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O FILÓLOGO DE PLANTÃO
“Um jornal que teima em buscar a verdade na doce ilusão de encontrá-la”
Publicação do CIFEFIL Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos.
Nova Série, ano 1, n.º 2. Rio de Janeiro, abril de 2021.
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Filologia tradição milenar e atualidade
(Fonte: MKAGRC. El filólogo. 2018.
Disponível em:
<https://ie.toluna.com/opinions/4040674/El-
fillogo>. Acesso: 22.fev.2021.)
EDITORIAL
Nos movimentos sociais brasileiros, da mesma
forma como o penúltimo mês do ano é conhecido
como Novembro Negro, devido à celebração, no
dia 20, do Dia Nacional da Consciência Negra,
feriado local em vários municípios, este mês é
conhecido como Abril Vermelho devido ao “Dia
do Índio”, efeméride comemorada no dia 19 e
instituída em 1943 pelo presidente Getúlio Vargas
(1882-1954), através do Decreto-Lei 5540, em
atendimento a uma proposta do Congresso
Indigenista Interamericano, realizado no México,
em 1940, ao qual o Brasil aderiu por intervenção
do Marechal Cândido Rondon (1865-1958).
Momentos de concentração da luta dos povos
indígenas por suas pautas e reivindicações frente
à sociedade nacional envolvente e uma
oportunidade de reflexão, para o povo brasileiro,
como um todo, sobre os valores culturais desses
povos e a importância da preservação e respeito
de seus valores, a data e o mês nos dão um mote
para este número temático, em que inauguramos
a coluna “Pílulas de Brasilidade”, cujas
referências estão no final da penúltima página.
Uma última observação: as referências dos
artigos das próximas duas colunas se encontram
no final do texto da página 3.
Esperamos uma boa avaliação e um bom
aproveitamento de nosso público leitor.
EXPEDIENTE
CiFEFiL
Círculo Fluminense de Estudos
Filológicos e Linguísticos
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O Filólogo de Plantão
Editor-geral
Prof. Dr. Ricardo Tupiniquim Ramos
Próximas Atividades do CiFEFiL
XIV CONGRESSO NACIONAL DE LINGUÍSTICA E
FILOLOGIA
com Menção Honrosa à memória do já saudoso
Prof. José Pereira da Silva (1946-2020)
24 e 26 de agosto de 2021
2
Nossos povos, nossas línguas
OS OMÁGUA/KAMBEBA E DO DRAMA DE SUA LÍNGUA ORIGINÁRIA
O Omágua é uma língua indígena em vias de extinção, outrora plenamente falada pelo
povo Omágua ou Kambeba, que ocupava o médio e o alto Solimões e alguns de seus
afluentes, em áreas hoje pertencentes ao Brasil, ao Equador e ao Peru. Atualmente, a etnia
ocupa parte do território peruano e, no Brasil, o médio Solimões e o baixo rio Negro, havendo
algumas famílias nos arredores de Manaus e outras no alto Solimões, em terras Tikuna.
ainda registros de membros dessa etnia na Grande Belém, em outras grandes cidades da
várzea amazônica e nas grandes metrópoles nacionais do Sudeste.
Embora antes do início da colonização tenha dominado vasto território, onde exerceu
aparentemente significativa influência político-econômica e se organizou em grandes cidades,
após a década de 1690, pressionada por agentes coloniais escravistas, a sociedade omágua
colapsou, daí resultando a captura de milhares de indivíduos e a fuga, rio acima, dos
sobreviventes que, perto de 1720, viviam, sobretudo, em algumas poucas missões religiosas.
No Brasil, entre o início do século XX e meados da década de 1980, essa etnia chegou a
ser considerada extinta (Cf. RAMOS, 1986). A série de violências e epidemias a que foram
submetidos ao longo da colonização levou-os a deixar de se identificar como indígenas e a
abandonar, aos poucos, o uso e a transmissão da própria língua aos filhos como estratégia de
defesa e sobrevivência. em meados dos anos 1980, com a emergência dos movimentos
indígenas organizados e o reconhecimento de inúmeros direitos pela Constituição de 1988,
eles passaram novamente a afirmar sua condição indígena, num processo de reetnização (Cf.
SILVA, 2012), do qual faz parte, hoje, o desejo de resgate da língua ancestral.
