DOSSIÊ PARA UMA EDIÇÃO GENÉTICA DE SAGARANA

Sônia Maria van Dijck Lima (UFPB)

“Vim pedir-lhe as chaves do Sagarana”
(Ascendino Leite, 1946, entrevistando JGR)

 Desde 1997, venho trabalhando com os documentos de Sagarana, conservados no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, e na biblioteca do Dr. José E. Mindlin. O propósito é preparar uma edição genética dessa obra, cuja parte referente ao conto “Sarapalha” já está  organizada . Contudo, penso que o convite para tomar parte nessa mesa-redonda, que reúne filólogos, críticos textuais e geneticistas, não foi, propriamente, para que apresentasse conclusões parciais de minha pesquisa. Julgo que estarão em discussão aspectos de metodologia de pesquisa. Por isso, a partir das investigações sobre Sagarana, procurarei expor aspectos metodológicos da edição genética que está sendo estabelecida.
 A escritura de Sagarana pode ser reconstituída acompanhando-se um longo período que vai desde o primeiro documento conhecido com o título Sezão até a 5ª publicação, quando o autor deixou de modificar os textos desse livro. Lamentavelmente, não se conhece o primeiro testemunho, intitulado Contos, inscrito no Prêmio Humberto de Campos, da Livraria José Olympio, no dia 31 de dezembro de 1937. Assim, organizei o dossiê de Sagarana da seguinte forma:

 Dossiê de Sagarana

[1º testemunho é desconhecido: Contos (1937)]
Sezão - encad. couro vermelho (1937?)
Sezão - encad. couro preto (1937?)
Pastas c/ originais - fols. soltas (s. d.)
[testemunho desconhecido]
1ª edição (1946)
2ª edição (1946)
3ª edição (1951)
Originais da 4ª ed. (1955) - vol. da 3ª ed., tomado por JGR como exemplar de trabalho
4ª edição (1956)
Originais da 5ª ed. (1957) - vol. da 4ª ed., tomado por JGR como exemplar de trabalho
Provas da 5ª ed.   5ª edição (1958) - texto referente

