LINGÜÍSTICA E FILOLOGIA ENCONTROS E DESENCONTROS
Violeta Virgínia Rodrigues (UFRJ)
Nada mais oportuno do que em uma Mesa Redonda sobre Ensino de Filologia
discutirem-se os encontros e desencontros entre esta e a Lingüística.
Tal discussão encontra respaldo na seguinte indagação:
que conhecimentos os alunos de graduação e, porque não
dizer também, de pós-graduação em Letras e
Lingüística têm a respeito do assunto? A resposta a esta
questão requer uma pequena volta ao passado, que seguirá
os mesmos passos de Mattos e Silva (1996).
Para tanto, resgata-se a definição de Filologia apresentada
por Câmara Jr. (1974:178):
Helenismo que significa literalmente “amor à ciência”,
usado a princípio com o sentido de erudição, especialmente
quando interessada na exegese dos textos literários. Hoje designa,
estritamente, o estudo da língua na literatura, distinto portanto
da lingüística. Há, porém, um sentido mais lato
para filologia, muito generalizado em português; assim Leite de Vasconcelos
entende por filologia portuguesa “o estudo da nossa língua em toda
a sua plenitude, e o dos textos em prosa e verso, que servem para documentar”
(Vasconcelos, 1926, 9), o que vem a ser o estudo lingüístico,
especialmente diacrônico, focalizado no exame dos textos escritos
em vez da pesquisa na língua oral por inquérito com informantes.
Nota-se, no excerto supracitado, uma referência à Leite
de Vasconcelos e à concepção do que seria no
sentido mais lato a filologia; acepção essa vigente na primeira
metade e ainda na passagem para a segunda metade do século
XX.
É inegável a influência do filólogo português
nas obras dos brasileiros Serafim da Silva Neto, Antenor Nascentes,
Sousa da Silveira, entre outros, declaradamente filológos-discípulos
(cf. Mattos e Silva, 1996:4). Ressalte-se aqui como Vasconcelos conceitua
Filologia:
A Filologia abrange pois: História da língua (Glotologia,
Glótica, Lingüística e seus ramos) com a Estilística
e a Métrica; História literária: 1. História
da literatura (em sentido amplo) com a crítica literária;
2. Bibliografia. Faz-se aplicação prática da Filologia
quando se edita criticamente um texto. (1959:8)
Nas minhas preleções entendo de ordinário Filologia
Portuguesa o estudo da nossa língua em toda a sua amplitude, no
tempo e no espaço, e acessoriamente o da literatura, olhada sobretudo
como documento formal da mesma língua. (1959:9)
Comparando-se a concepção do Mestre com a de um de seus
discípulos - Silva Neto (1957:XII) -, percebe-se ainda a influência
do sentido abrangente e dominante da Filologia na primeira metade do século
XX no Brasil:
A Lingüística é uma ciência de princípios
gerais, aplicáveis a qualquer língua. Nessa conformidade,
não julgamos aconselhável falar, por exemplo, em Lingüística
Francesa ou Inglesa, com o fato de referirmos estudos acerca dessas línguas.
A Lingüística parece-nos sempre geral.
A Filologia, sim, encerra todos os estudos possíveis acerca
de uma língua ou grupo de línguas... dizemos todos os estudos
possíveis, porque, como se sabe, a Filologia na Antigüidade
era estudo dos textos; hoje porém, com o desenvolvimento científico,
ela abrange os assuntos puramente sincrônicos, isto é, descrições
de estado da língua.
Depreende-se de tais afirmativas, de Silva Neto, que Filologia,
em 1957, era uma designação geral, abrangendo não
só estudos de crítica textual como também estudos
históricos e ainda estudos sincrônicos descritivos das línguas.
E é nesse ínterim que a Lingüística
começa a dar seus primeiros passos no Brasil, apesar de se
notar ainda a forte influência da Filologia Portuguesa. Vale
destacar aqui a importância que tiveram para o futuro desenvolvimento
da Lingüística Brasileira as obras desenvolvidas a partir da
década de vinte, que seguiam essa tradição filológica
e que se opunham as dos gramáticos prescritivistas, muito mais interessados
na discussão de questões gramaticais. Obras como o Dicionário
etimológico (1932), O linguajar carioca (1922), de Antenor
Nascentes; o Dialeto caipira , de Amadeu Amaral; a História da língua
portuguesa (1952-1957), de Serafim da Silva Neto, entre outras, marcam
este período.