Embora classificado como língua Tupi-guarani devido a 60% de seu vocabulário ser
provavelmente de origem Tupinambá, em sua gramática, o Omágua (mais conhecido como
Kokáma, no Peru) não é tão semelhante à das demais línguas da mesma família, nem mesmo
à daquelas de origem dos demais 40% de seu acervo de palavras (Cf. Rodrigues, 1985), o
que sugere a hipótese de ter ela surgido antes do início da colonização, num contexto de
contato de várias línguas, o “que teria exigido um meio comum de comunicação, sem que
houvesse tempo hábil para que nenhuma das línguas presentes no cenário do contato
pudesse ser aprendida por inteiro” (CABRAL, RODRIGUES, 2003, p. 180), daí resultando uma
língua mista tanto na estrutura quanto no léxico.
A esse multilinguismo original, ainda permanente, juntaram-se, depois, as duas línguas
coloniais ibéricas, que ao Omágua forneceram empréstimos, termo técnico da Linguística
para designar qualquer material transmitido entre línguas em contato. Embora geralmente se
cite vocabulário como exemplo de empréstimo linguístico (seriam, por exemplo, empréstimos
tupinambás ao português, nomes como açaí, cajá, caju, capixaba, jacaré, etc.), outros tipos de
materiais (fonemas, prefixos e sufixos ou apenas o significado) podem ser “emprestados”.
Assim como a de outras línguas indígenas, a situação do Omágua é dramática, na
medida em que pouquíssimos falantes em geral bastante idosos, acima de 85 anos o
têm como língua materna. Segundo Viegas (2010, p. 16), o povo luta [...] para retomar a
língua nativa de seus pais e avós, mesmo como segunda língua”, por reconhecerem que seu
desuso os prejudicou bastante, “tendo em vista que muito se perdeu” (SILVA, 2012, p. 70).
Logo, recuperar o status de língua materna do Omágua faz parte da reetnização desse povo.
A despeito disso, é lamentável que, no Brasil, ainda não haja trabalho acadêmico voltado
ao ensino dessa língua, como L2, para os descendentes de seus últimos falantes nativos,
embora, nesse sentido, haja algumas iniciativas peruanas (v.g., Faust, 2008). Nossa produção
acadêmica se concentra na descrição de aspectos parciais de sua estrutura (SANTOS, 2015)
ou de história (CABRAL, 1995; VIEGAS, 2010), havendo um único trabalho, escrito por
professores kambebas aldeados (BONIN, KAMBEBA, 1999), com um conjunto de textos
bilíngues e um vocabulário básico Omágua-português, que, apesar de documentar a língua,
não se destina a seu ensino nas aldeias.
Assim, entre nós, urge o e elaboração e publicação de algum trabalho que auxilie o povo
omágua/kambeba em seu processo de reetnização via língua.
3
Flashes de Lusofonia
EMPRÉSTIMOS PORTUGUESES À LÍNGUA OMÁGUA
Quando se pensa nas peculiaridades do português brasileiro em face a qualquer outra
variedade nacional (lusitano, angolano, moçambicano, caboveridano, etc.), normalmente se
pensa num conjunto de empréstimos íntimos. Contudo, nem sempre artigos (mesmo no
meio acadêmico das Letras, onde são raros, se comparados a outros temas) sobre o fenômeno
oposto, ou seja, os empréstimos portugueses às línguas indígenas brasileiras, algo de que
vamos tratar, ainda que brevemente, a partir do Omágua brasileiro.
Antes, porém, é necessário registrar algumas convenções gráficas e notações técnicas:
“û” e “î” equivalem à [w] e [y], respectivamente, como “U” e “I” em “pau” e “pai”; somente K e S
equivalem, respectivamente, a [k] e [s]; como, em omágua, não proparoxítonas e a maioria
das palavras é paroxítona, as raras oxítonas recebem acento gráfico; o significado de um
vocábulo é posto entre aspas simples (‘ ’); -se o sinal <como “vem de” (por exemplo, x < y
“xis vem de ípsilon”, e o sinal ~ como “varia com (a ~ b a varia com bê”); esp. abrevia
espanhol, pt., português, Omg., omágua, br., brasileiro e per., peruano.
diferenças estruturais e vocabulares entre o Omágua brasileiro e o peruano, embora
em ambas as variedades haja palavras: seguramente originárias de apenas uma das duas
línguas de colonização; de procedência duvidosa, geralmente as comuns a ambas
variedades nacionais, como: Omg. akau, binu, kapum, kumari, kumbari, mutur, ruru, suntaru,
ûaka < pt./esp. cacau, vin(h)o, capão/capón, comadre, compadre, motor, lo(u)ro, soldado, vaca;
respectivamente; de provável dupla procedência, geralmente com ligeira variação fonética
entre as duas variedades nacionais: Omg. bras. larã ~ Om. per. narã < pt. laranja/esp. naranja.
