QUESTÕES DE ESTILO: UMA LEITURA DE "LÁGRIMA DE ZIRCÔNIA", DE ZULMIRA RIBEIRO TAVARES
Rosa Maria de Carvalho Gens (UFRJ)
Ler textos de ficção feminina leva-nos a observar
determinadas questões referentes ao estilo, na exata medida
em que uma assinatura de mulher marca, muitas vezes, obras que se afastam
de uma retórica tradicional, plasmando-se através de um movimento
de escrita cuja voz básica incita à diferenciação
frente ao masculino. O estilo se torna, dentro desse painel, questão
privilegiada para o entendimento de uma escrita feminina e de uma
representação da mulher na literatura.
O objeto de nossas reflexões, aqui, é um pequeno
texto em prosa, "Lágrima de Zircônia", de Zulmira Ribeiro
Tavares, que permite configurar determinados elementos pertinentes para
o estudo de subjetividades marcadas pelo gênero, em um dado momento
histórico e cultural. Em suma, o que se pergunta parte de um "como":
como a escritora lidou com o feminino, como construiu um perfil de mulher,
através da linguagem, como revolveu a ordem simbólica e conseguiu
desenvolver estratégias para apreender (e desconstruir) o imaginário
sobre a mulher.
Antes, uma breve apresentação da autora. Zulmira
Ribeiro Tavares nasceu em 1930, em São Paulo. Não freqüentou
colégios e não possui curso universitário. Todas as
mulheres da família fizeram seus estudos em casa, sob o poder das
matronas, ligadas à oligarquia do café, segundo revela a
própria escritora.1
Em 1952, ingressou em um curso de formação em cinema
no MASP, e passou a trabalhar, durante algum tempo, como crítica
cinematográfica. Publicou um livro de poemas, Campos de Dezembro
(1955), outro de textos mistos, entre ficção e crítica,
Termos de Comparação (1974). No entanto, somente a partir
da década de 80 passa a produzir regularmente, recebendo atenção
por parte da crítica. Publica O Japonês de Olhos Redondos
(1982); O Nome do Bispo ( 1985); O Mandril (1988); Jóias de Família
(1990); Café Pequeno (1995) e Cortejo em Abril (1998).
O texto escolhido como base às reflexões deste
trabalho, "Lágrima de Zircônia", encontra-se em O Mandril.
Já que a autora, em "A casa desarrumada ? introdução
aos textos", constante da obra, revela que o leitor não deve
levar em conta a organização dada por ela ao material, dentro
do volume, seguimos seu conselho e passamos a ler "Lágrima de Zircônia"
em uma moldura gráfica "em branco, ausente." (M, p. 129)2
Assim desengastado, o texto se exibe com todo um aparato descritivo.
Não há um só diálogo em sua extensão;
a linguagem seca é o instrumento de precisão da autora; as
imagens vão se sucedendo num contínuo. Através delas,
a mulher aparece como um objeto de circulação?? está
em cena para ser vista ?, e o narrador enfatiza os traços que se
ligam a esse circuito de exposição.
A primeira imagem deflagrada no texto é "Mulher com sapatos
de salto". Do referencial, deduz-se a captação da personagen
feminina através da aparência e, ainda mais, por intermédio
de determinados elementos que são cartas marcadas em um certo comportamento
da mulher, ou melhor, em um dado estereótipo feminino.
No texto, os traços do estereótipo vão sendo
arrolados por meio de imagens insólitas. Mas voltemos à "mulher
com sapatos de salto" ? imagem condicionada pelo adjetivo "altíssimos",
reforçada por "salto agulha", comparada a armas que se voltam contra
quem as usa. Afinal, o equilíbrio deve ser mantido, mesmo que seja
"um disparate procurar apoio no que não tem base, só pontas"
(M, p. 67). As frases são curtas, recortando o movimento:
"um contorcionismo de láminas de cetim" (M, p. 67). Aos saltos altíssimos
une-se o chapéu, que inusitadamente faz sombra ao sol.
