DO ACENTO LATINO AO ACENTO NAS LÍNGUAS ROMÂNICAS: TRANSFORMAÇÕES NO VOCALISMO
Denize Elena Garcia da Silva (UnB)
“... o acervo fonético das línguas
constitui um sistema
fechado, de tal arte que os sons se correspondem, se casam, se
entreajudam, por assim dizer, — ao mesmo passo que
impossibilitam ou excluem outros, por isso mesmo incompatíveis com
o sistema (....).
Há, pois, um sistema sonoro francês, um
português, espanhol, um italiano, um romeno, um provençal, etc., todos
irredutíveis, estanques. Mas o que é mais estranho e inexplicável é
que todos estes sistemas nada mais são que resultantes históricas de um
único sistema precedente, o latino”.
Gladstone Chaves de Melo (1967:251-52)
1. Introdução
O propósito desta apresentação é realizar um breve percurso reflexivo em
torno de determinados pontos de uma longa trajetória, que vai do acento latino
ao acento nas línguas românicas, visando discutir algumas transformações
pertinentes ao vocalismo. O trabalho objetiva uma contribuição voltada para os
estudos filológicos romanísticos, não só no âmbito da pesquisa mas,
principalmente, no ensino das línguas românicas.
Em primeiro lugar, para compreender o sistema sonoro do latim e das línguas
românicas em geral é imprescindível enfocar, ainda que de modo sucinto, a
história da natureza do acento no latim. Isso porque, de um lado, as mudanças
vocálicas encontram-se tradicionalmente ligadas à acentuação, ou seja,
decorrem das alterações no sistema prosódico latino. E por outro lado, porque
todas as línguas literárias românicas (fora o romeno literário) têm por
base esse mesmo sistema latino, cuja importância se faz evidente no ensino das
línguas românicas na atualidade.
Em segundo lugar, diversos estudos de fonética histórica nos permitem
inferir que a natureza do acento sofreu mudanças já do latim ao romance. De um
acento melódico passou-se a um acento de quantidade, o qual foi herdado dos
povos indu-germânicos. Essa distinção rigorosa e fonologicamente válida,
como bem observa Lausberg (1981: 110), constitui traço característico
para as vogais simples, o que pode ser evidenciado em: malum ‘mal’, malum
‘maçã’, populus ‘povo’, populus ‘choupo’.
No que diz respeito à acentuação latina, cabe aqui considerar as
observações de Janete Garcia (1995:21), para quem a questão da acentuação
depende da quantidade do núcleo silábico. Em sua tese de mestrado
(Garcia,1989), identifica e analisa os processos naturais que atuaram na
evolução das estruturas silábicas em dois estágios de língua: do latim
clássico ao português padrão. Nessa perspectiva, a sílaba que comanda a
acentuação da palavra é a penúltima. Numa sílaba longa, o acento incide
sobre a mesma, ao passo que numa sílaba breve o acento recua para a anterior.
É o caso, por exemplo, de penátes, com acento em a, porque este é longo, e o
caso de agrícola, cujo acento se dá em í por ser o o breve.
Eis o fato de quase não haver palavras oxítonas em latim, a não ser em raros
casos de alteração fonética. Por razões como essas, e por sua
característica rítmica mais musical que intensiva, o latim foi-se tornando
relativamente complexo.
Por fim, pode-se reconhecer que a passagem de um acento a outro condiciona
todas as grandes transformações no vocalismo. Com o acento melódico, todas as
sílabas eram pronunciadas com igual intensidade, sendo uma delas emitida
num tom mais alto. No caso do acento de intensidade, a força articulatória
caía predominantemente em uma sílaba em detrimento das demais. Porém, entre
vários estudiosos sobre o tema, a questão do acento implica controvérsias.
A tese de Lübke (1956), por exemplo, relaciona o acento ao vocalismo sem
partir, no entanto, de uma modificação hipotética da natureza do acento.
Nesta perspectiva, a diferenciação entre o acento latino e o românico não é
buscada no plano fonético, mas num plano puramente funcional, o que equivale a
responder à pergunta: qual é a função do acento no latim e no romance? Para
Lübke, no caso do latim, o acento é fonologicamente irrelevante, uma vez que
depende da quantidade (de fatores prosódicos) e é um acento fixo; mas no caso
da maioria das línguas românicas, o acento tem importância.
