MANUEL DA COSTA: UM POETA DA RENASCENÇA

Alice da Silva Cunha  (UFRJ)

 Os ideais de uma nova era , preconizados pelo movimento humanista do Renascimento, cujas origens acham-se vinculadas a Florença, encontram ressonância em toda a Itália e, posteriormente, em toda a Europa.  A introdução  do Humanismo em Portugal, segundo estudos realizados pelo Doutor Costa Ramalho, data de 1485, ano mais provável da chegada de Cataldo Parísio Sículo, considerado  introdutor  do Humanismo em terras lusas.  Verifica-se que, em relação aos demais países europeus, o movimento humanista atingiu o território português, em época mais tardia, no entanto é possível detectar, nas obras produzidas durante esse período, influências advindas de uma nova mentalidade, fruto inegável dos contatos filosófico-culturais que nortearam o pensamento na Renascença.
 O movimento humanista fundamenta-se no culto das "belas letras", ou seja, retoma os modelos da  Antigüidade Clássica consagrados como parâmetros ideais de elaboração artística.  O "retorno' às fontes de inspiração clássica manifesta-se também a nível lingüístico, uma vez que grande parte dos autores engajados no citado movimento utilizou o latim como forma de expressão de suas obras literárias, daí serem designados novilatinos.  Isto, contudo, não quer dizer que o latim e as obras clássicas fossem ignorados na Idade Média;  ao contrário, durante séculos o latim perdurou como língua viva do ensino, da ciência, da administração, da justiça, da diplomacia, tendo também o seu lugar, no âmbito da literatura.  Muito embora se deva assinalar um florescimento bastante significativo das línguas vernáculas, na Idade Média, era comum a tradução para o latim de obras escritas originalmente nessas línguas.  Ressalte-se, além do mais, que a língua latina utilizada pelos humanistas  resguarda, de certo modo, características próprias do latim empregado pelos autores clássicos, pois  configura-se de acordo com os princípios da   " imitatio", fator de relevada importância no processo criativo de elaboração poética das obras dos autores novilatinos.  Em contrapartida, o latim medieval apresenta aspectos evolutivos bem mais acentuados, quer na sintaxe, quer na morfologia, razão pela qual muitos humanistas se insurgiram contra o que consideravam um latim "adulterado".
 Pode-se, pois, afirmar que o movimento humanista conferiu renovado vigor à língua latina, veículo, por excelência, da cultura clássica, a ponto de idealizar uma latinização geral da cultura.  Elucidativas são as palavras de Goethe, acerca da produção alemã latina dos séculos XV e XVI, às quais faz referência Curtius, em  Literatura Européia e Idade Média Latina:
Seria muito útil para a concepção mais livre do mundo, que está em vias de preocupar o alemão, se um sábio e engenhoso jovem empreendesse apreciar o verdadeiro mérito do que os poetas alemães publicaram, desde três séculos, em língua latina...  Ao mesmo tempo observaria ele que também outras nações cultas do tempo em que o latim era língua universal nele produziram e se entenderam de um modo que agora se perdeu para nós.(p.28).

 A exemplo do que se mencionou anteriormente, o Humanismo chega a Portugal , em época mais tardia, não deixa, entretanto, de influenciar a produção de inúmeras obras configuradas de acordo com os princípios vigentes.  Dentre os autores lusitanos que moldaram suas criações artísticas buscando inspiração  nas inesgotáveis fontes clássicas, encontra-se Manuel da Costa, humanista e renomado jurista.  Limitar-nos-emos, a aqui considerar apenas  alguns aspectos referentes aos poemas  De nuptiis Eduardi Infantis Portugalliae atque Isabellae Illustrissimi Theodosii Brigantiae Ducis Germanae' e In nuptiis Ioannis et Ionnae Lusitaniae  Principum.  Ambos os poemas celebram as núpcias de jovens da mais alta estirpe da nobreza lusitana. O primeiro trata do casamento do Infante D. Duarte,  filho do rei D. Manuel, com Isabel, filha do Duque de Bragança;  o segundo narra a chegada a Portugal da Princesa Joana, filha do Imperador Carlos V, para casar-se com o Príncipe João, herdeiro do trono  português.  A temática que envolve cada uma  das composições versa, pois, sobre a realização de acontecimentos de cunho político-social e reveste-se de um caráter bastante cerimonioso, em que são respeitados todos os protocolos, sendo, também ocasião de demonstrar o poder e a riqueza das mais nobres casas do reino, numa espécie de espetáculo público, que encontra grande projeção na época..
