiro Bertholomeu e da herdeira Antonia (fo23r).
? Quinhão da herdeira Marianna e do herdeiro Joseph (fo23v).
? Autos do escrivão Caetano da Silva Freire, julgamento da sobrepartilha
(fo24r).
? Documento em que se pede sentença formal de partilha (fo25r
e 26r).
? Documento em que se pede sentença formal de partilha (fo27r).
? Termo em que se declara que foram entregues os autos. Documento encaminhado
ao senhor Juiz dos órfãos (fo27v).
? O escrivão vem a juízo dar conta dos bens na partilha
(fo28r).
? Alexandre Pinto dirige-se ao Juiz dos órfãos para informar
sobre uma diligência que confirma que o cabeça do casal já
é falecido (fo28v).
? Termo de conclusão em que se confirma 23 anos do inventário
e a morte de Antonio Gomes de Souza (fo29r).
5. Considerações finais
A pesquisa em andamento ora apresentada nesta comunicação,
ainda um tanto frágil, poderá sofrer alterações,
principalmente no que se refere às normas de transcrição
do documento.
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