GERMANISMOS SOB A FORMA DE CALQUES
NO RETO-ROMÂNICO

Mário Eduardo Viaro (USP)

Os vários contatos que tiveram os falares reto-românicos com a língua alemã, tanto na Suíça como na Itália, se revelam de muitas formas, desde a fonética até a morfossintaxe. Sobretudo o léxico mostra-se como a parte do sistema lingüístico que é mais afetada. Entre os casos mais curiosos de interferência lingüística, os falares reto-românicos, tanto dos Grisões quanto dos Alpes Dolomíticos, possuem estruturas que envolvem verbo+advérbio de lugar, que se assemelham muito aos trennbare Verben do alemão. No entanto, alguns desses calques, que pareceriam evidentes germanismos, têm usos que não concordam com o alemão.
ANDRY (1993:25,30) fez um levantamento dos verbos do engadino valáder que têm essa estrutura. Mostra que o verbo mais prolífico é ir, com quinze combinações, seguido de gnir “vir”, com treze. Do ponto de vista dos advérbios, o mais comum é oura “fora”, com 98 combinações, ao lado de aint “dentro”, com 84. Neste artigo será feita uma análise com essas duas bases verbais: “ir” e “vir” e duas idéias adverbiais: “para dentro” e “para fora”. Os quatro verbos resultantes seriam, em alemão eingehen, ausgehen, einkommen, auskommen (ainda com os sentidos locais básicos no alemão suíço iigaa, uusgaa, iicho, uuscho, mas no alemão oficial, mais bem indicados como hineingehen, hinausgehen, hereinkommen, herauskommen), ou em latim, ineo, exeo, invenio, evenio.
1) “Ir para dentro”: o verbo latino ineo significa “entrar”. Cedo, desenvolve uma interpretação militar, restringindo-se, muitas vezes, à situação específica de “entrar em uma região”, ou seja, “invadir”, “atacar”, “penetrar” (como incedo ou invado). Pelo mecanismo da generalização, uma invasão pode ser compreendida como um empreendimento, portanto, para ineo encontram-se também valores como “empreender”, “fazer”, “meter-se a fazer”, “pôr-se a”, daí, a idéia de “iniciar um empreendimento”, ou ainda mais amplamente “iniciar”, “começar” (como ingredior).
Como derivados de formas nominais de ineo, originam-se initium “início”, initiare “iniciar” e a forma vulgar *cominitiare, que originou o português começar.
É curioso que na etimologia de “empreender” se deduz algo como *imprehendo (inexistente no REW, mas presente no derivado imprensibilis em Aulo Gélio, noctes Atticae 11,5,4), ou seja in+prehendo “pegar (nas mãos)”, equivalente vulgar de incipio, composto de in+capio, com o mesmo significado de “tomar”, “pegar”. Nas línguas românicas, incipio originou romeno începe e sobresselvano entscheiver, subselvano entschever, sobremirano antschever (enquanto o engadino utiliza cumanzar). De in+capto, portanto, incepto encontra-se no português, no catalão e no dialeto de Salamanca encetar (REW 4348). No dicionário Zingarelli, encontra-se imprendere como sinônimo de incominciare; no Petit Robert, entreprendre equivale a commencer; no Diccionari de la llengua catalana, emprendre tem entre as acepções començar una cosa. Verbos como inchoo e injicio no latim também têm os valores de “empreender” e de “começar”.