O estruturalista Paul Garde (1967), em seu estudo “Principes de
description synchronique des faits d’acent” (Princípios de descrição
sincrônica do acento), defende a tese de que o acento tem função contrastiva
e, como tal, deve ser considerado não como uma propriedade do fonema, mas, sim,
do morfema. Lembrando a regra geral de que toda padronização
lingüística procura tornar clara a distinção entre Gramática (estudo das
unidades de significado) e Fonologia (estudo do significante), Garde afirma que
o acento em línguas de acento livre parece ficar no caminho de um esboço como
se fosse uma marca formal de uma unidade significativa mínima. Garde reconhece
ainda, que o estudo do acento tem um longo caminho para a exaustão da
classificação tipológica de línguas, nas bases do caminho do acento traçado
dentro da morfologia. Em resumo, para Garde, a função do acento é contrastiva
e não distintiva. Trata-se, a meu ver, de um aspecto que ultrapassa não os
interesses filológicos, mas a dimensão e os objetivos do presente estudo. Esta
é a razão pela qual enfocar-se-á, a seguir, somente o traço de quantidade.
2. A quantidade vocálica e a quantidade silábica
O latim clássico distingue a quantidade das
vogais e a quantidade das sílabas. Vejamos. As vogais podem ser longas ou
breves e a quantidade da sílaba quase sempre coincide com a quantidade da vogal
que nela se apresente. Assim, uma sílaba será longa se a vogal que possui é
longa (por natureza), como claro (com o a longo) em português; ou bem se a
vogal é travada (por posição), conforme ilustra a palavra caldo (com o a
breve) em espanhol. Se por um lado, originalmente, o fato de as vogais se
encontrarem em posição livre ou travada não tem importância para o
desenvolvimento do quadro vocálico das línguas ibero-românicas, por outro
lado, ocorreu em outras regiões romanizadas um desenvolvimento vocálico
diferente, conforme se encontraram as vogais em posição livre ou travada. Isso
porque, conforme explica Lausberg (op.cit.:115), “enquanto as vogais em
posição travada se pronunciaram em geral como breves e, na maior parte, não
sofreram outras modificações, em posição livre foram alongadas e acabaram em
muitas línguas e dialetos por desintegrar-se em ditongos”.
Mas como já foi mencionado anteriormente, o acento latino depende da
quantidade do núcleo silábico e, o que mais cabe ressaltar, recai sempre em
uma das vogais anteriores à última sílaba. Assim é que o acento recairá
sobre a antepenúltima sílaba se a penúltima é breve por natureza ou por
posição.
Eis que a quantidade é relevante no latim porque condiciona a posição do
acento, mas o grande ‘cataclisma’ ocorre, como afirma Callejas (1978) quando
a quantidade perde a relevância. Nas palavras de Lausberg (1981:110):
O sentido para uma rigorosa distinção de quantidades perdeu-se na latinidade posterior, provavelmente já durante a propagação do latim às comunidades lingüísticas da Península Itálica, acostumadas a outros sistemas vocálicos. Produziu-se o assim chamado ‘colapso’ do sistema quantitativo e a reorganização do vocalismo agora sem quantidade.
As considerações do grande romanicista
alemão são o bastante elucidativas por si próprias, o que nos permite enfocar
o tema desde outro prisma, qual seja, a desfonologização da quantidade.
3. Desfonologização da quantidade
O inventário vocálico do latim clássico apresentava cinco vogais — a, e, i, o, u — que podiam ser pronunciadas com duração longa ou breve. Isso confirma a importância do traço de quantidade que permitia a realização de dez vogais. Ao lado do traço da quantidade, o latim culto contava com mais dois traços distintivos: o grau de abertura (máxima, média , mínima) e o ponto de articulação (anterior e posterior). Nessa perspectiva, ao lado das diferenças pertinentes à quantidade, havia as diferenças de grau de abertura: as longas costumavam realizar-se fechadas e as breves, abertas. Eis a quantidade no latim literário e a qualidade no latim vulgar, respectivamente:
Este segundo sistema é o que conta. As dez
vogais passam a ser nove e,posteriormente, sete (sistema qualitativo itálico) :
Ao traço fonologicamente relevante da
quantidade se há somado o traço redundante da abertura. O importante,
então, é que a vogal seja longa ou breve. Com isto, o sistema começa a
revelar a diferença entre o latim literário e o latim vulgar e, o que mais
cabe destacar, começa a romper-se, evidenciando um fenômeno, qual seja,
enquanto se desfonologiza a quantidade se fonologiza a abertura.