 Considerando os objetivos da crítica genética, voltada para manuscritos modernos e autógrafos, a reconstituição da escritura de Sagarana deverá seguir as lições desses documentos. Segundo Almuth Grésillon (1994, p. 188), “entende-se pelo termo ‘edição genética’ uma edição que apresenta exaustivamente e na ordem cronológica de sua aparição os testemunhos de uma gênese.” Mas, justamente nesse princípio reside uma das dificuldades do crítico genético: nem sempre foram conservados todos os testemunhos da história de um texto. No caso de Sagarana, por exemplo, são evidentes as diferenças entre o último original datilografado e a 1ª edição, o que assegura ter havido uma fase de trabalho imediatamente anterior à primeira publicação, assim como não se conhecem documentos referentes à 2ª edição, ainda que seu texto mostre que o autor se debruçou sobre ele para estabelecer alterações. Da mesma forma, a colação entre esses documentos e a 3ª edição, indicada como “revista”, mostra que os contos foram retomados em nova fase de trabalho. Os originais da 4ª edição, em alguns momentos, não coincidem com o que foi dado a público como sendo a “versão definitiva” de Sagarana, e só então assinada por João Guimarães Rosa.
 Como se trata da reconstituição da história de uma escritura, achamos por bem incluir as edições surgidas no período: 1ª, 2ª, 3ª e 4ª. No que se refere ao dossiê de Sagarana, isso serve para demonstrar, em cada etapa da escritura, o resultado alcançado e oferecido ao público. Por outro lado, incluindo edições no dossiê de gênese, comprovamos que o fato de publicar não encerra, para o autor, o trabalho de escrever e de corrigir; ele é o primeiro que, travestido de crítico textual, identifica variantes editoriais  e restabelece sua vontade autoral, como parte de seu processo de escritura. Nesse caso, a presença de edições no conjunto de documentos em estudo não significa uma incursão no terreno da edição crítica, propriamente dita. É antes de mais nada o resultado de um reencontro com o autor, flagrado crítico de seu próprio texto e dos editores, enquanto continua escrevendo a obra. Segundo Cecilia Almeida Salles (1992, p. 98), “como o estudo genético confronta o texto que é com o que foi, com o que poderia ter sido, ou ainda com o que quase foi, ele contribui para, por um lado, forçar a ver em cada fase um possível término - uma possível obra - e, por outro lado, contribui para relativizar a noção de conclusão e, assim, ver no texto considerado final pelo artista uma possível etapa.”
 Em demanda da otimização do discurso, o autor, nos vários momentos da escritura, termina estabelecendo diferentes versões do texto que está construindo. Uma tal observação não implica juízo de valor estético da parte do crítico acerca das versões instauradas, pois ao autor é sempre possível retomar uma formulação ou uma versão anterior, se considerar que se relaciona melhor com seu leitor virtual, com o qual procura manter comunicação. Explicando a travessia da escritura, diz Philippe Willemart (1993, p. 93): “Da mesma maneira que, para dizer sua paixão à amada ou eliminar seu sintoma, o amante ou o analisando precisam de tempo e de linguagem, assim o escritor necessita do tempo da escritura para livrar-se desse bloqueio que o inquieta. O primeiro texto é, de uma certa maneira, um texto mítico no qual se escreve o desejo do escritor que, podemos imaginar, dirá ao copista da última versão ou a sua secretária: ‘É isso que queria escrever’. Dirá esta frase conclusiva ‘só depois’, como o analisando, que terá reconstruído sua história. (...) De fato, terá elaborado, a partir de um conjunto de formas-sentidos ou de um conjunto de objetos de sua pulsão de escrever, um texto erguido à dignidade da Coisa, o que define a sublimação, segundo Lacan.” Assim, para o crítico genético, uma versão não é superior à outra; todas são testemunhos do processo redacional. Ao geneticista cabe estabelecer a cronologia das versões, verificando como se construiu o discurso em cada uma das etapas e na passagem de uma fase para a outra, transcrevendo integralmente cada um dos momentos redacionais ou apontando, no aparato genético as eliminações, as substituições, os acréscimos, as correções, as hesitações.
 Salvo em casos especiais, como transcrição de cadernos de anotações ou de rascunhos, edição de obras inacabadas, por exemplo, poderia tornar-se não econômico para a pesquisa e para a divulgação de seus resultados transcrever e editar exaustivamente originais de obras éditas, obrigando-se o pesquisador, assim, a repetir trechos extensos que não sofreram transformações em qualquer das fases testemunhadas nos originais. Por outro lado, até mesmo para o leitor culto não especialista a sucessiva apresentação de originais não oferece por si mesma uma informação objetiva, pois exige desse leitor não especializado o exercício de comparação, para verificação e comprovação das mudanças operadas pelo autor.
 Escolhemos, então, retomar a escritura de Sagarana a partir da última versão alcançada pelo autor e identificada, por ele mesmo, como “retocada” e na “forma definitiva”. Assim, a edição genética dessa obra transcreve os textos conforme a 5ª edição, sendo cada uma das histórias acompanhada de um aparato genético, para demonstrar como a narrativa se atualizou em cada uma das fases de escritura. Os textos transcritos serão marcados por chamadas de notas que remetem às modificações apontadas no aparato genético, indicando-se os documentos que testemunham as ocorrências. Com esse recurso, pensamos evitar a apresentação de um vasto prototexto, extensamente marcado por sinais técnicos de transcrição de rasuras, acréscimos, ocorrências marginais, etc.; o resultado seria um material que, graficamente, dificultaria a fluidez da leitura, pelo excesso de marcas não verbais (colchetes, chaves, barras, parênteses unhados).
 O aparato genético não apontará variantes editoriais, pois o interesse não é o de reconstituir “a forma original da obra” (Spina, 1977, 88) nem tampouco o de “estabelecer em definitivo o texto (...), escolhendo-se, assim, caso a caso, a melhor versão ou leitura...” (Araújo, 1986, p. 195). O aparato genético organiza fragmentos, transcreve modificações. Tendo como referente a última versão oferecida ao leitor, o aparato genético deverá contribuir para que o texto seja visto em movimento, informando como foi e como poderia ter sido cada uma das narrativas.  Dessa forma, a edição genética de Sagarana deverá ter a seguinte orientação metodológica:

Sagarana - 5ª ed., “retocada, forma definitiva” (1958)
eixo sintagmático
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[Contos (1937), testemunho desconhecido]
Sezão, encad. c. verm. (1937?)
Sezão - encad. c. preto (1937?)
Pastas c/ originais - fols. soltas (s. d.)
[testemunho desconhecido]
1ª edição (1946)
2ª edição (1946)
3ª edição, “revista” (1951)
Originais da 4ª ed. (1955)
4ª edição, “versão definitiva” (1956)
Originais da 5ª ed. (1957)
Provas da 5ª ed.
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eixo paradigmático

