ANÁLISE SEMÂNTICA DO VOCABULÁRIO DO SERINGUEIRO DO VALE DO RIO ACRE

Antonieta Buriti de Souza (USP)

O objetivo deste trabalho é apresentar  cinco palavras pertencentes ao léxico do  seringueiro do Vale do Rio Acre, segundo o método onomasi-ólogico. O corpus foi constituído de quarenta e cinco entrevistas gravadas com os seringueiros acreanos.  As palavras selecionadas têm acepção espe-cífica na região e algumas não estão dicionarizadas nos dicionários da lín-gua portuguesa.  O desenvolvimento deste trabalho tinha como principal objetivo um estudo mais acurado desses vocábulos, no qual se buscava a etimologia do vocábulo, quando possível a forma e acepção em línguas românicas, as acepções apresentadas nos dicionários de língua e a acepção corrente nos pontos de pesquisa; a título de ilustração mostrou-se parte de depoimentos dos informantes.  Ao lado de algumas palavras são apresenta-das fotos que servem para ilustrar e auxiliar o entendimento da formulação dos conceitos.

 Sendo a língua uma herança cultural milenar (a história da língua é a história da cultura)* , necessário se faz estudar com maior profundidade os vários falares como forma de retratar a variante lingüística de cada região dessa mesma herança, necessidade que já se manifestava em Amadeu Ama-ral (1920:14), em O Dialeto Caipira.  Segundo SCHUCHARDT, a língua é sobretudo um meio de comunicação entre os homens*, pois é por meio da língua que o homem expressa suas idéias, as idéias de sua geração, as idéias da comunidade a que pertence e as idéias de seu tempo.
A língua, por ser um sistema dinâmico, é passível de mutações.  As palavras, que a constituem, estão sujeitas a transformações de acordo com os diferentes momentos da história, pois, de acordo com os estudos de Ge-nouvrier (passim), o léxico* de uma língua é o lugar das mais amplas varia-ções, já que certas palavras caem em desuso enquanto outras são criadas conforme a necessidade da denominação, isto é, segundo as necessidades sócio-culturais do meio.  A língua, sendo um patrimônio de toda uma co-munidade lingüística, a todos os membros dessa sociedade é facultado o direito de criatividade léxica, pois é o homem que atua em suas transforma-ções e, pela palavra, ele adquire consciência do mundo e de si mesmo.  Por esse motivo, essa proposta de estudar o léxico especializado do seringueiro do Vale do Rio Acre, como uma forma de registrar e preservar uma situação histórica, visto que cada geração não apresenta as mesmas experiências lingüísticas, embora conserve a tradição das precedentes.
 O processo de produção da borracha é uma atividade econômica que vem passando por várias modificações e inovações de métodos, fato que traz conseqüências léxicas, ou seja, o aparecimento de palavras novas para designar ações, objetos e coisas utilizadas na execução desse trabalho, além disso, alguns métodos já estão fadados ao desaparecimento, como exemplo disto é o processo da defumação da borracha que já está em desuso e com isso resulta no desaparecimento de palavras que designam objetos e coisas utilizados nesse processo.  Assim sendo, é de vital importância buscar uma  forma de registrar e salvaguardar esse recorte lingüístico como representa-ção cultural, antes que inovações de toda ordem o venham a apagar. Para este trabalho foram selecionadas apenas cinco palavras para estudo.
 
 BERLIM

 Em nenhum dos dicionários pesquisados, não foi encontrada a pala-vra berlim;
 no entanto, nesta pesquisa esse vocábulo tem a mesma acepção que bigode
 (q.v.), pestana (q.v.).  Embora tenha ocorrido apenas uma vez nos depoimentos, tudo indica que se trata de um vocábulo corrente na região.
 Não se encontrou também qualquer indício que apontasse para uma possível etimologia.  Confira o depoimento.
 