Na transição do sistema quantitativo para o qualitativo, distintos
procedimentos ocorrem nas línguas românicas. Isto porque o vocalismo românico
depende do acento. As vogais tônicas resistem e conservam-se na maioria dos
casos, ao passo que as vogais átonas cedem e, enfraquecendo, desaparecem,
conforme ilustram os seguintes exemplos:
(lat. lit.) spéculum > (lat. popular) speclum;
másculus > masclus.
Entre as causas que provocaram as divergências
de acentuação entre o latim literário e o latim vulgar, incluindo todas
as línguas românicas (cf. Lausberg pp.107-8), cabe destacar, aqui, as
seguintes:
1. Na língua escrita o grupo consoante + r (muta cum liquida) não vale
como formador de posição, tanto que o acento em palavras como ténebrae,
íntegrum aparecem na antepenúltima sílaba. Já no latim popular, este
grupo de consoantes possui valor formativo de posição. A pronúncia em latim
vulgar realiza-se como tenébrae, intégra.
2. No caso do latim vulgar, se a antepenúltima e a penúltima sílabas
contêm os grupos vocálicos íe, io eo, o acento recai na penúltima, conforme
os exemplos: muliére, filiólu, linteólu. Tal preferência é registrada
também na língua poética do final da Antigüidade, ao contrário do
latim literário mulíerem, filíolu lintéolu.
3. A acentuação de Mércuri (esp. miércules, rom. miércuri, port.
mercúrio) justifica-se mediante a pronúncia facultativa latina, de acordo com
a lei das três sílabas.
4. A desinência de 3a. pessoa do plural do perfeito no latim vulgar -erunt
exibe o e (breve), de modo que o acento se explica mediante a lei das três
sílabas, antes da terminação: cantáverunt > cantárunt, díxerunt,
fúerunt > (it.) cantàrono, dìssero, fùrono, >(port.) cantaram,
disseram, foram.
Por outro lado, ao comentar as vogais do latim vulgar depois da perda da duração, Rodolfo Ilari (1992:72) menciona que testemunhos de autores antigos, incluindo, principalmente, os especialistas na análise das línguas românicas, levam a concluir que às diferenças pertinentes à duração foram-se associando diferenças de abertura e que estas acabaram, posteriormente, suplantando aquelas.
4. Considerações finais
Procurou-se neste traballho refletir sobre as
questões do acento da palavra no latim vulgar e nas línguas românicas,
visando à conscientização dos professores do curso de Letras, no ensino de
línguas estrangeiras ou mesmo do Português como segunda língua. Trata-se de
um imperativo de ordem ética e cultural que, no ensino de uma língua
românica, o professor saiba das divergências do lugar do acento e de suas
repercussões na história do vocalismo. Trata-se, pois, de buscar o verdadeiro
caminho de ser, no sentido etimológico, o amigo da palavra.
Evocando o pensamento de Lausberg (p.43), para quem as mudanças
lingüísticas implicam uma correspondência aproximada das mudanças
históricas em geral, pode-se entender porque a própria humanidade, navegando
rio abaixo através dos tempos, mostra que “a imutabilidade seria algo de
desumano e, portanto, altamente estranho”. Esta é a razão porque devemos
conhecer o que mudou para seguirmos ensinando a compreender as mudanças
lingüísticas futuras, seja qual for a língua estudada.
Referências bibliográficas
CALLEJAS, S. R. 1978. “Naturaleza del acento
latino y romance”. Curso de Filologia Românica. Universidad Complutense
de Madrid: material mimeografado, 96 pp.
GARCIA, Janete Melasso. “Estudo comparativo das estruturas silábicas no
latim clássico e no português padrão” . Universidade de Brasília. Tese de
Mestrado inédita, 97pp.
_____. 1995. Introdução à teoria e prática do latim, 2a.ed. revista.
Brasília: Editora Universidade de Brasília.
GARDE, Paul. 1967. “Principes de description Synchronique des faits d’acent”.
In: J. Ham (eds.), Phonologic der Gegenwart, Bbohlaus Nachfolger, 1967, pp.
32-43. Trad. e edição de Erick Fudge (1973) in Phonology, pp. 309-319.
ILARI, Rodolfo. 1992. “Características fonológicas do latim vulgar”.
Em: Lingüística Românica. São Paulo: Ática, pp. 72-87.
LÜBKE, M. 1956. “El desarrollo estructural del vocalismo románico”,
texto mimeografado.
MELO, Gladstone Chaves. 1967. Iniciação à Filologia Portuguesa. Rio de
janeiro: Livraria Acadêmica.
WILLIAMS, Edwin B. 1961. Do latim ao português. Trad. de Antônio Houaiss,
(1986) Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.