DO ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA
Aileda de Mattos Oliveira
O Professor Silva Ramos, em 1916, em NO ÁDITO, título
que dá ao prefácio à obra do filólogo Mário
Barreto, Fatos da língua portuguesa, faz uma crítica aos
que, já na época, afiliavam-se aos estudos da língua,
mas preocupavam-se em circunscrever o seu conhecimento ao limite físico
das gramáticas e ao âmbito intelectual de seus conceitos.
Acrescenta o eminente Professor que é “Daí o descrédito
em que teem caído êsses còdigozinhos de bem falar e
a intenção depreciativa dada ao epíteto gramaticógrafo.”
Explica ele que tal “desvalia” do termo, empregado como epíteto,
deve-se ao fato de que “as verdadeiras dificuldades da língua não
as resolve a teoria.” Isso porque - segundo a visão crítica
do mestre - os gramáticos congregavam-se no ádito, isto é,
no círculo recôndito dos que consideravam as regras por eles
estabelecidas como a fonte única em que se havia de saciar todo
aquele sedento de conhecimentos lingüísticos.
Assim, restritos ao determinismo canônico da língua e,
portanto, fiéis ao estatuto conservador que condiciona o estudo
dos fatos lingüísticos às regras gramaticais determinadas
pelos manuais, esses cultores idealistas ignoravam a língua no seu
uso cotidiano, o “tráfego diário”, como prefere o filólogo
Silva Ramos.
Além dessa impossibilidade de aceitação dos vários
usos de que se utilizam os falantes, havia a rejeição aos
estudos da ciência da linguagem, “cujas leis afectam desconhecer,
cujos princípios se comprazem em desdenhar; donde resulta que, em
contradição com uma e com outra, desatam as dúvidas
que lhes caem na alçada, segundo o modo de ver de cada um, o que
faz dêsses manuais um corpo de doutrina inconsistente, sem base sólida
na natureza, incapaz, por conseqüência, de se impôr.”
Segue o filólogo Silva Ramos a expor, através de questões
práticas, as dúvidas que determinados fatos da língua
causam ao falante e que não são dissipadas pelas teorias
gramaticais, uma vez que a elas se contrapõem os inúmeros
exemplos registrados em obras de autores, cujos nomes já são,
por si, garantia de excelente escritura vernácula.
Uma dessas questões, que se transcreve a título de ilustração,
é referente ao plano sintático regencial e evidencia as hesitações
do falante quando do emprego e da análise dos complementos verbais,
tendo em vista as divergências existentes sobre a natureza do objeto
que exerce o papel de elemento-alvo da ação de determinados
verbos.
Esse problema torna-se, em alguns casos, de difícil solução
não só aos alunos mas também aos professores, que
se vêem obrigados a seguirem a linha doutrinária gramatical,
a fim de manterem uma conduta didática uniforme, embora percebam
o artificialismo da solução. É o fato de o objeto
indireto adquirir característica de adjunto adverbial e sobre isso
Francisco Fernandes, em sua obra consagrada, Dicionário de verbos
e regimes, já na sua 42a edição , faz uma observação
no parágrafo referente aos verbos relativos.
Silva Ramos, por seu turno, cita os verbos socorrer e contentar, cuja
“pessoa a quem se socorre ou a quem se contenta é o objecto imediato
da acção.”
Não passa despercebido ao filólogo, que para ele mesmo
esclarecer o como se reconhece o objeto direto dos verbos citados, utilizou-se
de uma explicação não-condizente com a natureza de
sua regência, pois teve que recorrer a formas preposicionadas (“a
quem se socorre”; “a quem se contenta”), o que se opõs, naquele
momento, aos seus objetivos didáticos. Recorda, em seguida, que
aí estão Camões a cantar em seu verso “Este que socorrer-lhe
não queria” e Rodrigues Lobo a dizer que “Cada um diga a sua opinião
nos livros que mais lhe contentam”, como exemplos de que o caminho do manual
nem sempre é o caminho do uso e que também as explicações
do mestre – haja vista seu próprio exemplo - nem sempre serem elucidativas
para a depreensão do problema lingüístico.
