“UM PROCESSO DE REFORMULAÇÃO DISCURSIVA (A CORREÇÃO) NA FALA CULTA DE SÃO PAULO E DO RIO DE JANEIRO”
(PROJETOS NURC/SP E NURC/RJ)
Paulo de Tarso Galembeck (UNESP0
Mercia Reiko Takao (UNESP/PIBIC/CNPq)
0. Preliminares
Este trabalho discute a presença e o uso de um processo de recons-trução
ou reformulação discursiva (a correção) em
textos conversacionais representativos da fala culta de São Paulo
e do Rio de Janeiro. Para a reali-zação desse objetivo ,
foi efetuado o levantamento das ocorrências, as quais foram classificadas
de acordo com as variáveis e critérios expostos na seção
2 deste texto.
O córpus do trabalho é constituído pelos inquéritos
do tipo D2 (diá-logos entre dois informantes) no 333 e 360 (NURC/SP)
e 355 e 374 (NURC/RJ), tendo sido selecionado de cada um desses inquéritos
um frag-mento correspondente a 40 minutos de gravação.
O trabalho compõe-se de duas partes: na primeira, são
expostos os processos que constituem a língua falada (construção,
reconstrução e des-continuação) e são
conceituados os processos de reconstrução (paráfrase,
reiteração e correção). Já a segunda
seção é destinada à análise das ocorrên-cias
de correção que figuram no córpus.
1. Fundamentação teórica
1.1. Processos constitutivos da língua falada
Castilho (1995) enumera três processos discursivos que constituem
a língua falada: a construção, a reconstrução
e a descontinuação. A construção é o
processo pelo qual se amplia o tema ou tópico, como tal entendido
“aquilo de que se está falando”(Brown e Yule (1983)). Essa ampliação
ocor-re por meio de duas ações ou movimentos básicos:
o ato de salientar um objeto da predicação; ato de predicar
ou dizer algo acerca do objeto salien-tado(Ilari (1986)). Esses dois movimentos
correspondem às duas ações básicas que constituem
a articulação tema-rema (“falar de” e “dizer que”).
Os procedimentos de reconstrução ou reformulação
surgem, no texto falado, em decorrência da própria situação
em que esse texto é produzido. Com efeito, a ausência de uma
etapa nítida de planejamento (planejamento local), o envolvimento
entre os interlocutores e a existência de um espaço por eles
partilhado traz a necessidade de emendar ou retomar os enunciados anteriores.
Os processos de reformulação mais freqüentes são
a correção, a paráfrase e a repetição.
A descontinuação, bastante freqüente na língua
falada, manifesta-se por meio de anacolutos, pausas de planejamento ou
da ruptura tópica.
1.2. Reformulação ou reconstrução
Já foi assinalado, anteriormente, que os procedimentos de reformula-ção
decorrem das próprias circunstâncias em que o texto falado
é produzido. Em outros termos, os processos de paráfrase,
correção ou repetição são utilizados
para obter maior clareza na formulação dos enunciados e assegu-rar
a necessária interação entre os participantes do ato
conversacional.
A paráfrase define-se como a reiteração do conteúdo
informativo, com a alteração da forma. Por meio desse processo,
busca-se assegurar a intercompreensão entre os participantes do
ato conversacional.
A correção, por sua vez, consiste na suspensão
temporária do anda-mento da frase, com o objetivo de “emendar” enunciados
(ou parte deles) considerados inadequados pelo próprio falante ou
por seu interlocutor. Com essa “emenda”, o falante anula, total ou parcialmente,
a formulação anterior do enunciado, para que possa ser assegurada
a compreensão e a inteligibili-dade mútua entre os participantes
do ato conversacional.
A repetição é a retomada do enunciado sem alteração
ou com altera-ções pouco significativas.
1.3. Correção
A correção constitui um fenômeno cuja presença
decorre das caracte-rísticas básicas da língua: a
falta de uma etapa nítida de planejamento; a interação
direta entre os participantes e o envolvimento que entre eles se estabelece;
a existência de um espaço comum partilhado entre os interactan-tes.