Neste cenário, um novo nome, que não pertencia ao grupo
dos adeptos da concepção de Filologia antes apresentada,
começa a ter voz - Mattoso Câmara Jr.- , que, em 1941,
publica Lições de lingüística, mais tarde Princípios
de lingüística geral, incentivado por um dos mais respeitáveis
filólogos da época - Sousa da Silveira, responsável
pelo Prefácio da primeira edição do livro, do qual
destacamos o seguinte trecho:
É uma falta lamentável, que mais cedo ou mais tarde -
tenho a esperança - há de remediar-se... enquanto, porém,
não se remedeia, as Lições de lingüística
do Prof. Mattoso Câmara Jr. serão lidas e aproveitadas, e
o livro em que elas se contêm ficará constituindo não
só uma espécie de cátedra pública em que o
douto especialista continua a lecionar, suprindo assim a lacuna universitária...
a leitura atenta do livro porá ordem dentro de muito cérebro
onde as noções lingüísticas ainda se aglomeram
confusamente. (1954:10-11)
Refere-se o trecho acima ao fato de, em 1938, Câmara Jr. ter sido
convidado para ministrar o curso de Lingüística na recém
criada Universidade do Distrito Federal, curso esse que, por razões
políticas, não foi além de 1939. Só
em 1948, na Faculdade Nacional de Filosofia, é que tal curso voltará
e será regular. Novamente, Câmara Jr. é convidado a
ministrá-lo, só que agora Doutor em Letras Clássicas,
com estudos em Lingüística pelos Estados Unidos e com a meta
de reorientar os estudos lingüísticos no Brasil, mais
especialmente os de língua portuguesa.
Na definição de Lingüística proposta por
Câmara Jr., observa-se que esta se contrapõe à Filologia:
LINGÜÍSTICA - O estudo da linguagem humana, mas considerada
na base da sua manifestação como língua. Trata-se
de uma ciência desinteressada, que observa e interpreta os fenômenos
lingüísticos - a) numa dada língua, b) numa família
ou bloco de línguas, c) nas línguas em geral, para depreender
os princípios fundamentais que regem a organização
e o funcionamento da faculdade da linguagem entre os homens. Há
assim, portanto: a) a lingüística especial (portuguesa, francesa,
etc.), b) a lingüística comparativa (indo-européia,
camito-semítica, etc.) c) a lingüística geral. São
pouco usuais os termos equivalentes de GLÓTICA e GLOTOLOGIA, cuja
raiz é o termo grego para “língua”. Por outro lado, não
são termos equivalentes a gramática em qualquer de suas acepções,
e a filologia, que pressupõe uma língua culta e uma língua
escrita.
A lingüística é uma ciência recente, pois
data do século XIX o estudo científico e desinteressado dos
fenômenos lingüísticos. A princípio concentrava-se
nos fenômenos de mudança lingüística através
do tempo como lingüística comparativa, especialmente indo-européia,
baseada na técnica do comparatismo. Hoje alargou-se-lhe o âmbito,
distinguindo-se, ao lado do estudo histórico (lingüística
diacrônica), o estudo descritivo (lingüística sincrônica,
porque “a fixidez aparente da língua, sendo uma realidade social,
é que a permite funcionar nos grupos humanos como meio essencial
de comunicação e esteio de toda a vida mental - individual
e coletiva”. (1974:250)
Ao que Câmara Jr. denomina de lingüística especial
e lingüística comparativa, Silva Neto denomina Filologia, restringindo-se
esta para aquele à língua escrita. Assim, evidencia-se que,
em meados da década de cinqüenta, duas concepções
distintas e defendidas por duas figuras respeitadas conviviam. No entanto,
já se prenunciava um novo tempo em que aqueles que se autodefiniam
como filólogos começam a perder espaço.
Em 1963, por lei, a Lingüística torna-se disciplina obrigatória
nos cursos de Letras no Brasil. Entretanto, não havia os lingüistas/professores
para esta nova disciplina, estes improvisaram-se na maior parte das vezes.
A Lingüística Moderna, recém-chegada ao Brasil
pelas mãos de Câmara Jr., já estava sendo contestada
no exterior. Neste sentido, a Lingüística Brasileira
surge em meio a recusa à tradição histórico-filológica;
à contestação aos estruturalismos; e mais, sufocada
pelo primeiro modelo chomskyano - o de 1957- , que já estava sendo
substituído pelo modelo padrão de 1965.
Ao se referir ao papel da obra de Câmara Jr., Naro (1976:88)
assim se pronuncia:
Apresenta-se assim um daqueles lamentáveis casos onde o reconhecimento
chegou demasiadamente tarde para que a obra tivesse o impacto que deveria
ter tido. Não obstante, deve-se a Mattoso o crédito de haver
introduzido no Brasil a disciplina da lingüística, como entidade
separada da filologia, assim como o conceito básico da investigação
lingüística radical.