O sentido derivado de “começar” de ineo encontra-se nas línguas românicas para o verbo “entrar”. Provam-no frases em português como “o verão entrou tarde” ou, no italiano, mi entra la paura significando “começo a ter medo”. Resta, por conseguinte, nesses casos, uma dúvida: o sentido de “começar” é derivado imediatamente do valor de “entrar” ou de “pegar”? Pelos exemplos já dados, observa-se que “começar” não nasce imediatamente de “entrar”, mas de “invadir”, portanto, de “empreender uma invasão”, o que torna a derivação bastante particular ao latim. No segundo caso, “começar” deriva diretamente de “pegar”, fato que se entrevê independentemente da língua, o que se pode ver fora da área da Romanística: em alemão, anfangen “começar” é composto de fangen “pegar”; no português regional do Brasil, garrar, forma aferética de agarrar, tem o valor de “principiar” (AMARAL 1982:137), sem falar de expressões em português como “botar a mão na massa”, portanto, “iniciar algo”, ou ainda fora do contexto indo-europeu, vê-se no chinês zhuóshòóu, que literalmente significa “usar a mão”, também a idéia de “começar” (COWIE & EWISON 1985: 587). Dentro do contexto reto-românico, encontra-se no ladino de Comélico, a seqüência ciapàs inzi “começar”, literalmente “pegar dentro”, que traduz o latim incipio. Além disso há conexão íntima entre a idéia de “empreender” e a de “pegar”, como já visto. Por outro lado, verbos como o alemão einleiten “conduzir para dentro”, podem originar o valor de “introduzir alguém (num assunto)”, portanto “iniciar” essa mesma pessoa nesse assunto. Semelhantes a esse verbo estariam, ainda, einsetzen “colocar para dentro, estabelecer”, eintreten “pisar para dentro, adentrar”, hereinbrechen “romper para dentro, irromper”, einsteigen “subir para dentro, embarcar”, que derivam o valor de “começar”. Além do mais, o prefixo ein- muitas vezes serve para marcar valor incoativo em alemão: eindämmern “alvorecer”, einschlafen “adormecer”, produtivo nos dialetos: einnopfezn e einruasln, ambos “adormecer” no dialeto bávaro (SCHABUS 1982: 138)
Em reto-românico o significado básico de “entrar” está sempre presente, estendendo também para a área dos dialetos italianos do norte: o milanês diz, por exemplo, andá dénter, para “entrar”. No dialeto dolomítico badioto, ji ite também “começar”: l mëis va ite kul bel, va fora kul burt “o mês começa com tempo bom e termina com ruim” ou no gardenês i dis da cian va íte cun burt “os dias de cão começam com tempo ruim”. Observa-se no mesmo exemplo que o oposto, ou seja, “terminar” é expresso com ji fora, “ir para fora” (PIZZININI:1966 sv). No reto-românico suíço é rara essa acepção temporal, embora algo parecido apareça para traduzir o verbo angehen do alemão: il motor va buc en “o motor não dá a partida” (EBNETER 1991b). O mesmo não se pode dizer para o verbo alemão eingehen, também literalmente “ir para dentro”, que não traz, segundo o Duden, a acepção de “começar”. No entanto, aparece dicionarizada na variante de Vorarlberg: eingehnds der Woche “no começo da semana” e, no final do séc. XIV, na expressão ze ingaendem brâchot “no início do tempo da aragem”, presente no direito de Feldkirch, em oposição a ausgehnds April “no final de Abril” (JUTZ, 1960 sv). Se se trata de latinismos, é difícil de decidir.
Por outro lado, da ampliação de eingehen gera-se o valor de “chegar”, presente na linguagem comercial. Com esse sentido ampliado, “entrar” aparece em outras línguas, até mesmo no português. Característico, porém, do alemão, é uma outra perspectiva para o objetivo do movimento. Se o latim especializou o sentido de ineo para “ir dentro de algo exterior”, em alemão, há uma particularidade: eingehen significa “ir dentro de si mesmo”, num movimento que facilmente gera sentidos como “encolher” ou “murchar” e daí, “morrer” (normalmente animais ou plantas), donde surgem outros sentidos negativos como “desfazer” (sociedade) ou “perder” (no esporte), em última análise “acabar”. Portanto, o oposto da derivação latina.