Como os exemplos acima estão registrados numa lista ou num dicionário bilíngues Omg.-
esp. (TUISIMA, 2011; O’HAGAN, 2011), e noutra lista Omg-pt. (BONIN, KAMBEBA, 1999), um
critério adotável e (assumimos!) parcialmente seguro, com necessidade de aperfeiçoamento
e/ou futuro confronto de novos dados, para a seleção de nomes típicos do Omágua brasileiro
de origem portuguesa seria o registro exclusivo em Bonin; Kambeba (1999). Assim, em tese,
teríamos 17 empréstimos ao Omágua brasileiro de procedência portuguesa relativamente
segura: abô ‘sabão’, arrus ‘arroz’, asukaru ‘açúcar’, aûarinti ‘aguardente’, benadu ‘veado’, gustá
‘gostar’, gravatana ‘zarabatana’, karankixu ‘caraguejo’, kasasa ‘cachaça’, kurubina ‘corvina’,
patiri ‘padre’, pãû ‘pão’, piruka (< peruca) ‘careca’, rezasca ‘rezar’, sunsu ‘sonso, tonto’, tukaska
‘tocar instrumento musical’, xapeûa ‘chapéu’.
Referências
BONIN, Iara Tatiana; KAMBEBA, Raimundo Cruz da Silva (Org.). Aua kambeba: a palavra na
aldeia de Nossa Senhora da Saúde. Brasília: UNICEF/CIMI, 1999.
CABRAL, Ana Suelly A. C.; RODRIGUES, Aryon Dall‘Igna. Evidências de crioulização abrupta
em Kokáma? Papia, n. 13, p. 180-183.
FAUST, Norma. Gramática cocama: lecciones para el aprenizaje del idioma cocama. 3.ed.
Lima: Instituto Lingüístico de Verano, 2008.
O’HAGAN, Zachary. Dicionario del idioma omágua. 2011. Disponível em:
<http://linguistics.berkeley.edu/~zjohagan/pdflinks/omagua_fw2011_dict_TOTAL_FINAL.pdf>.
Acesso: 21.mar.2020
RAMOS, Alcida Rita. Sociedades indígenas. São Paulo: Ática, 1986.
RODRIGUES, Aryon Dall‘Igna. Relações internas na família Tupi-guarani. Revista de
Antropologia, São Paulo, n. 27/28, p. 33-53, 1985.
SANTOS, Yonara Cristina de Souza dos. Fonética e fonologia preliminar da língua
Omágua/Kambeba. 2015. 77f.: il. Dissertação Mestrado em Letras. UFAM, Manaus, 2015.
SILVA, Márcia V. da. Reterritorialização e identidade do povo Omágua-Kambeba na aldeia
Tururucari-Uka. 2012. 153f. Dissertação: Mestrado em Geografia. UFAM, Manaus, 2012.
TUISIMA, Arnaldo Huanaquiri. Historias del Pueblo San Joaquin de Omaguas. 2011.
Disponível: <http://cla.berkeley.edu/item.php?bndlid=23732>. Acesso: 21.mar.2020.
VIEGAS, Chandra Wood. Natureza e direções das mudanças linguísticas observadas
entre os últimos falantes do Kokáma nativos do Brasil. 2010. 129f. Dissertação: Mestrado
em Letras. Universidade de Brasília, Brasília, 2010.
4
FICA A DICA
LITERATURA
Kumiça Jenó Prefácio
Da lavra da celebrada escritora Márcia Kambeba minha caríssima
amiga pessoal e parceira de trabalho e lutas, de alegrias e algumas
dores , este volume se compõe de 25 poemas narrativos em torno de
figuras folclorizadas pela brasilidade hegemônica, mas que, em diversas
culturas nativas, sobretudo as amazônicas, correspondem a entidades
de sua cosmogonia: o Boto, a Yara (que normalmente garfo com I, mas
aqui com Y, em respeito à grafia da autora) ou Mãe-d’água, a Matinta
(ou Matinta-perê), o Matintim, o Curupira (que, nesta obra, a partir de
episódio que contei à autora, ganhou versão às avessas e “revoluída”),
o Mapinguari, o Folharal, o Caboquinho , o Saci, a Mãe-do-mato, o Maruim, a Carapanã.