Destaca-se ainda, do mesmo texto de Naro, a concepção
de Filologia, que se contrapõe à de Silva Neto e à
de Câmara Jr., concorrentes nos anos cinqüenta:
Uma vez que, na organização deste ensaio, dividirei as
obras em ‘lingüísticas’ e ‘filológicas’, é necessário
precisar aqui critérios usados para definir e distinguir o âmbito
destas duas disciplinas irmãs. Considerarei como principal tarefa
da filologia o estabelecimento e classificação de fatos lingüísticos
e como objeto da lingüística a explicação desses
mesmos fatos dentro de uma teoria geral da linguagem e de seu uso. De acordo
com essa definição, a crítica de textos, isto é,
o estabelecimento da leitura correta dos textos, sejam medievais
ou modernos, é classificada como tarefa da filologia, assim como
o é a dialectologia tradicional, que consiste em estabelecer, classificar
e comparar os usos lingüísticos locais. O estudo da técnica
do verso, compreendido como uma etapa preliminar às edições
de textos poéticos, é considerado tarefa da filologia, segundo
os critérios apontados. A lingüística, por sua vez,
tenta analisar os fatos de um determinado texto ou dialeto com uma teoria
lingüística universal e, ao mesmo tempo, chegar a conclusões
sobre a natureza geral da linguagem que possam ser justificadas pelos dados
em estudo. (1976:73)
Depreende-se, por meio da citação anterior, que a distinção
entre Filologia e Lingüística vigia ainda em 1976,
mas se delimita de modo mais claro, neste momento, o papel de cada
uma delas, como bem elucida Mattos e Silva (1996:12):
Parece-me que hoje se pode aceitar tanto Lingüística como
‘ciência geral’ e também como ‘ciência especial’, a
primeira centrada sobretudo nas teorias gerais sobre a linguagem humana
e a segunda centrada sobretudo na utilização interpretativa
dos dados fornecidos por diversas manifestações da linguagem.
Por seu lado a Filologia parece integrar-se hoje melhor como uma das formas
de abordar a documentação escrita, tanto literária
como documental em sentido amplo, enriquecida pelas vias da crítica
textual, tanto de textos antigos como de textos modernos. A Filologia assume
seu lugar, na sua melhor tradição de “ciência do texto”,
herança benéfica semeada há quase vinte séculos
pelos alexandrinos, num retorno que no dizer de Ivo Castro não é
uma restauração, mas renovado retorno, por causa de novas
abordagens literárias, por causa de novas técnicas de análise,
por causa de novos dimensionamentos de seu objeto, por causa dos avanços
da informática (cf. Castro, 1995:513). E no que concerne aos estudos
lingüísticos por causa do renovado retorno relativamente recente
aos estudos histórico-diacrônicos.
Entretanto, a associação sinonímica entre
Lingüística e Filologia ainda é muito comum nos dias
atuais. Segundo Castro (1995:512), na verdade, nos meios universitários,
inclusive nos brasileiros, “se pratica apenas a distinção
entre lingüística histórica, igualada a filologia, e
as restantes lingüísticas”.
Tal distinção relaciona-se a um dos legados mais importantes
de Saussure (1916) à Lingüística Moderna - a dicotomia
sincronia/diacronia, que estabeleceu uma cisão entre a Lingüística
histórica do século XIX e a nova Lingüística
a-histórica que veio impor-se. Privilegiam-se assim os estudos
sincrônicos em detrimento dos diacrônicos, pois, neste momento,
é forte a influência do descritivismo americano, que se dedicava
sobretudo à análise de línguas sem tradição
histórica escrita.
Embora um pouco tardia, a explosão da Lingüística
no Brasil não seguiu um percurso muito diferente. Assim, os
estudos históricos tradicionais, tachados como não-científicos,
ficaram relegados até que, por volta de 1984, influências
de modelos externos hegemônicos começaram a surgir por meio
de jovens que foram fazer sua formação pós-graduada
no exterior.
Marca este novo período a Reunião Anual da Associação
Brasileira de Lingüística (cf. Boletim ABRALIN, 6:82-108),
que realizou um simpósio intitulado Problemas de Lingüística
Histórica, cujos expositores convidados foram Fernando Tarallo,
apresentando o tema A Fênix finalmente renascida; Marco Antônio
de Oliveira, Sociolingüística e Lingüística Histórica
e Carlos Alberto Faraco, A história na descrição
lingüística. Os dois primeiros autores citados vinham
de doutorar-se na Pennsylvania, sob orientação Laboviana
e o terceiro, doutorara-se em Salford, na Inglaterra, com o romanista Martin
Harris.