Dessa forma facilita-se a prova do empréstimo semântico no reto-românico. Nas variantes suíças, eingehen equivale ao sobresselvano ir en, ao subselvano e no engadino ir aint e ao sobremirano eir aint. Como todos têm a mesma estrutura (“ir+dentro”), é consensual seu uso como “entrar”, equivalendo mais ao do alemão suíço inegaa ou igaa (LOREZ-BRUNOLD 1987 sv) do que propriamente ao alemão oficial, que diria melhor nesses casos hineingehen, hineinfahren, hereingehen, hereinfahren, einsteigen, eintreten. Também o rumantsch grischun tem a forma ir en, como o sobresselvano. Da mesma forma no ladino dolomítico encontra-se jí ite (gardenês, fodom, badioto); em Cibiana di Cadore, dhì inthe; em ampezzano sì ìnze ou em Comelico, dì inzi, como no dialeto alemão tirolês aingien (SCHATZ 1955 sv). O significado de “encolher” (assim como “morrer (animal/ planta)” e “falir”) se encontra em todas variantes reto-românicas suíças, assim como “definhar”; também ocorre no alemão tirolês, mas não é dicionarizado entre as formas dolomíticas. Por outro lado, a interpretação particular alemã de ein- como “para dentro de si” não é de todo ausente no ladino dolomítico, assim, “encolher” se diz dèr ite e “enrugar” se traduz por scirèr ite no fassano (TAJINA 1998 sv, cf. schirêr via, já no Bifrun). Também em fodom, dé ite significa “encolher”, mas também “cair (raio)” (alemão einschlagen). Também em latim o prefixo in- aparece com interpretação parecida na forma vulgar *incolligo, étimo da palavra “encolher”. Em alemão ainda ein- com esse valor aparece em einschrumpfen “encolher” e, dialetalmente (bávaro), eintrocknen, einschrumpln, einfolln, einspringen.
Há um outro ponto de contato entre “entrar” e “pegar”, que é o significado derivado de “entender”. Em latim, intendo “estender para dentro (do pensamento alheio)” deu origem ao português “entender”, assim como comprehendo “abarcar tudo (i.e todo o pensamento)” é o étimo de “compreender” e concipio, donde “conceber”. Em alemão, temos para “entender” também ambos componentes: “pegar” em begreifen, erfassen; “entrar” em Einsehen ou na curiosa forma coloquial intus haben, intus kriegen, que é claramente um latinismo. No alemão, não só se extraem o valor, para eingehen, “compreender” (cf. alemão antigo mir gât in “eu entendo” e em Vorarlberg es will mir nit eingehen “ele não vai me entender”), mas também “aceitar”, “consentir”, “concordar”, “entrar em acordo”. A este último sentido pode-se aliar situações muito variadas: ein Risiko eingehen “aceitar um risco”, eine Wette eingehen “entrar em acordo, quanto a uma aposta, portanto, fazer uma proposta”, eine Ehe eingehen “combinar quanto ao casamento, donde, contrair casamento”, eine Verbindung eingehen “juntar metais, fazer uma liga (metálica)”. No rumantsch grischun há coincidência de uso com eingehen na construção auf jemanden eingehen “ter consideração por alguém”, que lhe é equivalente, como calque até mesmo da regência preposicional sin=auf: ir en sin insatgi. Curiosamente usa-se, muitas vezes, em engadino, o sinônimo entrar em algumas expressões, algumas vezes somente com o complemento preposicionado, como em “levar em consideração um pedido de alguém” (alemão auf eine Bitte jemandes eingehen lit. “entrar sobre o pedido de alguém”), que se diz entrar sül giavüsch da qualchün. Também com o sentido específico “familiarizar-se com as idéias de alguém” (alemão in jemandes Ideen eingehen lit. “entrar dentro nas idéias de alguém”) tem-se, em engadino, entrar aint illas ideas (puter idejas) da qualchün. No rumantsch grischun, segundo o Pledari Grond, aconselha-se, em vez da preposição si/ sü, o uso de en neste caso: entrar en ina dumonda “considerar uma questão” (alemão auf eine Frage eingehen), ou seja, uma regência similar a de entrar en detagls “entrar em detalhes” (al. auf Einzelheiten eingehen). Seja como for, são evidentes calques do alemão, não dicionarizados para os dialetos dolomíticos.