A versão não mais modificada pelo autor relaciona-se dialeticamente com todas as versões anteriores, pois, no exercício de superação e de transformação do eixo das contigüidades, tem-se a freqüentação do eixo das similaridades, de modo que o texto alcançado sintagmaticamente conserva a memória de todos os paradigmas percorridos (e de outros tantos que poderiam ser visitados, se o autor continuasse escrevendo as narrativas). E nisso consiste a trabalho da escritura. Traduzir, em um aparato genético, os procedimentos escriturais é o objetivo genético.
 Sem pretensão de exaustividade, a edição  genética deve selecionar situações exemplares de modificações que merecem comentários. Estabelecendo a diferença entre os documentos textuais (prototexto), que constituem o dossiê de gênese, enquanto “corpo e substância da edição genética” (Gothot-Mersch, 1982, p. 77-78), e as fontes paratextuais e metatextuais, a edição genética de Sagarana não pode prescindir das entrevistas concedidas pelo autor, de suas cartas e de outros materiais de seu arquivo, como, por exemplo, recortes de jornais, das notas e das explicações que figuram nas edições; esses materiais contribuem para a leitura do dossiê de gênese.
 A questão que se vem colocando para a edótica não é a de simplesmente classificar esta ou aquela edição como genética ou como crítica. O caráter da edição é, fundamentalmente, decorrente de seus objetivos e do resultado alcançado: estabelecimento de um texto (edição crítica) ou reconstituição da escritura (edição genética). “Como toda edição, essas publicações não devem ser encaradas como definitivas; existem fatores que condicionam e limitam a pesquisa, podendo, numa escala sumária, ir desde a interferência da subjetividade do investigador até o conhecimento de todos os documentos possíveis de serem incluídos no prototexto” (Lima, 1995, p. 200), no caso da edição genética, ou incluídos no aparato crítico, no caso da edição crítica. No que se refere à edição genética, o caráter completo ou fragmentário dos documentos, a marca de transitoriedade que impregna os materiais poderão conduzir a práticas metodológicas diferentes:

- transcrição de todo dossiê;
- transcrição do manuscrito tomado como texto referente, a partir do qual se organiza o aparato genético;
- constituição de um texto referente, tomando-se uma edição criteriosamente escolhida, para organização do aparato genético,

e assim por diante, desde que a reconstituição da escritura seja a meta perseguida. Por outro lado, no que se refere a autores modernos, a crítica textual deverá considerar a consulta a manuscritos como parte da edição crítica, estabelecendo uma disciplina metodológica que integre os movimentos da gênese da escritura ao aparato crítico, a fim não só de estabelecer um texto “fiel à vontade do autor”, mas também para reencontrar esse mesmo autor em seu laboratório poético, flagrado em pleno processo de criação.
 Se a composição de Sagarana desafiou Guimarães Rosa durante mais de vinte anos, a reconstituição da gênese de sua escritura fica como um desafio que me ocupará nos próximos tempos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARAÚJO, Emanuel. A construção do livro: princípios da técnica de editoração. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Brasília: INL, 1986.
GOTHOT-MERSCH, Claudine. L’édition génétique: le domainne français. In: HAY, Louis (org.). La naissance du texte. [Paris] José Corti, 1989, p. 63-67.
GRÉSILLON, Almuth. Eléments de critique génétique: lire les manuscrits modernes. [Paris] PUF [1994].
LIMA, Sônia Maria van Dijck. Edição genética: para uma metodologia de trabalho. In:  GÊNESE E MEMÓRIA: ENCONTRO INTERNACIONAL DO MANUSCRITO E DE EDIÇÕES, 4, 1994. Anais... São Paulo: Annablume, Associação de Pesquisadores do Manuscrito Literário, 1995, p. 193-201.
SALLES, Cecilia Almeida. Crítica genética: uma introdução. Fundamentos dos estudos genéticos sobre os manuscritos literários. São Paulo: EDUC, 1992.
SPINA, Segismundo. Introdução à edótica: crítica textual. São Paulo: EDUSP, 1977.
WILLEMART, Philippe. Universo da criação literária. Crítica genética, crítica pós-moderna? São Paulo: EDUSP, 1993 (Criação e Crítica, 13).