 P:   Sei  e José deixa eu te perguntar uma coisa pra você cortar né pra você tirar o leite da seringueira você precisa cortar você sabe como que chama aqueles cortes que vai dá um corte em cima depois dá um corte em baixo você sabe como que chama?
 I: Tem deles que chamo bigode otos chamo berlim (J.F.M.-PC 28)
 
 CU DE BARRÃO
 
 Palavra composta por cu que vem do lat vulg. culum, "ânus", en-contrado também no cast. culo, it. culo, fr. cul, rom. cur, vegl. chol, log. kulu, eng. kül,  friul. kul, prov.  cul, cat. cul com a mesma acepção.  Barrão vem do lat.*verrone, calcado em verre ," porco por capar", como no cast. verrón ( Nasc.).
  Cu de barrão, na região em estudo, é um conjunto de cortes aplica-dos na seringueira, que consiste em fazer um traço oblíquo na parte superi-or, um na parte de baixo da seringueira e uma canaleta em sentido vertical ligando esses dois cortes, em cujo final é colocada a tigela para aparar o látex.  É sinônimo de espinha de peixe  (q.v.).  Neste vocábulo nota-se uma conotação pejorativa, pois é proibido fazer esse tipo de corte, porque pode matar a árvore, uma vez que é extraído muito leite de uma só vez, o que dificulta a recuperação das vasos laticíferos da seringueira.  Segundo os seringueiros, quem o faz está fazendo um trabalho muito mal feito. É como se a árvore fosse "castrada", tornando-a improdutiva, o que torna a expres-são semanticamente compreensível.  A outra expressão,  espinha de peixe, explica-se perfeitamente pela semelhança.
 
 P:Mas não dá outro nome?
 I:Chamo cu de barrão otos chamo ispiNa de pexe [certo] mas isso num num é um trabalho [sério] de seriedade não isso é um trabalho assim de o ... imaginalização (P.S.S.-XA 07)
 
 I:Já pois não eu pois é isso aí porque  a uns chama pestana
 P:Certo é esse de cima
 I:Pois é e otos a gente chama cu de barrão
 P:É esse de baixo?
 I:É eu eu cuNeço o de o de o de cima o de cima [certo] porque esse de baxo aqui é a bandê bom é o seguinte [esse aqui] é esse esse traço aqui (**) de baxo aqui esse daqui (**) né é a bandêra e aqui (**) im cima é o cu de barrão
 P:Ah é não é em baixo não ?
 I:É num é im baxo o cu de barrão não é im baxo o cu de barrão é em cima que é a a tal pestana que a gente chama é
 P:Quer dizer que pestana e cu de barrão são a mesma coisa ?
 I:É a merma é a merma coisa agora aqui daqui aí puxa esse traço aqui aí faz o golpezim e imbica a tigela (R.N.S- XA 05)
 
 P:Explica então pra mim como que faz (!!!) e por que que faz?  Esse nome assim
 I:Cu de barrão?
 P:É
 I:  Rapaiz eu num sei porque que corta im baxo e im cima né ...assim a pessoa já tá tudo cortado assim né ....aí a pessoa corta aqui im baxo que num tem risco né aí corta im cima aí iscorre pa dendo desse oto [e se eu fosse na mata ]aí embote im baxo [eu podia ver uma] pode
 P:  Você sabe identificar? Onde que tem por exemplo uma árvore que tem o corte cu de barrão outra que tem espinha de peixe outra que tem a bandeira tem essas diferenças?
 I:  Tem
 P:  Aí  é possível entrar pra ver
 I:  Tem ali tem u’a siringa (...) (F.C.S.A - XA 01)
 
 MORRÃO
 Nascentes, citando Figueiredo, afirma que esse acredita  talvez seja da mesma origem que morraça, do lat. moru.  Já para A .G. Cunha, é de origem obscura e significa "pedaço de corda desfiado na extremidade e preparado com breu ou outra matéria inflamável, com que se dava fogo às peças".  "Espécie de pulgão que ataca as árvores".  "O grão que apodrece na espiga antes de chegar ao estado de perfeita maturação e que se converte em pó negro".  Em Lisboa, tem sentido de "morraça"; "pedra miúda, usada no calçamento de ruas".  No Douro, "costa de videira".  Em São Paulo, com  acepção popular é "cachaça", "aguardente" (Aul.).
 No inventário em estudo, morrão designa um instrumento feito com pedaço de bambu verde que serve para iluminar; na parte oca do gomo é colocado um pedaço de tecido,  mais comprido que largo, para formar o pavio; para acendê-lo é necessário colocar querosene ou outro líqüido in-flamável. Alguns seringueiros colocam pequenas chapas de lata para que o pavio fique seguro e não se derrame o querosene, como também para que a chama não queime o bambu.
 Em geral, é utilizado para iluminar a casa do seringueiro ou os vara-douros.
 Tem como sinônimos:   chupil, champil (q.v.), lampião (q.v.) e lam-pião de taboca (q.v.).  Veja o depoimento do informante:
 