De um modo geral, pode-se dizer que os calques germânicos quanto à combinação “ir para dentro” são evidentes, no entanto, o significado derivado de “começar”, presente no ladino dolomítico, parece mais ligado ao latim ou a uma oposição ao sentido derivado “terminar”, provindo de “ir para fora”. Em friulano, a combinação correspondente, lâ indentri, partindo possivelmente de “entender” ou “entrar em detalhes” chega a derivações particulares, como: “aprofundar”, “exagerar”, “ultrapassar os limites”, porém, um calque germânico seria de difícil explicação nesse caso. Por outro lado, há derivações presentes no alemão (como a especialização bávara de “entrar numa armadilha”, portanto, “ser enganado”), que não se registram nos dicionários dos falares reto-românicos, mas seriam facilmente deriváveis em outras línguas fora do circuito germânico (cf. expressões do português brasileiro, como “entrar numa fria”, “entrar pelo cano”, “entrar bem” entre outras).
2) “Ir para fora”: Menos prolífica é a capacidade de derivação desta combinação. Do latim exeo derivam-se os valores de “sair”, seja de um local, seja da memória (“esquecer-se”), seja da vida (“morrer”). Da ação de sair em público nasce a de “ser divulgado”. Quando a ação de sair é, porém, voluntária, pode derivar o valor de “meter-se em marcha”, ou no resultativo de “atingir”, portanto, “terminar”. Do ponto de vista de quem está no objetivo, pode significar “provir”. Quando algo sai dos limites estabelecidos, pode derivar os valores de “exceder”, “ultrapassar” (também excedo, egredior). Quando se imagina que se sai da frente de algo, que está no meio do caminho, têm-se interpretações como “desviar”, “evitar”, donde “empurrar”. Também no alemão, ausgehen significa originalmente “sair”, “partir” de algum lugar, portanto “proceder” dele, como em latim. Do mesmo sentido deriva-se o de “pronunciar-se” (sair da boca) e de “irradiar” (saírem raios de algo). A finalidade da saída se entrevê em construções como auf etwas ausgehen “sair à procura de algo”, portanto “pretender (obter)”.Uma vez interpretado no seu valor de “sair tudo, até o fim”, de ausgehen nasce um valor perfectivo de “esgotar”, “acabar”, “terminar” donde o resultativo “faltar”, qualquer que seja a coisa que falte, decorrente do valor de cessação: luz, cor, força, respiração entre outras, donde, em Vorarlberg se vêem também o valor de “morrer”(dr Wi gaat us “acabou o vinho”; es gaat us mit ihm “ele está morrendo”) e de “falir”. No falar austríaco, o resultativo gerou para ausgehen os valores de “ser suficiente” e de “ser conhecido” (o mesmo de auskommen, veja 4 abaixo). No antigo ûzgân há outros sentidos, próximos aos do latim: “realizar”, “decidir”, “perder-se”, “desviar”, “desistir-se”, “decorrer”, “recusar”, “renunciar”.