O conflito entre a teoria e a prática estende-se no plano da
sintaxe de concordância, quando o verbo se refere a dois sujeitos
de pessoas diferentes, em que a primeira é preferencial se concorrer
com a segunda ou a terceira; e a segunda, sobrepõe-se à terceira,
conforme legislam as gramáticas, regras que não foram suficientemente
determinantes para serem aceitas por escritores como Alexandre Herculano
(“...quando tu e os outros velhacos da tua laia lhe esterroaram na cara
lixo e terra.”); Camilo Castelo Branco (“Mataram-me ela e tu, Deus lhes
perdoe algozes.”) e Almeida Garret (“...Olha o velho Filinto/Que tu e os
teus patrícios, boa gente/ Tanto gabaram.”) entre outros aqui
não citados em face da exigüidade de espaço.
A preocupação que se tem em trazer as palavras de um
conceituado filólogo e professor, entre tantos de sua geração
que abrilhantaram os estudos da língua portuguesa, é a de
mostrar que o behaviorismo no ensino da língua também é
um problema histórico, não sendo, portanto, uma característica
específica de muitos professores no momento presente.
O que torna difícil o desenvolvimento de uma visão crítica
do ensino gramatical adotado em muitos estabelecimentos considerados padrão,
seja eles de nível médio seja eles de nível superior,
seja eles particulares seja eles públicos, é o fato de aquele
que assume a tarefa de expor a análise da questão, ser imediatamente
considerado um opositor da gramática e, portanto, da norma culta,
o que vai caracterizá-lo de socialista lingüístico ou
adepto de modernosas leis da lingüística contemporânea
que vêm de priorizar a linguagem oral.
Por causa desse radicalismo preconcebido, é necessário
dizer, antecipadamente, que assim como o dicionário, nas suas várias
categorias, é imprescindível ao estudioso do vocabulário
da língua, o é também a gramática ao estudioso
dos elementos categoriais e de sua organização na linearidade
do pensamento, uma vez que se encontram nela os elementos que compõem
a estrutura da língua, as regras de como a compõem, portanto,
elementos e regras sem os quais o falante jamais poderia interar-se, convenientemente,
nos vários mundos sociais em que atua. A gramática é,
sem dúvida, a fonte a que recorre o professor, a base que solidifica
os seus estudos lingüísticos.
Isso, porém, não o impede de fazer novas leituras de
pontos que sempre se mantiveram controvertidos pela insuficiência
de dados que os esclareçam, pela tendência que têm as
gramáticas (e já há as mini, quase um livro de bolso)
de reduzirem as explicações a um esquemático receituário,
de bom uso, apenas, para o adestramento dos pré-vestibulandos e
de outros alunos, vítimas, todos da enformatização
pedagógica.
O que se discute, aqui, prioritariamente, é o ensino mecânico
das regras gramaticais, como uma forma rígida de instrução,
tendo como parâmetro o que é ditado por livros didáticos
que autodeterminam, sem fundamentação, o que os alunos devem
ou não fazer, condicionando-os a uma receita básica de organização
mental que interfere até nas pausas (ou na ausência delas),
exigidas na organização estrutural e graficamente representadas
pela pontuação.
Esse sistema de signos, genericamente denominado pontuação,
que se constitui em português de ponto (.), de ponto de interrogação
(?), de ponto de exclamação (!), de vírgula (,), de
ponto-e-vírgula (;), de dois pontos (:), de reticências (...),
de parênteses ( ( ) ), de colchetes ([ ]), de aspas(“ ”), de
travessão (—), de asterisco (*) e de alínea, tem importância
fundamental para indicar os limites espaciais entre os diversos constituintes
das frases ou das orações, as coordenações
e as subordinações.
No entanto, o caráter regimental do emprego dos signos de pontuação
com a finalidade de destacar elementos nominais, verbais e gramaticais,
dentro de uma proposição, não determina que se deva
ignorar a entonação individual que torna cada ato de criação
lingüística, única, por ser única cada emoção
vivida pelo falante.
Nem sequer se ousou, aqui, empregar o termo recriação
lingüística, a fim de deixar evidente que a intenção
é a de salientar que cada vez que se usa da palavra, usa-se a palavra
diferentemente de qualquer outra ocasião e, não, a de inovação,
fora dos parâmetros estabelecidos.
As regras são necessárias porque tornam-se ponto de partida
a comparações com as exceções que se lhes opõem
e que são da natureza da palavra, instrumento com cuja entonação
o homem procura transcrever ou expressar as mais grosseiras e as mais sutis
emoções. A palavra é, de certa maneira, um elemento
catártico e que, por isso mesmo, repele, em certas ocasiões,
quaisquer cerceamento na cadeia do pensamento, pelo constante entrave imposto
pelo bom emprego dos signos de pontuação.