O cenário em que se inscreve a figura feminina é
um garden-party, apontando para relacionamentos de superfície e
de ocasião, em que cada pormenor do comportamento é julgado
pelos presentes. Curiosamente, o poder de estranhamento na construção
de imagens não é obtido através de elementos fora
do circuito do cotidiano. Ao contrário, a trivialidade dos objetos
e gestos componentes da imagens é freqüente. O que os torna
insólitos é o seu redimensionamento na organização
imagística, apoiado na gradação, em que o trivial
se torna surpresa.
Na reunião social, cambaleante, a mulher agora é
caracterizada por um terceiro elemento: o sorriso ("Sorri no percurso como
quem diz que o final só pode ser feliz."). Logo após, destruído
pela apresentação ??"os lábios foram pintados com
os cantos voltados para cima na direção das orelhas" (M,
p. 67). Máscara de situação, obtida pela maquiagem,
referenciada como uma "segunda natureza", sinaliza para uma linha temática
grata a Zulmira Ribeiro Tavares, que vem a desenvolvê-la na novela
Jóias de Família. Nesse ponto, ao inaugurar no texto a caracterização
da maquiagem, a área semântica ligada à mulher une-se
à das guloseimas, dos "comes-e-bebes" (M, p. 67). Assim "os cosméticos
são tão saborosos como os confeitos" e "seus pezinhos tremulam
sobre os saltos como a geléia de pêssego dentro das taças."
(M, p. 67)
O elemento masculino, no texto, surge por intermédio da
caracterização dupla: o "cavalheiro que a aguarda do
outro lado da mesa tem uma paciência de anjo, ainda que seja um corvo"
(M, p. 68). Entre parênteses, como um comentário à
margem, ilumina a noção de masculino, ligando-o ao animal
predador, mas apresentando-o como ??um cavalheiro com paciência de
anjo.
A tendência ao simulacro, à incorporação
do falso à dimensão do vivido encontra-se habilmente condensada
na imagem "lágrima de zircônia", que arremata o texto. Figura
da pedra falsa consubstanciada em "lágrima fúlgida", encerra
a cadeia metafórica e, junto a ela, acha-se o saber da personagem,
atando o sofrimento ao desejo de elegância. Transforma-se assim
o jogo de frivolidade (O retrato da mulher elegantemente vestida) numa
via-crucis, em que cada passo é uma busca de equilíbrio,
uma tentativa de manter-se em pé. Dessa forma, nada
de conforto nesta figura à altura da elegância por saltos
altíssimos; nada de liberdade de gestos, já que todo movimento
se afigura como uma possível queda, e, paradoxalmente, deve trazer
em si o equilíbrio aliado ao gesto gracioso. O prazer de agradar,
mantendo-se no centro das atenções, torna-se o eixo básico
de comportamento. E, se olharmos por um outro ângulo, as formas de
controle social são metaforizadas através da idéia
de manter o equilíbrio do corpo perante uma platéia.
Gilda de Mello e Souza, em estudo sobre a moda no século
XIX, aponta a ligação existente entre as classes sociais
e os sinais exteriores que as caracterizam:
Tais recursos, que à medida que se elevava na classe social
se tornavam mais exagerados, teriam como objetivo?? é o ponto de
vista de Veblen ? demonstrar através do desconforto, a todos os
observadores, que seu observador não estava empenhado em nenhuma
espécie de trabalho produtivo e pertencia, por conseguinte, à
classe privilegiada, à classe ociosa.3
Embora tais sinais tenham, muitas vezes, sofrido transformações
ao longo do século XX, continuam exercendo sua função
em determinadas circunstâncias. Dentro dessa linha de raciocício,
assume especial importância o espaço retratado: o garden-party.
Reunião ligada ao circuito das classes mais altas, a par da idéia
de colocar em jogo os elementos que dela participam, traz a de decoro,
do dever de comportar-se adequadamente. O espaço faz lembrar uma
outra narrativa de autoria feminina, "The garden-party", de Katherine Mansfield.