Todas as variantes reto-românicas têm o significado básico de “sair”. O sobresselvano tem ir ora, com o sentido específico de “perder (cabelos)”, que se vê também no alemão de Vorarlberg: d’Haar sind ihm usggange “seus cabelos caíram” . O subselvano ir or significa “sair”. O valáder ir oura e o puter ir our usam-se no sentido de “sair”, “proceder”, “terminar”, “perder (cabelos)”, “desaparecer (manchas, cor)”. EBNETER (1991a:sv) ainda aponta outros usos: ir oura sün quella da pudair vender la vacha “pretender vender a vaca” (alemão darauf ausgehen, die Kuh verkaufen zu können), ir our’ a piz “gastar-se na ponta”. No ladino dolomítico, tem-se, no fassano, jir fora “relaxar” (cf. sobresselvano schar ir ora “deixar livre, pastando”) ao lado de “sair” (jir fora da usc, “sair da casa”), “desviar”(jir fora da streda, “desviar da rua”), “enlouquecer”(jir fora de sé), “tirar do lugar” (jir fora de post). Com o valor de “sair” aparece também em fodom (jí fòra), em Comélico (dì fòra) e em Cibiana di Cadore (dhì fòra ou dhì de fòra), que possui uma curiosa construção dhì fòra cu i diéde “ficar com os dedos de fora (porque o sapato tem um furo)”. O dialeto lombardo de Lugano traz uma forma equivalente, ná fö, com os sentidos de “ser destruído”, “derreter” além de “sair”, oposto de ná dent “entrar” (SPIESS 1986:420-1). Também no milanês andà dénter e föra significa “enlouquecer”, ao lado de andà föra, simplesmente “sair”. O bergamasco diz ndà fó para “sair” (ANDRY 1993:1).
Especialmente interessante é a derivação “esquecer”, que em muitas variantes reto-românicas se expressa como “ir fora da cabeça” (cf. italiano dimenticare) ou, mais raramente, “ir fora do coração” (italiano scordare): em valáder seis nom m’es i oura dal cheu “seu nome me saiu da cabeça”, i.e “não me lembra”, em gardenês jir fora del cef, em friulano lâ fûr dal châv ou lâ fûr dal cûr, em Cibiana di Cadore dhì fòra de ménte. Também para “enlouquecer”, “ficar fora de si”, “perder a cabeça” a expressão desusada do italiano uscire dal seminato ou uscire di strada se vê em friulano lâ fûr dai semenâts, no fassano jir fora dal semenà, em gardenês jí ora de streda, em ampezzano, si fora de testa/ òula/ streda, em Cibiana de Cadore dhì fòra de tèsta.
A confusão do alemão meridional entre auskommen e ausgehen reflete-se também nos falares reto-românicos. Assim, o sentido de “resultar” é comum: leer ausgehen “não dar em nada” se encontra no valáder ir oura vöd ou quei va oura en nuot. Também no apêndice dos germanismos no método de sobresselvano de CAPPUCCINO (1904: 363) lê-se nus lein mirar co quei va ora “queremos ver como isso vai terminar”. A passagem, porém, de “sair”, para “terminar” e, por fim, “resultar”, porém, é facilmente derivável, independentemente da língua. Em ampezzano s’in si fora di raza “extinguir-se”. Em fassano, jir fora, além de “sair” pode significar “terminar”, “extinguir-se”, “perder-se”, “morrer”, “faltar” (como ausgehen), mas também “difundir”, “divulgar”, “acontecer” (como auskommen): l’è jit fora la lum “faltou a luz”, l’è jit fora la ciàcola “espalhou-se o boato”. Também no piemontês andé fòra dij feuj “perder a paciência”. No friulano, lâ fûr apresenta apenas a idéia perfectiva de : “não estar mais (na moda, no uso)”, “terminar (uma viagem)”, donde “chegar”, “arrefecer”, deixando para vignî fûr o sentido de “divulgar” etc.
Enquanto os valores reto-românicos para o correspondente a “ir para dentro” têm, em muitos momentos, indubitável relação com o alemão eingehen, o mesmo não se pode dizer de “ir para fora”, cujas derivações latinas são muito próximas das do alemão. Também poderiam ter se derivado independentemente. Exceções se vêem nas expressões: auf Gewinn ausgehen “visar ao lucro” tem-se em engadino ir our(a) sül guadagn. Por outro lado, “desfazer um nó” que em alemão seria den Knoten aufgehen se diz ir oura no engadino. Em gardenês, jí ora te porte seria traduzido como “estar voltado para o caminho”, correspondendo ao alemão hinausgehen auf den Gang.