Essas três características - mormente as duas primeiras -
fazem que, nessa modalidade de texto seja freqüente a necessidade
de procurar cons-tantemente a formulação mais adequada, “consertando”
os enunciados “de-feituosos”, do ponto de vista fonológico-prosódico,
gramatical ou semânti-co-pragmático. Essa busca de adequação,
ademais, está ligada à necessidade de precisão e de
clareza, requisitos para a manutenção e continuidade do processo
interacional.
Como assinala Barros (1997), os atos de reformulação
tem por obje-tivo levar o interlocutor a reconhecer a intenção
do locutor, a fim de assegu-rar a intercompreensão na conversação.
Pode-se acrescentar que, na corre-ção, essa característica
é particularmente nítida, uma vez que esse procedi-mento
tem dimensão prospectiva. Com efeito, a correção salienta-se
por estar associada à busca de uma formulação adequada.
É um fenômeno que se projeta “para frente”, ao contrário
da paráfrase e da reiteração, que reto-mam enunciados
ou reformulações já veiculados.
A presença da correção, nos textos falados, decorre
da competência comunicativa do falante, da sua capacidade de agir
com o outro e sobre ele. Por isso mesmo, as variáveis a serem expostas
na seção seguinte desse tra-balho enfatizam a correção
como estratégia utilizada na construção do diálo-go.
2. Análise das ocorrências
Esta seção é dedicada à análise
das ocorrências de correção, que se-rão classificadas
de acordo com as variáveis expostas a seguir:
a) Elemento que se corrige (natureza do erro): lexical; gramatical;
fo-nológico-prosódico.
b) Interlocutor que desencadeia e desenvolve o processo: auto-correção
auto-iniciada; auto-correção hetero-iniciada; hetero-correção
auto-iniciada; hetero-correção hetero-iniciada.
c) Dimensão: total; parcial.
d) Proximidade em relação ao enunciado matriz: adjacente;
não-adjacente.
e) Fenômenos da língua falada associados à correção:
truncamento; hesitação ou pausa; ameaça de perder
o turno; não se aplica.
2.1. Elemento que se corrige ou natureza do erro
a) Elemento lexical
Exemplo 01: (...) a TV evidentemente ... muito presa a singularida-des
brasileiras ... não se pode mesmo ... analisá-lo fora do
contexto brasileiro ... então quando se pede a TV a a altura o nível
... de uma televisão eu/ européia. (NURC/SP,
333, l. 302-306)
No exemplo anterior, a informante altera a formulação, pois troca o termo a altura por o nível. Com essa troca, ela procura empregar o termo mais adequado e preciso; como profissional de televisão demonstra que conhece o linguajar usual no campo das artes e espetáculos, da TV em parti-cular. A correção, nesse caso, adquire uma dimensão pragmática, pois está ligada à transmissão dos conteúdos.
Fato semelhante pode ser verificado no exemplo a seguir:
Exemplo 02: (...) ... tem alguma semelhança com a anta... com
esses ani/ esses pequenos mamíferos brasileiros... (NURC/RJ,
374, L. 395-396)
O informante iria proferir o termo animais, mas trunca-o, procurando
empregar a expressão mais precisa “esses pequenos mamíferos
brasileiros”.
b) Elemento gramatical
Exemplo 03: (...) é ... naturalmente recebiam a colaboração
que a imaginação da... do artista que fazia a flor...
(NURC/RJ, 355, l. 465-467)
Exemplo 04: (...) então esse... essa pessoa me procurou (...)
(NURC/RJ, 355, l. 1343-1344)
Ambos os exemplos citados revelam que a correção gramatical está ligada à busca de adequação: o falante efetua uma sondagem, para escolher o termo que melhor represente os referentes do seu discurso. Em outros termos: não são freqüentes as correções de “erros” gramaticais (concordân-cia ou colocação, por exemplo), mas apenas a busca do termo mais adequa-do.
c) Elemento fonológico-prosódico
A correção de natureza fonológico-prosódico
figura em um único exemplo do córpus:
Exemplo 05: (...) é da pe/ da prefeitura... e para procurador
do Es-tado...(NURC/SP, 360, l. 505)
O fato de haver um único exemplo de correção de
natureza fonológi-co-prosódico mostra que os falantes cultos
(aqueles que tem nível universitá-rio) preocupam-se em pronunciar
adequadamente os vocábulos, sem troca ou suspensão de fonemas,
nem transposição do acento tônico.