Nela, percebe-se a dimensão de choque entre a elite e o povo, entre
os comportamentos de conveniência e os reais objetivos de vida. Título
do livro da autora publicado em 1922, desvenda a atmosfera sutil dos papéis
fortemente hierarquizados.
Mas voltando ao garden-party (e ao texto) de Zulmira Ribeiro
Tavares: o processo retórico utilizado pela autora baseia-se na
seqüência de imagens, em que uma é lançada e desdobrada,
até puxar outra. As frases nominais contribuem para a configuração
de um ritmo tenso, quase reduplicando o próprio andar da personagem,
à procura de equilíbrio. Isolada no texto, a mulher em descrição
emerge como uma figuração estilizada da identidade feminina,
pautada na aparência. A autora habilmente desconstrói
a imagem marcada ao mostrar seus tropeços, sua falta de prumo, a
máscara que se torna sua face e, acima de tudo, a aceitação
de um papel de "mulher elegante" às custas da dor e do sacrifício.
A vitimização da personagem reveste-se de comicidade ao se
expor seu equilíbrio precário, em prol da decoração
pessoal.
Na cadência das frases, sobra a silhueta de mulher cambaleante,
presa a um modelo que a sociedade moldou e aceitou durante séculos,
só que agora a artificialidade parece ter perdido seus contornos
de superfície, penetrando na carne e tornando-se essência.
Sem as armas femininas?? salto, chapéu, maquiagem ? o que
iria sobrar, se até a lágrima simula o brilho do ornamento?
Se, por um lado, o uso do fake (de que a zircônia é
a máxima expressão no texto) e o culto à aparência
levam a pensar na falta de subjetividade, por outro podem refletir um abismo
de descrença, em que a elegância (pessoal) assumiria foros
de desencanto com o mundo em geral. A esse respeito, confira-se o pensamento
de Patrice Bollon, em estudo sobre os vários grupos sociais que
se marcaram por um modo diferenciado de comportamento e vestimenta:
O estetismo ? o que nós chamamos de estilo ? é
muitas vezes apenas uma diversão em meio a um vazio incurável,
uma compensação elegante do niilismo. A elegância ?
vista como modo de vida e quase ideologia ??começa onde termina
o absoluto. Para fazer a opção pela aparência, para
privilegiar a forma sobre o conteúdo, é preciso não
ter mais ilusões sobre o significado. É preciso mesmo ter
se resignado, de um certo modo, a não possuir o mundo "real". Todo
estetismo é evasão. A aparência funciona como um "paraíso
artificial", onde as dificuldades do real, como por milagre, são
abolidas.4
Se divisarmos essa possibilidade de interpretação,
o texto nos levará a outros caminhos de leitura. Qualquer que seja
o entendimento, no entanto, terá por base o culto à aparência,
levando a pensar no indivíduo com o poder de representar a personagem
de si mesmo. E é assim que "Lágrima de Zircônia" aciona
a recusa a interpretações fixas no que diz respeito à
representação do feminino, provocando um novo olhar sobre
a banalidade, traduzido por traços ensaísticos no perfil
descritivo. Ao tomar por base a figura feminina frívola, na sua
superfície, esvazia os contornos da futilidade, trabalhando com
os limites entre o grotesco e a representação social. Para
além das aparências, o texto de Zulmira Ribeiro Tavares coloca
em questão o próprio conceito de autenticidade, paralelamente
à potencialização da idéia de uma identidade
inatingível, nesses tempos pós-modernos.
NOTAS
1 LAPOUGE, Maryvonne & PISA, Clélia. Brasileiras.
Paris: des femmes. 1977. p. 132
2 Todos os exemplos de O Mandril partem da edição
de 1988, da Brasiliense. A obra será referenciada por M.
3 SOUZA, Gilda de Mello e. O espírito das roupas: a moda no
século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 125
4 BOLLON, Patrice. A moral da máscara. Rio de Janeiro: Rocco,
1993. p. 230.