3) “Vir para dentro”: Em latim, invenio “vir para dentro de” acaba sendo interpretado mais freqüentemente de maneira abstrata, como se uma idéia, um pensamento ou pensamento viesse para dentro da mente, daí valores como “achar”, “encontrar”, “inventar”, “descobrir”, “reconhecer”. Nenhum desses valores se encontrará no reto-românico, exceto nas indicações em valáder do DRG: i m’es gnü aint in quel mumaint ch’è vev’invlidà “ocorreu-me que havia esquecido as chaves” e uoss’am vain que aint, dschet Margretta (...) que ais ella “e agora percebi, disse Margretta, que foi ela” (vol. 1, p. 147). Paralelamente, se o mesmo movimento é interpretado do ponto de vista da posse, o latim invenio passa a significar “receber”. Em alemão, a idéia de “vir” e “receber” também se entrecruzam, como se vê no verbo bekommen. No entanto, einkommen, abandona a antiga idéia de “vir para dentro” (presente no alemão antigo înkomen) e passa a ter ambas interpretações, a saber, “receber (dinheiro)”, assim como hereinkommen, ou, semelhantemente ao latim, “ocorrer (uma idéia)”. Esse verbo é pouco utilizado: no esporte, como “chegar/ atingir um objetivo” ou significando “(dirigir-se a alguém para) fazer uma solicitação”. Em alemão, “estar dentro” deriva a idéia de “caber” (hineingehen, hineinpassen, também rumantsch grischun ir en), ou seja, “caber justamente”, “ser bem aproveitado”(hereinkommen), “familiarizar-se, sobretudo com um trabalho”, “conseguir entrar numa posição”(hineinkommen). Segundo essa interpretação explica-se o fassano vegnir ite, que pode significar, além de “entrar”, também “acomodar-se”. Em todos os falares reto-românicos, encontra-se quase exclusivamente o valor local, que também se vê no alemão suíço iicho, embora a combinação vegnir en, do rumantsch grischun, quase não se encontra dicionarizada nas variantes suíças, exceto no engadino gnir aint. No fassano, vegnir daìte opõe-se a jir daìte, uma vez que o primeiro significa “entrar, aproximando-se do falante” e no segundo “entrar, afastando-se dele”. Registra-se o mesmo verbo em Cibiana di Cadore, vegnì deinthe, significando “entrar”.
Em oposição a “ir para dentro”, a forma “vir para dentro” parece uma especialização que não ultrapassa muito os limites do sentido básico local. Eventuais derivações do alemão não parecem claramente nos falares reto-românicos. Até mesmo no sentido de “receber”, o engadino prefere ir aint. Uma expressão, do sobresselvano, el vegn ni en ni ora “ele não sabe de nada” não é um calque perfeito, pois em alemão se diz er weiß weder ein noch aus.
4) “Vir para fora”: essa combinação é tão produtiva quanto seu oposto “ir para dentro”. O latim evenio, além do significado de “sair”, desenvolveu o valor de “resultar”, “acontecer”. Além disso, o movimento de “vir para fora” pode ser entendido de maneira resultativa, ou seja “chegar”. Como ineo, a ação de “sair” pode ampliar-se, para simplesmente “realizar”, “empreender”. No alemão antigo, ûzkomen desde cedo adquiriu uma grande gama de derivações: “vir para fora”, “divulgar”, “tornar-se conhecido”, “familiarizar-se”, “tornar-se famoso”; por outro lado, “decorrer” “terminar”, “acontecer”. No alemão moderno, auskommen significa basicamente “conseguir viver com que se tem”, “conseguir se virar”, especializando, dessa forma, o significado básico (“sair de uma situação difícil”). Esse valor se encontra também em todo alemão meridional, tanto bávaro como alamânico. O mesmo se dá com o valor de “conseguir conviver com alguém”, “tolerar”, “conseguir entender-se com alguém”. O sentido básico local aparece regionalmente: “conseguir fugir (ladrões, bandidos)”, “sair (do