E, em nome do emprego correto da pontuação, há
os que condenem o uso dos mesmos signos em situação inversa,
isto é, aquela em que o acréscimo de um sinal de pausa, enriquece
a construção, acrescentando-lhe uma nova nuança sintático-semântica,
a fim de transcrever imagisticamente o próprio interpretar da realidade
do falante.
Como exemplo, cita-se a proibição do uso de vírgula
antes da conjunção coordenativa aditiva e. Há situações
contextuais em que não se pode prescindir de seu emprego, em razão
de a conjunção não estar relacionando termos ou idéias
equivalentes, mas destacando sentimentos, ações, fatos que
se sucedem, marcadamente, porque observam um tempo de execução
único, de acordo com uma dada situação sensorial ou
afetiva, como se utilizaram Machado de Assis, Aluísio Azevedo e
Olavo Bilac, para citar apenas alguns conceituados autores brasileiros.
Passagens que não se pode deixar de reproduzir, por concentrarem-se
nelas não só a beleza estética da frase, mas o trabalho
dos autores em conduzir deliciosamente o leitor pelas linhas dos seus textos,
mantendo-o envolvido no ritmo de suas palavras para, finalmente, enredá-lo
na teia de suas idéias.
Do primeiro, de Memórias póstumas de Brás Cubas
, o trecho
A vida estrebuchava-se no peito, com uns ímpetos de vaga marinha,
esvaía-se-me a consciência, eu descia à imobilidade
física e moral, e o corpo fazia-se-me planta, e pedra, e lodo, e
cousa nenhuma.
perderia o seu valor significativo se se mantivesse a rigidez das normas
de virgulação, pois esta alteraria a organização
sintática, levando a idéia a se perder na trivialidade da
forma (... à imobilidade física moral e o corpo fazia-se-me
planta e pedra e lodo e cousa nenhuma.).
No O cortiço, Aluísio Azevedo utiliza-se da vírgula
anteposta à conjunção aditiva, a fim de dar a ela
um valor conseqüencial, como epílogo à descrição
naturalista da fauna humana, descrita como em fase monocelular:
E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa,
começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa
viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali
mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco.
Retire-se a vírgula que se antecipa ao “e multiplicar-se” e
esboroa-se toda a intenção do autor de caracterizar a geração
espontânea de grupos primários, que parecia resultar da promiscuidade
ambiental.
Encontram-se em Olavo Bilac inúmeros exemplos desse tipo de
construção, normalmente ocorrente no último verso
das estrofes, o que acentua nele a cadência da frase musical a enfatizar
a marcação rítmica:
Forjando o ferro, arando o chão, prendendo o raio,
Dei aos homens o ideal que anima, e o pão que nutre...
Debalde o ódio, e o castigo, e as garras me consomem.
Porém, não se limita aos versos essa característica
de Bilac. Na sua conferência sobre D. Quixote, no Gabinete Português
de Leitura, aparecem registradas, constantemente esse tipo de virgulação,
como se constata nesses dois fragmentos que seguem:
O herói passa a existência a ler, e come pouco.
Vives, e ouves-me, e sabes que não estamos aqui para rir do
Cavaleiro da Triste Figura, mas para amar a sua alma ardente e generosa!
Não há exagero em dizer, como se antecipou parágrafos
acima, que muitos professores se utilizam desse método de atrofia
gramatical, tomando-se como base a vendagem dos livros de que se utilizam
como fonte-guia, alguns já com várias edições
e reimpressões.
As conseqüências da aplicação desse estilo
em salas de aula - repete-se aqui - quer no segundo grau quer no terceiro
grau, são benéficas para os docentes, porque não lhes
exige renovação de pontos de vista, ao contrário,
permite-lhes que mantenham um padrão automático de correção
de trabalhos, baseado no que preconiza o manual gramatical adotado, sem
valorizar a parte opinativa do aluno, relegada a segundo plano e, às
vezes, não levada em consideração, pela procura obsessiva
dos tremas, de vírgulas em outras situações nem sempre
obrigatórias, mas consideradas como tais, embora não se tenha
havido, antes, a preocupação de analisar a enfatização
ou não do aluno no emprego de determinados advérbios, de
determinadas conjunções, dentro da situação
contextual e da estrutura rítmica de seu trabalho.