Todos esses encantados integram o “Dicionário do Folclore Brasileiro”, de Luiz da Câmara
Cascudo e têm registro no “Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa”. Embora a obra de
folcloristas, como Câmara Cascudo, tenha popularizado esses entes da floresta no imaginário
do brasileiro comum, muitos desses pesquisadores não podemos dizer se propositadamente
ou não distorceram algumas narrativas primordiais dos povos nativos que, hoje, tentam
restabelecê-las. Creio que esse também seja um dos objetivos desta obra.
Importante destacar que, além dessas personagens, próprias das cosmogonias nativas,
apropria-se a autora, num legítimo gesto antropofágico conforme definição de Oswald de
Andrade, no famoso Manifesto , de personagens oriundos da cultura europeia, como o padre
que viu assombração ou a chamada Velha Gulosa, a bruxa do conto João e Maria”, próprio
da tradição oral germânica, registrado na escrita pelos irmãos Grimm, no século XIX.
Nos poemas nem sempre compostos a partir de recursos da linguagem poética
tradicionalmente usados (métrica, rima e estrofação regulares), sobretudo em textos acerca de
personagens como as acima citadas, percebemos não só o reconto da tradição oral recebida
pela autora a seus ancestrais (nomeadamente, da avó Assunta e dos bisavós Daniel e
Delma), como também a atualização e recriação dessas narrativas, o que ao conjunto da
obra a dinâmica própria das tradições orais.
Muito se engana quem pensa que o legado das culturas baseadas na oralidade não se
modifica. Pelo contrário, conforme ressalta Calvet (2011), é da natureza dessas tradições que
se modifiquem, de geração em geração, para acompanhar os movimentos, ainda que lentos,
de mudança social, permanecendo, assim, como fundamento dessas sociedades e etnias.
Outro aspecto relativo à natureza dinâmica das narrativas orais é o caráter pessoal que
o(a) contador(a) imprime à história, pois cada um(a) tem seu próprio gestual, facial e corporal,
além de algo personalíssimo e intransferível a própria voz, com todos os recursos (timbre,
volume, ritmo, variações de tom), inclusive os de criação e mutação, que permitem a muito(a)s
contadore(a)s o improviso da fala de diferentes personagens.
Com base nessas duas premissas a condição mutante das narrativas orais
(principalmente quando transpostas para a escrita) e a pessoalidade impressa, pelo(a)
contador(a), às histórias que narra , é que convido o(a) leitor(a) à experiência da fruição
estética proporcionada pela leitura deste livro.
Se o(a) leitor(a) é educador(a), em qualquer nível de ensino, sobretudo nos anos iniciais do
Ensino Fundamental, sugiro o uso desta obra como suporte à sua prática docente quanto ao
cumprimento das demandas da Lei 11645/2008 que, entre outras coisas, indica obrigatório o
trabalho com história e cultura indígenas naquele nível de educação formal.
Convite à leitura feito, uso pedagógico recomendado, cumpre-me encerrar este prefácio,
pois o interesse do(a) leitor(a) são as narrativas dos seres da floresta, não a minha escrita.
Referências:
CALVET, Jean-Louis. Tradição oral, tradição escrita. São Paulo: Parábola, 2011.
CÂMARA-CASCUDO, L. da. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999.
HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
KAMBEBA, Márcia. Kumiça jenó: narrativas poéticas dos seres da floresta. New York:
Underline Publishing, 2021.
5
HOLOFOTES
SOUZA, Pedro Daniel. dos Santos. Sobre o uso da língua do príncipe: história social da cultura
escrita, reconfigurações linguísticas e populações indígenas na Bahia setecentista. 2019. 531 p.
Tese Doutoramento em Língua e Cultura. Salvador: ILUFBA/ PPGLinC, 2019. Disponível em:
<https://43f732ad-b5b4-4926-ad06-
b21be791f1d4.filesusr.com/ugd/c8e334_9f272d231c2b40adae7acfc2d656fc30.pdf>.
Entre as reformas do Estado português na segunda metade do século XVIII, o Directorio, que se
deve observar nas povoaçoens dos Indios do Pará, e Maranhaõ em quanto Sua Magestade naõ
mandar o contrario conhecido simplesmente como Diretório pombalino ou Diretório dos índios
instituiu uma política de gestão das línguas na América que previa a proibição do uso das línguas
indígenas e, em particular, da chamada língua geral, como um dos principais instrumentos para a
“civilização” dos ameríndios. Embora formado, em 1757, para o Estado do Grão-Pará e
Maranhão, a partir de 1758, o Diretório direciona-se à outra colônia portuguesa na América, o
Estado do Brasil, até suas disposições serem revogadas por meio da Carta Régia de 12/05/1798.