ovo)”, “irromper (incêndio, boato)”. A idéia de “ser famoso” aparece em herauskommen, mas também ainda se vê regionalmente em auskommen. O verbo herauskommen significa ainda “sair para o mercado”, “publicar”, “ter sucesso”, “ganhar (no jogo)”, “ter valido a pena”; por outro lado, também “ser evidente”, “ser nítido”, do ponto de vista de algo que emerge visualmente. Já se se entende algo que sai da boca, tem-se “expressar-se”, “formular uma idéia”, “conseguir pôr para fora uma idéia (com certa titubeação)”, ao contrário de herausgehen que pode significar “expressar-se, com o tempo, mais desenvoltamente”. Ao encarar-se a saída como uma perda, o mesmo verbo pode ainda ter o valor de “perder (alguma habilidade que tinha)”. Interpretando a saída como “sair do padrão”, pode-se entender o verbo como “não acompanhar (ritmo)”. Na Suíça, herauskommen é usado ainda com o sentido de ausgehen “afigurar-se”. O verbo herauskommen, desenvolve ainda, da idéia de “empreender”, como em ineo, um aspecto incoativo, que se vê nitidamente no significado “começar um jogo de cartas”, ao passo que hinauskommen tem um aspecto resultativo “atingir”, “chegar a”, “conseguir passar”, “transbordar”. Similarmente, herausgehen enfatiza a partida, derivando o significado de “afastar-se” e hinausgehen focaliza o ponto de chegada, podendo ser entendido como “extrapolar”, “ir mais longe”.
Muitos desses sentidos específicos aparecerão no reto-românico, tornando inegável o calque alemão. O Pledari Grond registra: vegnir or da letg “sair da cama”, “levantar-se”; vegnir or dal concept “ficar confuso” (alemão aus dem Konzept kommen ou drauskommen, cf. sobremirano neir or digl concept); “sair (do ovo)”; “ficar famoso”, “sobressair”, “distinguir-se”, “destacar-se”; “irromper”, “aparecer”, “surgir”, “transbordar”; “desembuchar”. O sentido básico aparece até mesmo no bergamasco: l e ñit fó “ele saiu” (HELLER 1961:28). O sobresselvano ainda deriva o significado de “não estar mais”, “desaparecer”, “terminar” (como ausgehen): vegnir ord moda “sair da moda”, vegnir ord egls “desaparecer de diante dos olhos”, vegnir ord marveglias “apagar a curiosidade”, vegnir ord ils deivets “quitar as dívidas”, vegnir ora culla buorsa “pagar demais”.
O valor específico do alemão “conseguir subsistir com o que tem” é compartilhado nas variantes suíças, todavia, com outros calques: vegnir atras, no sobresselvano, vagnir or no subselvano; neir tras, no sobremirano, gnir our(a) no engadino, o que mostra uma concorrência de durchkommen “conseguir passar”, “atingir o objetivo”, “ter sucesso” mas também “subsistir”, como auskommen (cf. também português “conseguir passar com pouco dinheiro”). CAPPUCCINO (1904: 397) registra para o sobresselvano também o mesmo uso em frases como culs daners vegnel jeu buc ora “eu não consigo passar com esse dinheiro” ou ei vegn nuot or da quei “isso não serve”. Também no sentido de “tolerar”, o sobremirano diz neir ve (que corresponderia a um hipotético *hinüberkommen, ou melhor, ao sinônimo hinkommen), enquanto o sobresselvano diz vegnir atras e o engadino, tanto gnir our(a) como gnir tras/ tres. No ladino dolomítico, encontra-se valores como esses, no dialeto de Gadertal: gni fora col paiament “sobreviver com o pagamento” ou gni fora bun col vishin “ter boas relações com os vizinhos”, kon kesta lagna gnons fora dut invern “com essa lenha conseguiremos passar todo o inverno”, gni fora kun duc saori “dar-se bem com todo mundo” (HELLER 1961: 41, 78). Um sentido específico aparece em sobresselvano: “conseguir encontrar o caminho”, “conseguir entender”: jeu vegnel buc ord quella scartira “não entendo esse escrito”.
