Embora normalmente associada às cosmologias africanas e afro-brasileiras, a identidade cultural da
Bahia e, especificamente, de Salvador e sua região metropolitana, têm uma relação antiga e profunda com
as cosmologias indígenas, sobretudo as tupis, como pretendemos demonstrar neste artigo.
Algumas cosmologias indígenas concebem a existência de um ser supremo e criador, mas distinto do
concebido pela judaico-cristã1, pois, concluída a criação, Ele se afasta dela. Entre os antigos tupis, o
criador do céu, da terra, dos animais e do homem era Monã (< Tp.-ant. monã ‘o ancião’) que, distante de
Sua obra, passa a nela interferir “[...] através de entidades espirituais ou heróis civilizadores, isto é,
humanos com grandes poderes” (PREZZIA, 2007, p.21), alguns deles, ancestrais de um povo.
Entre os civilizadores, os jesuítas ibéricos registraram Sumé2 ou Zumé, considerado em algumas
versões filho de Maíra-Monã3 e identificado pelos omáguas com Tupã (PINTO, 1938, p.198). Entidade
superior, homem branco de vida solitária e abstêmia, surgido entre os tupis antes de 1500, ensinou-lhes
regras morais e o cultivo da terra, mas, uma vez repelido, teria abandonado a região, prometendo retornar
um dia: “Sumé em fuga teria sido cercado em Itapuã. É de cima daquelas lajes que teria tomado impulso
para o grande salto, livrando-se da perseguição dos índios ingratos” (EDELWEISS, 2001, p.61).
Os religiosos ibéricos O associaram ao apóstolo Tomé pela semelhança dos nomes e por sua ideia
de ter o indígena uma vocação natural para o Evangelho, a ele pregado pelo santo, que teria evangelizado
a América antes de viajar para a Índia. Logo, vê-se que “desde os primeiros tempos da conquista, os
brancos aprenderam e relataram as crenças tupis-guaranis, delas retendo apenas os motivos que, nos
termos da sua própria religião, eles podiam reinterpretar” (CLASTERS, apud NAVARRO, 1999, p. 364).
Edelweiss (2011, p. 61) registra que, “Como a maioria das tribos tupis-guaranis possuíam a lenda,
encontramos as pegadas de São Tomé por toda a América do Sul, nas áreas habitadas por essa família”,
inclusive na Bahia, onde deixara pegadas, identificadas desde o início da colonização. Assim, Campos
(1930, apud Calasans, 1970) relata a descoberta, em 1602, de pegada humana gravado numa pedra e
cultuada como a de São Tomé, em lugar homônimo, no caminho das Armações, freguesia de Brotas:
A versão do Resumo Cronológico faz coincidir a descoberta da pegada 21 de dezembro,
com o dia em que a Igreja Católica celebra a festa de São Tomé [...]. A coincidência está a
indicar, evidentemente, a influência que a Igreja, decerto através dos padres da
Companhia, teria tido na determinação da data, uma vez que [...] muito antes de 1602, tido
como ano da descoberta da pedra, já era largamente conhecida a existência das pegadas.
O dia, supomos, valeria apenas para oficializar o culto popular. (CALASANS, 1970, p.12)
Antes, em 1515, a Nova Gazeta Alemã noticiou a existência, entre os nativos do Brasil, de uma
recordação da presença de São Tomé no país, onde cruzes indicariam sua passagem. Em 1549, logo
após a fundação de Salvador, um comunicado do padre Manuel da Nóbrega ao mestre Simão indicava
haver pegadas do santo na Bahia e em São Vicente. Em agosto do mesmo ano, em carta ao Dr. Navarro,
Nóbrega informa a passagem do santo pela Bahia, tendo lá deixado os tubérculos ainda usados como
alimento entre os nativos. Em 1550, Nóbrega relata sua visita ao local das pegadas, para onde levaria, em
1552, em peregrinação, os alunos do Colégio da Bahia (NÓBREGA, 2017).
Silva (1954, p. 8, apud Calasans, 1970) indica como local das pegadas as praias de Itapuã, mas
levanta dois outros locais com o registro delas em Salvador: o visitado por Nóbrega, com quatro pegadas,
junto a um rio; o descoberto por um pescador, só com uma marca, fotografada por “A Tarde” em 1916,
imagem não mais disponível no arquivo do jornal; e o Unhão, início de Itapuã, diante de cruzeiro
encontrado pelo pesquisador. Teria havido um quarto sítio, a Pedra da Toca, em São Tomé de Paripe4,
subúrbio ferroviário de Salvador, com pegadas ainda vistas em 1926, já muito apagadas, por Teodoro
Sampaio, desaparecidas no ano seguinte, devido ao corte do sítio por estrada. (CALASANS, 1970, p.13)
O subúrbio ferroviário de Salvador tem essa identidade definida a partir de 1860, com a construção
de linha da Viação Férrea Federal Leste do Brasil, entre os bairros da Calçada e de Paripe. Contudo, suas
localidades são muito antigas, tendo algumas a origem ainda no século XVI, como Escada5, ou ainda
antes, como Periperi (< Tp.-ant. peri ‘junco’) e Paripe (< Tp.-ant. pari ‘cerca’ -pe ‘em’), velhas aldeias
tupinambás, transformadas em engenhos após a fundação da capital.
Localizada no extremo litoral sul da capital baiana, no bairro de Paripe, como, aliás, o próprio nome
indica, a praia de São Tomé de Paripe tem a identidade devida à crença de lá estarem as pegadas de
Sumé/ São Tomé desaparecidas em 1926.
Referências