Na aplicação do Diretório ao Estado do Brasil, o Parecer de 17/05/1759, exarado pelo tribunal
especial do Conselho Ultramarino instalado na Capitania da Bahia, desempenhou um papel
central, na medida em que direcionou as funções de Diretor de índios, cargo criado pelo
Diretório, para os escrivães das Câmaras dos aldeamentos indígenas elevados a vilas. Sem
deixar de lado a política de tutela prevista na reforma, essa alteração tornou os escrivães-
diretores agentes de letramento indígena, responsáveis por ensinar a doutrina cristã, ler,
escrever e contar aos meninos. Assim, a presente tese discute o processo de escolarização dos
meninos e das meninas indígenas na Bahia de segunda metade do século XVIII, avançando até
as primeiras década do século XIX, bem como dos demais indígenas inclinados a esta matéria,
tomando como locus da pesquisa nove vilas de índios criadas pelo tribunal especial do Conselho
Ultramarino, em 1758 (Abrantes, Soure, Mirandela, Pombal, Santarém, Olivença, Barcelos,
Trancoso e Verde), no âmbito de execução do alvará régio de 8/05/1758, e seis vilas criadas na
Comarca e Ouvidoria de Porto Seguro, entre os anos de 1764 e 1772 (São Mateus, Belmonte,
Prado, Viçosa, Alcobaça e Porto Alegre). Por meio das fontes documentais do Arquivo Público do
Estado da Bahia (APEB), fizemos um levantamento dos escrivães-diretores nomeados entre
1760 e 1834, supostamente os responsáveis pelo ensino de língua portuguesa como L2 e
agentes de letramento indígena nas supracitadas vilas. Da análise da documentação, incluindo
as fontes do Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) e da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
(BNJR), observamos que houve formas diferenciadas de recepção da política indigenista do
governo de D. José I nas vilas de índios erigidas na Bahia setecentista. Embora impossível
mensurar a real atuação dos escrivães-diretores, conflitos entre eles e moradores das vilas
testemunham o não cumprimento das obrigações de ensinar a leitura e a escrita aos meninos,
assim como autos de inquirição sobre a civilização dos índios e relatos de Ouvidores revelam as
estratégias de alguns vilãos para evitar a matricula de seus filhos, ou ainda, se matriculados,
para o frequentarem as aulas. Os dados discutidos abrem caminhos interpretativos da
construção das vilas de índios e suas implicações linguísticas, a partir do mapeamento do
cumprimento das orientações do Diretório quanto à abertura de escolas públicas, sua
abrangência, generalização, papel na eliminação de línguas e culturas e no cumprimento do
objetivo de ensinar a ler e a escrever.
Referências da crônica da coluna Pílulas de Brasilidade, da próxima página:
BORBA, Francisco S. Dicionário de usos do português brasileiro. São Paulo: Ática, 2001.
FEREIRA, Aurélio B. de H. Dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
NAVARRO, Eduardo de Almeida. Dicionário Tupi-antigo: a língua indígena clássica do Brasil. São
Paulo: Global, 2013.
6
FICA A DICA: “Ex-Pajé”, de Luiz Bolognesi CINEMA
Perpera era pajé da etnia Paiter-Surrí, habitante da Terra Indígena 7 de Setembro, Rondônia, que vivia
isolada até 1969. Após o primeiro contato do grupo com os brancos, pressionado por um pastor evangélico,
que condena sua religião como demoníaca, ele se obrigado a abandonar sua prática ancestral e acaba se
tornando zelador da igreja implantada na comunidade. A aldeia passa a questionar a missão evangélica quando
a morte passa a rondar a aldeia e a sensibilidade e o conhecimento do ex-pajé quanto aos espíritos da floresta
se mostra indispensável. Como sabe da ira dessas entidades pela ausência de rezas e do toque das flautas
sagradas, o protagonista dorme sempre com a luz acesa para afastá-los.
O filme nos oferece uma oportunidade de reflexão sobre o etnocídio ou seja, a destruição de uma cultura.
Poupam-se os indivíduos, mas extermina-se o elemento de sustentação de sua cultura. No Brasil, preservada e
encarnada na autoridade do pajé, a religiosidade indígena é alvo de etnocídio pela cultura cristã ocidental, via
negação e demonização, desde a chegada dos primeiros religiosos católicos ao país, já no século XVI.