Em engadino, gnir our(a) significa “aparecer”, “despontar”, “emergir”, “ser descoberto”, “tornar-se conhecido/ público”, “publicar-se” (cf. italiano venire fuori) assim como sobresselvano vegnir ora. O dialeto de Gadertal também traz a mesma interpretação, uma vez que gni de fòra pode significar “ser publicado” e kesta kosa vagn pa bagn fora da “isso logo vai ficar público”. Também em friulano, vignî fûr pode ser tanto “emergir”, “surgir (dente do siso)”, como “ser publicado”, “descobrir-se”: s’a ven fûr, guai a mi! “se isso é descoberto, ai de mim!”. Em Cibiana di Cadore, o mesmo acontece, l’é vegnù fòra an bél libro “publicou-se um belo livro”. Com o valor de “emergir” a combinação está ainda dicionarizada para o fassano e o ampezzano.
De “sair”, “provir”, “derivar” nasce o valor de “resultar”, que aparece não só nas variantes suíças, mas também nas italianas. A expressão equivalente ao português “dar na mesma”, expressa em alemão por das kommt aufs gleiche heraus “resultar no mesmo”, em engadino se diz, à maneira de um calque, que vain oura sün l’istess quint. Também em sobresselvano: la finala vegn ei ora tutina il medem “no fim tudo dá no mesmo”. No fassano, o valor de “resultar” aparece em expressões como che vegnàrel pa mai fora de el? “que será dele?”. Quando o resultado é algo desejado, temos o equivalente ao francês réussir ou italiano riuscire (derivados de uscire, do latim exeo) “conseguir”, sentido registrado no sobresselvano, no fassano, em Cibiana di Cadore e em ampezzano. A expressão “não ir para a frente com o trabalho” se expressa, porém, em alemão como mit der Arbeit nicht vom Fleck kommen, que se traduz diferentemente nas variantes reto-românicas: betg neir or d’en fatg cun la lavour, em sobremirano e vagnir or d’egn fatg, no subselvano. Também nesse âmbito aparece a tradução “ganhar” no fassano. Por outro lado, em fodom, sen veñí fòra “sair-se bem (de uma situação perigosa ou difícil)”, como no sobresselvano vegnir ord prighel “estar fora de perigo”.
No sobresselvano, vegnir ora cul marmugn “desembuchar” encontra paralelo no dialeto de Gadertal: tgine k’ella ne gnè fora kun düt “até que ela desembuche tudo”. Observe o uso da mesma preposição que a utilizada no italiano venire fuori con “dizer coisas inesperadas”.
Em Comélico, ñi fòra “sair”, “ficar fora de si”, “enlouquecer-se”. A mesma derivação se encontra em valáder gnir oura d’clocca; puter gnir our d’clocha; sobresselvano vegnir ord da senn, assim como em Cibiana di Cadore, vegnì fòra de brìscola/ de giodìthio.
Fica clara a interferência não só do alemão, mas também do italiano nesta construção, no entanto, algumas derivações se tornaram particulares do reto-românico.
À guisa de uma conclusão, percebe-se um acúmulo de significados em duas combinações: “ir para dentro” e “vir para fora”, que se revelam mais produtivas que “vir para dentro” e “ir para fora”, sentidas como mais especializadas e, portanto, sem derivações muito distantes de seu valor básico local, dificultando, assim caracterizar o processo de calque. Somente um trabalho de geografia lingüística (não só sob uma abordagem sincrônica, mas também diacrônica) na ampla região em que a estrutura verbo+advérbio aparece, com mapeamento do uso dessas expressões e de seus valores semânticos específicos, poderia ajudar na decisão se houve interferência do alemão ou do italiano sobre os falares reto-românicas ou se houve alguma inovação em algumas dessas construções, que devem ser estudadas sempre individualmente. Um estudo de línguas fora dessa área e que têm estruturas parecidas (por exemplo, o inglês ou, melhor ainda, outras línguas não-européias) também ajudaria a esclarecer os casos onde há derivações que independem do fator contato.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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