Do ponto de vista lingüístico, pode-se afirmar que o latim utilizado pelo autor obedece aos parâmetros de construção clássica, respeitando, assim, os pressupostos de observância das regras vigentes no período clássico e defendidas com bastante firmeza pelos humanistas.  Isto, porém, não impede uma certa adaptação de termos clássicos empregados com novas acepções decorrentes da necessidade de representar um mundo transformado.
Consideremos, pois, logo de início, no título De nuptiis Eduardi Infantis Portugalliae..., o vocábulo Infans, -antis (in-fari) que, a rigor, significa "que não fala, criança", no texto renascentista, entretanto, refere-se a D. Duarte , filho do rei D. Manuel, visto não ser ele o primogênito ou o herdeiro do trono.  Esta acepção do vocábulo atesta-se não apenas em Portugal, mas também na Espanha, reservando-se, em ambos os países, o termo princeps, -ipis  ( o primeiro) apenas para o primogênito ou herdeiro, como o comprova o título do poema In nuptiis Ioannis et Ioannae Lusitaniae Principum, uma vez que o Príncipe João é o primogênito de D. João III e, portanto, herdeiro da coroa.
Dando, ainda, seqüência à abordagem dos títulos nobiliárquicos registrados no poema de Manuel da Costa, deparamo-nos com o termo dux, ducis, no verso : Hic Dux Theodosius sublimem erexerat aulam. (De nuptiis, 124) .  O vocábulo "dux", que usualmente designa o chefe, o comandante e, mais especificamente, o comandante das tropas romanas nas províncias, apresenta, no poema do citado autor, uma nova acepção -duque - vinculada à categoria nobiliárquica, firmada apenas mais tarde na hierarquia do feudalismo, referindo-se ao chefe ou soberano de um ducado. Após a morte de D. Jaime, os destinos da Casa de Bragança foram confiados a seu filho D. Teodósio.
Constata-se, ainda, no que se refere aos títulos de nobreza, o vocábulo  comes, -tis, que designa conde, no texto do Renascimento.
Ducit et immensis Comes Arganilius illam
Sumptibus, ad Mondam posita qui Praesul in urbe
Fulmineo tonat ore pius, monituque potenti
Terrenos animos rapit in penetralia Caeli.
                                                                      (In nuptiis, 82-5)

“Com grandes pompas, conduz a jovem o Conde de Arganil, que como bispo    piedoso,  na cidade situada às margens do Mondego, troveja com sua voz fulminante e, com firmes advertências arrebata os espíritos terrenos para os mistérios do Céu.”
Convém assinalar que coube ao Conde de Arganil a honra de ter conduzido   Joana, filha de Carlos V, em suntuoso cortejo, quando de sua chegada a Lisboa.   No que se refere ao vocábulo comes, -tis  significa , de um modo geral, companheiro.  A partir da época imperial, são criados os "Comites Augusti", escolhidos, dentre os senadores, pelo imperador para  integrarem o Conselho Privado.  Atesta-se, além do mais, o citado termo na acepção de comandante militar no Império Romano do Oriente, bem como na designação dos nobres que, no Baixo Império, acompanhavam o soberano em suas expedições, acabando por ser empregado, mais tarde, como título nobiliárquico, decorrente de uma estratificação hierárquica do feudalismo.