A tabela a seguir mostra a distribuição das correções
quanto à natu-reza do erro:
TABELA 1: Natureza do elemento corrigido
Número de ocorrências %
Lexical 132 53,6
Gramatical 113 45,9
Fonológico-prosódico 01 0,5
TOTAL 246 100
Como se já viu, tanto a correção lexical, como a gramatical, estão li-gadas à busca do termo mais adequado ou próprio em cada enunciado. Isso significa que mesmo a correção gramatical adquire uma dimensão pragmáti-ca, voltada que está à prospecção visando a encontrar o termo que melhor represente os participantes da cena representada em cada enunciado.
2.2. Proximidade em relação ao enunciado matriz
a) Correção adjacente
Exemplo 06: (...) eram três escritores nossos três contos
de escrito-res nossos um deles era a Morte da Porta-Estandarte.
(NURC/SP, 333, l. 752-754)
O segmento reformulador vem imediatamente em seguida ao enunci-ado-matriz.
No exemplo a seguir, porém, verifica-se que há alguns enuncia-dos
interpostos entre a matriz e a correção.
b)Correção não-adjacente
Exemplo 07: L2 pelo francês o:: filho do::
L1 o Camus não é?
L2
o Camus
L1 que era um:: parente do Albert Camus
(NURC/SP, 333, l. 765-768)
A distribuição das ocorrências de ambos os
tipos pode ser visuali-zada pela tabela a seguir:
TABELA 2: Proximidade em relação ao enunciado-matriz
Número de ocorrências %
Adjacente 242 98,4
Não-adjacente 04 1,6
TOTAL 246 100
O predomínio quase absoluto dos casos de correção aparente decorre das circunstâncias em que o texto conversacional é produzido: na interação face-a-face, a necessidade de clareza impõe-se por si, em cada passo do processo interacional. Por isso mesmo, a correção não pode ser postergada e deve seguir o enunciado que é “emendado”.
2.3. Interlocutor que desencadeia e desenvolve a correção
a) Auto-correção auto-iniciada
O mesmo interlocutor inicia e desenvolve o processo de correção:
Exemplo 08: (...) melhorou o aspecto (por) que você não
tem mais perigo daquela ... aqueles aumentos absurdos... (NURC/RJ, 355,
l. 402-404)
b) Auto-correção hetero-iniciada
Exemplo 09: L2 (...) normalmente com crianças Brigas que a gente
tem que repartir
L1
apartar
L2 tem que apartar:: isso toda hora...
(NURC/SP, 360, l. 491-494)
L1 inicia o processo de correção, ao dizer apartar. Esse
correção é incorporada por L2, que repete o termo,
por isso essa ocorrência é incluída na categoria em
apreço.
c) Hetero-correção auto-iniciada
Exemplo 10: L2 você se lembra o caso do::
[
L1
de programas Mundo Cão
(NURC/SP, 333, l. 1159-1160)
L1 antecipa-se a L2 e muda a formulação deste. Isso significa
que L1, ao mesmo tempo, inicia e desenvolve o processo de correção.
d) Hetero-correção hetero-iniciada
Exemplo 11: L1 (...) e pagava às vezes uma::
chamada ... eh . como é que se chama isso? termo de opção
né?
L2 termo de cessão
(NURC/RJ, 355, l. 803-806)
L2 corrige a formulação de L1, mas é este que dá
início ao processo, ao solicitar ajuda (“como é que se chama
isso?”) e enunciar a expressão “termo de opção”.