Segundo o diretor, “o conceito foi trabalhar no limite entre documentário e ficção. Os atores interpretam
eles mesmos e retratam suas histórias verídicas. Torna-se difícil identificar a linha tênue onde a ficção começa
e o documentário termina, e vice-versa”. (BOLOGNESE, apud IMS, 2018)
Contudo, embora elogie a inciativa da produção do filme em oferecer oficinas de produção de cinema e
vídeo para a etnia, polemistas da crítica de cinema (Cf. 24, 2019) afirmam a ausência da linha tênue entre
ficção e realidade referida pelo cineasta, pois, ao reviver situações cotidianas para o registro documentarista,
as personagens as reencenariam, conferindo ao filme um caráter não só ficcional, mas artificial.
Bem, confira o filme e chegue às suas próprias conclusões.
Referências:
24. Ex Pajé documentário:. 2019. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Dvvah1BOmOo>.
Acesso: 22.fev.2021.
BOLOGENSE, Luiz (Dir.). Ex-pajé. Brasil: Buriti Filmes/ Gullane, 2018, 80min.
IMS. Ex-pajé. 2018. Disponível em: <https://ims.com.br/filme/ex-paje/>. Acesso em: 23.fev.2021.
PÍLULAS DE BRASILIDADE
BRASIL, UM PAÍS TUPINIQUIM
Há dois meses, um sujeito publicou em sua timeline no Facebook, imagem de um crucifixo com armas
de fogo nas pontas e a legenda “Símbolo do neopentecostalismo tupiniquim”. Vendo o post, a parenta
Tupinambá Dara Priscila Machado parente(a) é o tratamento mútuo comum entre nós, indígenas, ainda
que não tenhamos relações de consanguinidade me marcou num comentário denunciativo do racismo
subjacente à legenda, que nela uma clara associação do nome de minha etnia e família materna a
um novo fenômeno religioso, até onde sei, tipicamente brasileiro: a conversão, a igrejas neopentecostais,
de traficantes de drogas que, a despeito da nova fé, não deixam o crime e, com seu poder sobre as
comunidades-sedes de seus negócios e a conivência dos pastores, constrangem adeptos de religiões e
outras práticas culturais afro-brasileiras, como a capoeira, já havendo registro de pessoas migradas
desses locais por medo, como amplamente denunciado pela mídia.
Ao defender-se da acusação e da minha réplica à parenta, o poster afirmou não ter usado o termo
tupiniquim pejorativamente, mas como sinônimo de “primitivo” e que, se nos ofendemos com o post,
bastava desvê-lo(curioso neologismo, não?). Duramente confrontado por sua clara confissão racista,
ele tentou se sair, dando-nos um significado “neutro” para aquele nome, de certo colhido no Google, às
pressas, da mesma forma registrado em Borba (2001, p. 1586) e Ferreira (1988, p. 655) “brasileiro” ,
neste, porém com o valor depreciativo informado.
Para a superação de atos e falas racistas, como os aqui relatados, são necessárias a constante
vigilância, a denúncia escancarada, a execração pública e a punição prevista em lei.
Em Tupi-antigo, minha língua ancestral, Tupiniquim é Tupinakyîa e significa ‘invocador de Tupi’
(NAVARRO, 2013, p. 484), ancestral mítico de todo o tronco etnolinguístico homônimo. Sua associação
com algo genuinamente brasileiro é até aceitável, mas não o valor pejorativo, advindo, a meu ver, do
racismo e do complexo de inferioridade muito próprios de nossas elites, transmitidos às classes sociais
subalternizadas, certamente a origem daquele racista.
É da condição de filólogo e linguista, professor, escritor e militante Tupinakyîa (‘invocador de Tupi’),
pai de uma adolescente de 15 anos e avô-adotivo de um indiozinho de 3 anos, de outra etnia e
desaldeado, como eu, que invoco a força de meus ancestrais, meus nobres antecessores na luta e
resistência em prol de nossas vidas e bem-viver. É desse lugar de fala que encerro esta crônica (e esta
edição deste jornal), conclamando, neste Abril Vermelho, toda a parentada indígena e o(a)s
brasileiro(a)s de consciência e boa-vontade para se juntarem na grande construção coletiva de uma
sociedade nacional e multiétnica onde nossas crianças e jovens possam crescer, se desenvolver e virar
adultos sem marcas no corpo, na mente e no coração e sem estigmas depreciativos de sua verdadeira
essência como seres humanos com pleno potencial e direito de, a seu próprio modo, existir.