Outro aspecto digno de menção, no citado texto, diz respeito ao uso de termos pagãos para designar concepções próprias do pensamento cristão, procedimento este bastante comum na Idade Média.  Consideremos, pois, o emprego do vocábulo praesul, -ulis, cuja acepção clássica vincula-se ao sacerdote que ,dentre os Sálios, preside anualmente aos ritos realizados em honra do deus Marte.  No texto renascentista, traduzimo-lo por bispo,  título honorífico eclesiástico, acepção já atestada em Fortunato, poeta cristão do século V.  Assim, o conde de Arganil, desempenhava suas funções eclesiásticas , como prelado, junto à cidade de Coimbra.  É interessante notar, além do mais, que a descrição do bispo cristão pauta-se de acordo com o classicismo pagão.   Assim, qual Júpiter, o piedoso bispo tonat (troveja), fulmineo ore ( com sua voz    fulminante)  e arrebata os espíritos terrenos para os santuários celestes (penetralia Caeli).  A rigor, penetralia, nos textos clássicos, designam os santuários em que, no interior das casas, se cultuavam os deuses Penates (Penetralia sunt Penatium sacraria) .  É  evidente que o significado do citado termo,  no texto renascentista, refere-se aos lugares celestes, enquanto morada eterna dos bem-aventurados cristãos.
Consideremos também a seqüência do poema De nuptiis..., em que Vênus intercede junto ao supremo Júpiter, em favor da pronta realização das núpcias do Infante D. Duarte e de Isabel.
O Pater, o Diuum, atque hominum Rex optime, cuius
Ad nutum triplices dispensant uellera Parcae;
Scis iuuenem Lusiis Eduardum a regibus ortum,
Quem Rex Emmanuel, postquam penetrauit ad Indos
Classibus, ac regno occiduo submisit Eoum,
Iam senior genuit, minimumque aetate reliquit
Raptus ad Elysios campos, sedesque piorum.
                                                                            (De nuptiis., 29-35)
“Ó Pai, ó Rei benevolentíssimo dos deuses e dos homens, a cuja ordem tecem as três Parcas os fios;  tu conheces o jovem Duarte, descendente dos reis lusos, o qual o rei Manuel, depois de penetrar, com sua armada, os mares da Índia e submeter o Oriente ao poderio ocidental, já, em idade madura, o gerou, deixando-o na mais tenra idade, arrebatado para os Campos Elíseos, morada dos piedosos.”
Note-se que o rei D. Manuel, ao morrer, foi arrebatado aos Campos Elíseos; ora, segundo a mitologia pagã representa o lugar dos justos, em oposição ao Tártaro.  Corresponderia, pois, na terminologia cristã, ao Céu, morada dos bem-aventurados.
Merecem também reflexão os versos em que o poeta se refere a Maria, filha do Duque D. Jaime.
...........Mariamque Sororem,
Quam sibi ut affereret propriam Regnator Olympi,
Abstulit humano generi, sacrisque dicauit
Aedibus, et tanta priuauit uirgine mundum.”
                                                             (De nuptiis., 228-231)
“............. e sua irmã Maria, o Soberano do Olimpo tão digna de si a considerava, que arrebatou-a ao gênero humano e destinou-a às sagradas moradas, privando, assim, o mundo de tão virtuosa donzela.”
É interessante observar que a expressão Regnator Olympi, relacionada a Júpiter, na mitologia pagã, refere-se, no poema da Renascença, ao Deus dos cristãos.
Convém, ainda, assinalar, nos versos relativos a Afonso Henriques, o primeiro dos reis lusos, a alusão às insígnias do reino, nas quais se imprimem os símbolos da religião cristã. Registre-se, além do mais, ser este o único momento em que, no poema - configurado consoante os princípios míticos da Antigüidade Clássica -  o cristianismo aparece como religião verdadeira.