 P:  E esse tipo de iluminação aqui ?  [ morrão ]  Morrão? Chama de morrão?
 I:  É
 P:  E você sabe porque que chama de morrão?
 I:  Sei não (!!!)
 P:  Tá certo
 I:  Tem o morrão de garrafa também né
 P:  É?
 I:  É ( S.F.A . -XA 03)
 
 PORONGA
 A palavra poronga não está dicionarizada na língua portuguesa; a Enciclopedia del Idioma apresenta poronga como forma feminina de poron-go, no Chile, e significa "burla", "zombaria", "escárnio"; é sem dúvida uma atestação sarcástica.  A Academia Espanhola afirma que é uma palavra do quíchua e apresenta a forma puruncu.  No Melh. a forma purunca significa "fruto do porongueiro, do qual se fazem cuias para mate", "planta cucurbi-tácea  (lagenaria vulgaris, ser.)".  No Rio Grande do Sul, tem o sentido chulo de "testículo" (usa-se mais no plural).  Em Sergipe, é "cachaça", "aguardente". Var:   purunga e purungo(Aul.).
 Poronga, nesta pesquisa, é um instrumento feito de alumínio, com-posto de um aro em forma de círculo a ser fixado horizontalmente na cabeça do seringueiro; dispõe de um reservatório para o combustível (querosene) e um pavio.  Na parte de trás, tem uma espécie de espelho ou proteção que projeta a luz para a frente.  Algo semelhante usam os mineiros no interior das minas.  O seringueiro usa para iluminar as estradas quando sai para trabalhar de madrugada.  Essa acepção acreana de poronga é analógica ao fruto da planta pela semelhança de forma, arredondada e convexa.  Confira o testemunho dos informantes:
 
 I:  O patrão o patrão ia e mandava os fladêro fazê a poronga um apa-rato de flande que é assim (**) e im cima colocada aquele depósito cum um pavii o pavii quem colocava era lá o siringuêro no cento o pavii aí daqui do mei dela subia assim bico assim onde ia o pavii e aquilo era colocada aqui na cabeça aqui a pessoa tava (**) tano pra frente ela tiNa o espelho aqui [certo] atalhano o fogo pa num ir pa trás aí ela tiNa fôça de focá pa frente aí colocava aqui (**) e saía de madrugada cum aquela poronga (!!!) é mais nos principe que eu num trabalhava eu era minino ou então num era nem nasci-do era o farol siNora num ixistia poronga ...farol [hãrã] ixistiu o farol (G.N.S -PA 44).
 
 PRANCHA
 Nascentes, seguindo Leite de Vasconcelos, diz que pracha provém do lat. *plancula  planca, forma aceita também por Cornu.  A evolução foi plancula  plancla  prancla  prancha, tendo ocorrido, respectivamente, a sín-cope da pós-tônica, dissimilação /l/-/l/  /r/-/l/ e a palatalização de /cl/  /ch/, não intervocálica, como em macula  macla  mancla  mancha.  O REW (6455) parte de *palanca, do grego palagka, de explicação difícil.  A Aca-demia Espanhola considera o cast. plancha um empréstimo do fr. planche,  "prancha, tábua".  Prancha significa "grande tábua, grossa e larga, que serve para dela se extraírem outras de tamanho regular e com estas se proceder a qualquer construção".  Em sentido especial " tábua que se lança da embar-cação para terra, a fim de por ela se passar de bordo para o cais ou para a margem".  Como galicismo, é "estampa impressa"; "lâmina".  Como gíria, é "pé grande e chato"; "lancha".  Em São Paulo, "recusa de pedido de casa-mento".  No Mato Grosso, é "uma espécie de canoa coberta, usada em al-guns rios da bacia do Paraguai".  "Vagão aberto e sem cobertura para trans-porte de grandes volumes e minérios".  Na maçonaria, significa "papel em que se escreve", "circular que uma loja maçônica envia às outras"(Aul.). "Folha da espada ou do sabre" (Melh.).  "Vagão ferroviário aberto de todos os lados, essencialmente reduzido no seu estrado, e destinado ao transporte de automóveis, caminhões e cargas volumosas indivisíveis".  "Peça chata e alongada de madeira ou de outro material flutuante, de feitio arredondado numa das extremidades e pontuado na outra, e que se destina à natação ou ao surfe".  No Rio de Janeiro, "tipo de embarcação fluvial, provida de velas triangulares, que navega no baixo rio Paraíba do Sul"(Aur.).
 Nesta pesquisa, prancha é a borracha que foi coagulada em uma cai-xa de plástico ou de madeira, de forma retangular, com 40 cm de compri-mento, 30 cm de largura, a altura varia entre 9 e 10 cm .  Esse tipo de borra-cha não passa pelo processo da defumação, porém possui uma coloração bastante escura.  A denominação desse tipo de borracha se dá metaforica-mente conforme o sentido comum da palavra, pois assemelha-se a uma tábua daquele formato.
 Note os testemunhos dos informante:
 I:  É a burracha a prancha tem vário tipo pra fazê ela tem u’as que dexa ela quaiada na tigela no mato aí depois junta aquelas bolas de sernam-bi aí chega lá aí põe tem u’a caxiNa quadradiNa aí chega bota ali dento aí bota u’a tauba ali dento aí imprenssa a não sê a gente colhe o...traz o leite mermo aí chega botanum coxo qualha aí depois de qualhá aí bota na prenssa [sei] é (A . J.L.F.- BRA 14)
 