Há, nesses professores, manifesta intolerância ao reconhecimento
do trabalho individual, pois, sabe-se que avaliar cada trabalho do aluno
como único, levando em conta a sua visão particular em relação
ao assunto dado a desenvolver, demandaria tempo ao mestre, que prefere
se manter no ádito em que se circuncrevem os que se julgam senhores
da verdade gramatical a respeitar o produto intelectual, elaborado muitas
vezes sob a coação psicológica da leitura, no instante
mesmo da realização dos testes de avaliação,
do valor dos pontos a serem descontados em caso de desobediência
ao ritual da estereotipia dissertativa.
A permanência de determinados professores na situação
de acomodamento que lhe propicia esse tipo de trabalho mecanicista faz
que se perpetue os mesmos exercícios, os mesmos tipos de avaliação,
a idêntica maneira de formulação de questões.
Pode-se dizer que é um caso típico de industrizalização
do ensino(?) da língua portuguesa, pois o objetivo é usar
fôrmas , nas quais se ajeitam idéias, perspectivas, pontos
de vista, para transformar toda riqueza individual do pensamento humano
em formas esterilmente condicionadas ao modelo-padrão do que é
preconizado como bem-escrever e que vão passando pela esteira rolante
aos olhos embevecidos dos professores, crentes da riqueza de sua metodologia.
Nesse modelo-padrão de bem escrever estaria incluída
a liberdade de bem dizer? de bem se expressar? de bem argumentar?
As três interrogações são uma forma retórica
de penetrar-se no outro ângulo da questão. A resposta às
questões feitas é negativa, uma vez que a memorização
da lista dos elementos gramaticais subservientemente presos à pontuação
limita os alunos a uma visão monossemântica desses elementos
quando na prática redacional ou interpretativa.
A argumentação exige a liberdade de releitura dos fatos
lingüísticos e, por conseguinte, as nuanças significativas
que um determinado elemento gramatical adquire em situação
sintática determinada.
Assim, por exemplo, há uma expressiva diferença semântica
entre os exemplos abaixo, construídos não só com o
mesmo número de palavras, mas também com as mesmas palavras:
1) Diretora, o aluno X hoje não veio à aula.
2) Diretora, o aluno X, hoje, não veio à aula.
No primeiro caso, há, tão-somente, a constatação
da ausência de um aluno na sala de aula, portanto, não havendo
necessidade de pôr entre vírgulas o advérbio temporal
hoje. No segundo, inversamente, já há uma preocupação
em estabelecer um contraste entre o hoje e os dias anteriores, isto é,
o aluno X que nunca falta, que é assíduo, que sempre está
presente, hoje, faltou. Não há, apenas, uma constatação,
mas acrescenta-se, aí, um estranhamento do emissor ante um fato
acontecido. A virgulação neste exemplo, é, portanto,
enfática e, por isso, necessária.
Oitenta e dois anos depois de o Professor Silva Ramos ter-se manifestado
contra os gramaticógrafos, a situação do ensino da
língua portuguesa permanece cristalizado, em determinados estabelecimentos,
pela ausência da leitura de escritores que, embora pertencentes a
épocas de menos liberalidade lingüística, sabiam tornar
maleáveis as palavras, sabiam transformar a pontuação
num meio de enriquecimento estilístico.
Pode suscitar uma indagação sobre a razão de o
título deste trabalho ser Do ensino da língua portuguesa
se a preocupação que nele perpassa ficou restrita ao aspecto
do arbítrio do professor quanto ao emprego de critérios matemáticos
no ensino dos fatos da língua. Essa preocupação se
explica por considerar-se que é a partir do querer do mestre em
ultrapassar as suas próprias barreiras que se dá início
a um novo e dinâmico processo de ensino-aprendizagem. Por essa razão,
a escola deve ser auto-avaliativa e não autocontemplativa como tem
sido até o momento, o que a mantém num estado de crônica
placidez.
A reformulação dos métodos didático-pedagógicos
do ensino da língua portuguesa, a qual se faz urgente, não
deve ignorar que, se a língua é um instrumento estrutural,
a linguagem é um instrumento ideológico com o qual se permite
enunciar o discurso do imaginário do povo que a fala e a particular
visão de mundo de cada um, portanto, inédita e insubstituível.