Alphonsum canit aethereae depicta gerentem
Signa Crucis clypeo, quam quinque erepta figurent
Scuta simul uictos totidem signantia reges,
Atque ex argento triginta albentia nummis
Quae fundamenta, atque aeterni insignia regni
E caelo fluxisse refert, quo tempore uerus
Ille Deus MARIA de Virgine natus IESUS,
Cui mortale genus uitam, et caelestia debet
Gaudia, Tartarei seruatum e faucibus Orci.”
                                                                           (De Nuptiis., 650-658)
“Celebra Afonso que traz, em seu escudo, gravados os sinais da etérea Cruz; representam-na cinco escudos, simbolizando, simultaneamente, em igual número, os reis vencidos; e, em prata, resplandecem os trinta dinheiros, fundamentos e insígnias do eterno Reino, que refere terem do Céu emanado, no tempo em que o verdadeiro Deus, nascido da Virgem Maria, Jesus, a quem o gênero humano deve a vida e as alegrias celestes, livre das fauces do Orco infernal.”
 Focalizando-se os poemas mencionados, poder-se-ia afirmar que esta seqüência de  versos revela-se, de certo modo, ímpar, na medida em que deixa transparecer uma diferente perspectiva , condizente com os valores de uma nova era.  Assim, ao descrever as insígnias do reino luso, menciona o poeta o símbolo da Santa Cruz, os cinco reis mortos, que, na verdade, eram mouros, ou seja, infiéis e os trinta dinheiros da traição.  A partir da explicitação das insígnias reais da nação lusíada, o autor imprime ao enunciado um certo teor avaliativo, através do adjetivo uerus referente a ille Deus, Iesus, denotando, assim, compromisso com os princípios da doutrina cristã, única capaz de livrar o homem da perdição eterna, simbolizada no texto pelo Orco infernal.
 Percebe-se, ao longo dos poemas, intensa atmosfera mítica, construída ao sabor do mais refinado classicismo; no entanto, o homem cristianizado do Renascimento possui outras convicções e sua relação com o mundo difere substancialmente daquela vivenciada pelo homem da Antigüidade.  Por isso, ao retomar os modelos clássicos como fontes de inspiração, o poeta renascentista elabora sua obra, configurando-a, através do diálogo proporcionado pela reflexão do pensamento que norteava a vida dos antigos, contrapondo-o, no entanto, ao do  homem agenciador de um novo tempos da história.
 
BIBLIOGRAFIA

1. BUCK, A.  L'eredità classica nelle letterature neolatine del Rinascimento. Rome:  Paideia Ed., [s.d.] , 319 p.
2. COROMINAS, J. & PASCUAL, J.A.  Diccionario crítico etimológico castellano e hispánico.  Madrid: Editorial Gredos, 1984. 5v.
3. CURTIUS, E.R.  Literatura européia e Idade Média latina.  Rio de Janeiro: INL, 1957.
4. COSTAE, Emmanuelis.  De nuptiis Eduardi Infantis Portugalliae atque Isabellae Illustrissimi Theodosii Brigantiae Ducis Germanae.   Carmen Heroicum. Conimbrica: Ioannes Aluarus & Ioannes Barrerius, Typographi Regii, MDLII.
5. DA COSTA,  E.   In  nuptiis Ioannis et Ioannae Lusitaniae Principum . In: ——. Corpus Illustrium Poetarum Lusitanorum, qui Latine scripserunt... Lisbonnae: Typis Regalibus Sylvianus, Regiaeque Academiae, MDCCXLV. t.I.
6. ERNOUT,A. & MEILLET, A.  Dictionnaire étymologique de la langue latine; histoire des mots. Paris: Klincksieck, 1953.
7. FORCELLINI, A.  Lexicon totius latinitatis.  Patavii: Typis Seminarii,  1940. 6v.
8. LEWIS,C.T. & SHORT, C.  A latin dictionary.  London:  Oxford University Press, 1975.
9. RAMALHO, A. C.  Estudos sobre o século XVI.  Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1983.
10. SARAIVA, F.R. dos Santos. Dicionário latino-português.  Rio de Janeiro/Belo Horizonte: Garnier, 1993.