Vale mencionar aqui como Fernando Tarallo encerra sua explanação
nesse Simpósio:
A Sociolingüística não é a única sub-área
de investigação lingüística interessada em fazer
renascer a lingüística histórica; noutras sub-áreas
tem aparecido a contribuição dos estudos diacrônicos
à formulação e confirmação de hipóteses
de trabalho... É tempo de se terminar com o mito da fênix
dentro da lingüística - propor que ela renasça finalmente
das cinzas e que não mais precise desempenhar seu ritual.
Seu vôo contínuo já é esperado de longa data
(1984:101).
Nota-se então que a partir de 1984 os dados diacrônicos
voltaram à cena, tanto para sociolingüistas, como para gerativistas
e mais recentemente para funcionalistas. Por isto, uma pergunta se impõe:
onde buscar tais dados? A resposta é óbvia: “nos velhos textos
remanescentes, informantes únicos para tais cogitações
e demonstrações” (cf. Mattos e Silva; 1996:14). É
assim que tais textos voltaram a despertar o interesse dos lingüistas
diacronistas e conseqüentemente voltaram-se eles também para
o legado deixado pela antiga Filologia e o trabalho que teria realizado
sobre essa documentação passada. Contudo, é preciso
lembrar que infelizmente a Filologia sobre a documentação
antiga em português pouco avançou. Segundo Mattos e Silva
(1996:15), isto é uma das maiores dificuldades para os jovens
pesquisadores desta área:
(...) jovens lingüistas têm de voltar-se para os textos
do passado, com que nunca trabalharam, para depreensão dos dados
sobre que fundar as suas interpretações teóricas.
Têm assim de improvisarem-se filólogos para exercerem
seu saber de lingüista ou de recorrerem aos que nunca deixaram de
trabalhar nessa linha, que não são muitos, devido ao privilégio
do sincrônico contemporâneo que vimos dominante, devido ao
percurso relatado.
Por isto, observa-se atualmente uma volta respeitosa aos
dados do passado, ou seja, percebe-se um retorno à Filologia, retorno
necessário para se cumprirem os novos objetivos propostos pelas
novas orientações teóricas da Lingüística
histórico-diacrônica. O reencontro entre Filologia e Lingüística
só poderá ser positivo para o aperfeiçoamento
do que produzem tanto filólogos como lingüistas, sobretudo
para aqueles que fazem Lingüística Histórica e/ou nela
trabalham, especificamente, aqueles que trabalham com a mudança
lingüística e com o ensino de Língua Portuguesa.
O reencontro entre Filologia e Lingüística, separadas pela
longa história que Mattos e Silva (1996) buscou esboçar e
que se parafraseou aqui fornecem os subsídios necessários
para se compreender melhor a situação dos cursos de
graduação em Letras e Lingüística hoje.
Os alunos ressentem-se exatamente da cisão entre estes dois
campos de saber - o que representa uma contradição ao reencontro
que se apontou como frutífero anteriormente. Parece que o reencontro
só se tem realmente efetivado em alguns cursos de pós-graduação,
ficando a graduação relegada a segundo plano.
Neste sentido, há não só uma cisão
entre Filologia e Lingüística, mas sobretudo entre graduação
e pós-graduação. Os alunos de graduação
vêem Lingüística, Filologia e História da Língua
Portuguesa como disciplinas separadas e não como disciplinas afins.
Portanto, não conseguem estabelecer a interdisciplinaridade existente
entre elas. Deste modo, os textos antigos, na maioria das vezes,
só serão vistos em Literatura Portuguesa, perdendo-se uma
ótima oportunidade de demonstrar para os discentes como os fatos
lingüísticos auxiliam a análise literária. Muitos
alunos, inclusive, passam pelas Faculdades de Letras sem sequer terem visto
um texto antigo e muito menos sem tê-lo analisado.
Como resolver tal impasse? A resposta é fácil,
mas a sua viabilização torna-se difícil à medida
que envolve a formação dos novos profissionais da área.
Cabe a estes promover de fato o reencontro que se mostra tão produtivo
e necessário entre a Filologia e a Lingüística atuais,
para que os futuros interessados, ao precisarem recorrer aos textos
antigos para subsidiar as pesquisas, tenham o mínimo de conhecimento
ou pelo menos saibam onde buscá-los.
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