 I:  Era u’a marca de madêra mermo mas que no cumeço era cum fer-ro pur isso que pegô esse nome de ferrá né P:  Ah tá certo e agora trabalha cum o senhor trabalha ainda com defumação?
 I:  Não agora eu até uns ano atrás inclusive esse três ano que esse rapaiz trabaiava comigo já antes eu fiz prancha cum esses depois que passô à prancha eu ainda fiz prancha e esses três ano que os rapaiz trabalharo cumigo foi fazeno prancha e pra fazê essa prancha a gente tem que fazê u’a caxa de madêra né pra qualhá o leite [sei] chega cum o leite a caxa bem tampadiNa né [hãrã] coloca o leite ali dento aí coloca o leite da gamilêra uns chamo gamilêra otos chamo caxinguba né [isso] aí aquele leite qualha a ota caxa (J. A . M. -ASBR 19)
 
 P:  Aí agora quando faz essa só que joga o leite na caixa?
 I:  É prancha o nome
 P:  É prancha faz a prancha antes fazia a pele de borracha agora faz só  (J.B.S. -PC 32)
 
 
 CONCLUSÃO
 
 O seringueiro tem um modo de vida próprio no meio das matas e, sendo ele um ser pensante, procura criar palavras para denominar as coisas concretas que o rodeiam e de que necessita para auxiliá-lo em seu trabalho ou em sua vida cotidiana.  No entanto, a amplitude da vasta imensidão das matas restringe o seu universo de criação lexical, que muitas vezes segue o processo de derivação por comparação ou semelhança com as coisas con-cretas, que estão à sua volta; outras vezes o princípio da denominação segue a representação imaginativa.
 Com esse estudo ficou patente o caráter concreto do vocabulário do homem rude dos seringais.  Em sua luta pela vida, não há espaço para abs-trações.
 A concretude do mundo que o cerca lhe inspira as denominações tanto dos objetos que usa, como das ações que deve praticar Procurou-se, ao longo desse trabalho, registrar e documentar vocábulos que fossem repre-sentativos do léxico do seringueiro do Vale do Rio Acre, pois a língua, segundo A . Darmesteter, está em constante evolução e nela concorrem sempre duas forças opostas:   uma que determina a conservação de termos clássicos do idioma e outra que motiva, no nível lexical, a criação de novos termos, e por estar o processo de produção da borracha passando por diver-sos experimentos, para que sejam encontradas formas que auxiliem o serin-gueiro e diminuam seu esforço nesse trabalho, surgem novas técnicas, em detrimento disto, novas palavras surgem para designar os objetos e coisas, ao passo que outras caem em desuso, chegando às vezes ao esquecimento do objeto usado e da palavra que o designa, pois o aprendizado da língua não é igual para todos.  Esse fato dificulta às futuras gerações o conheci-mento desses vocábulos.  Por esse motivo acredita-se ser muito importante um estudo dessa natureza.

 
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