A tabela a seguir expõe a distribuição das variáveis
em apreço:
TABELA 3: Interlocutor que desencadeia e desenvolve o processo de correção
Número de ocorrências %
Auto-correção auto-iniciada 230 93,5
Auto-correção hetero-iniciada 2 0,8
Hetero-correção auto-iniciada 12 4,9
Hetero-correção hetero-iniciada 2 0,8
TOTAL 246 100
O predomínio da auto-correção auto-iniciada revela
que o próprio interlocutor preocupa-se em encontrar a formulação
mais adequada ao seu enunciado, como forma de assegurar o máximo
de clareza à sua formulação.
2.4. Dimensão
a) Total
Há, neste caso, uma reformulação total, caracterizada
pela substitui-ção de uma dada palavra ou expressão:
Exemplo 12: (...) um filme feito por uns alemães
que vieram
aqui fazer... filmar a Foz do Iguaçu
(NURC/RJ, 374, l. 513-514)
b) Parcial
O enunciado corrigido é retomado, ainda que parcialmente:
Exemplo 13: (...) sem ilustração sem
coisíssima alguma das pesso-as todas no hotel
do saguão do hotel dormiam... todas...
(NURC/SP, 333, l. 323-324)
TABELA 4: Dimensão da correção
Número de ocorrências %
Total 126 51,2
Parcial 120 48,8
TOTAL 246 100
Há equilíbrio entre correções totais e parciais, o que significa que ambas as dimensões correspondem à necessidade de assegurar a necessária clareza aos enunciados.
2.5. Fenômenos da língua falada associados à correção
a) Truncamento
Ocorre, no enunciado “emendado”, o truncamento de palavras.
Exemplo 14: (...) mas acontece o seguinte
é que ... eu com/ compra... quando eu fui
comprar... (NURC/RJ, 355, l. 522-523)
b) Alongamento ou pausa
O alongamento é indicado pelo sinal :: , e a pausa pelas
reticências.
Exemplo 15: (...) na::: na Tupi eles tem daquela::... aquela
moça
(NURC/SP, 333, l. 369)
c) Ameaça de perder o turno
Exemplo 16: L1 ele foi ele entrou por primeiro
L2 é o terceiro concurs/
L1 é o primeiro con/
L2
é o terceiro concurso
(NURC/SP, 360, l. 871-874)
d) Não há fenômenos da língua falada
Exemplo 17: (...) se bem que os produtores já viram já
perceberam então ele ele está sempre
adequado ao papel de homem(...) rural...
(NURC/SP, 333, l. 167-169)
TABELA 6: Fenômenos da língua falada associados à
correção
Número de ocorrências %
Truncamento 63 25,6
Alongamento ou pausa 145 59
Ameaça de perder o turno 17 6,9
Não se aplica 21 8,5
TOTAL 246 100
Em cerca de 85% das ocorrências verifica-se a presença de fenôme-nos que assinalam a hesitação na formulação do enunciado (truncamento, alongamento ou pausa). Esses fenômenos que a correção constitui igual-mente um índice da falta de planejamento prévio.
3. Conclusão
O exame das variáveis expostas está a demonstrar que
a correção corresponde à busca da formulação
mais adequada, do termo mais claro. Justifica o que foi dito sobre o predomínio
de correções voltadas para a busca do termo mais preciso
e adequado, de auto-correções e correções adjacentes
(o próprio falante sente a necessidade de precisar imediatamente
seu enunciado). Há equilíbrio entre as correções
totais e parciais e, bem assim, verifica-se o predomínio de fenômenos
da língua falada que denotam hesitação e planejamento
local.
Fica claro que a correção constitui um fenômeno
característico da língua falada e só pode ser compreendido
dentro do quadro geral da intera-ção face-a-face.
BIBLIOGRAFIA
BARROS, D. L. P. de (1997) “Procedimentos de
reformulação: a cor-reção”.
PRETI, D. (org.)
———. Análise de textos orais.
3 ed. São Paulo: Humanitas,
p. 129-156
BROWN, G. e YULE, G. (1983) Discourse analysis. Cambridge:
Cam-bridge University Press
CASTILHO A. T. (1995) “A língua falada e sua descrição”.
Para Segis-mundo Spina. São Paulo: Iluminuras, FAPESP, EDUSP,
p. 69-90
ILARI, R. Perspectiva funcional da frase portuguesa.
Campinas: Ed. da UNICAMP