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O FILÓLOGO DE PLANTÃO
“Um jornal que teima em buscar a verdade na doce ilusão de encontrá-la”
Publicação do CIFEFIL Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos.
Rio de Janeiro, Nova Série, ano 2, n.º 12, fevereiro de 2022.
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Verba Sapientiae
EDITORIAL
No Brasil, diz-se que o ano começa após o
Carnaval. Como, devido à pandemia de Covid-19, a
última festa momesca oficial foi em 2020, seria
certo que, desde , vivemos o paradoxo de
encerrar 2020 e 2021 nos 31/12 respectivos, sem
ainda ter iniciado aquele último nem este? Se a
resposta for SIM, antes fosse esse o único
paradoxo de nossa sociedade!
Nesta edição, Flashes de Romanidade retorna
ao sistema de contagem do tempo da Roma Antiga
para ali encontrar as bases do sistema ocidental
contemporâneo, utilizado em todo o mundo, embora
algumas sociedades usem, em paralelo, seus
sistemas tradicionais.
Vox Populiinicia a publicação de breves notas
do bibliófilo, escritor e jornalista carioca Edegard
Gomes (1916-1998) sobre expressões idiomáticas
ou ditos populares, constantes de seu espólio
literário, sob nossa guarda.
Em continuidade à última edição, “Nossos
povos, nossa língua” traz alguns elementos de
nossas tradições arqueológicas e “Pílulas de
Brasilidade”, aspectos da multidiversidade
linguística resultante da presença de comunidades
alemães no Brasil.
“Pílulas de Baianidade” discute os múltiplos
nomes e a relevância da figura de Iemanjá na
formação da baianidade e da brasilidade.
Pax et bonum!.
"A árvore não prova a doçura dos
próprios frutos, o rio não bebe suas
próprias ondas, e as nuvens não
despejam água sobre si mesmas: a
força dos bons deve ser usada para
benefício de todos."
Provérbio da sabedoria hindu
EXPEDIENTE
CiFEFiL
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Linguísticos
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O Filólogo de Plantão
Editor-geral; autor dos textos não assinados
Prof. Dr. Ricardo Tupiniquim Ramos
Próximas Atividades do CiFEFiL
XIV SIMPÓSIO NACIONAL DE ESTUDOS
FILOLÓGICOS E LINGUÍSTICOS
5 e 6 de abril de 2022
2
Flashes de Romanidade
DE VOLTA AO CALENDÁRIO ROMANO
Nesta edição, retomaremos o sistema de contagem do tempo, especificamente, dos
anos, próprio da cultura romana para ali identificar a origem do sistema ocidental
contemporâneo, próprio de nossa cultura, mostrando inicialmente que a relação entre o
calenrio e a Astronomia é direta. Isto ocorre porque, desde cedo, o homem sentiu
necessidade de dividir o tempo para comemorar suas festas religiosas e, principalmente,
para saber a época de suas atividades agrícolas e comerciais.
Os primeiros povos tinham dois sistemas básicos para contagem de longos períodos
de tempo que eram baseados nos movimentos do Sol e da Lua. Nos calendários solares,
geralmente toma-se como referência o ano trópico, cujo intervalo de tempo entre dois
solstícios de verão consecutivos, hoje sabemos, é 365,2422 dias. nos lunares, a base
é o período de 12 lunações o intervalo entre duas luas novas consecutivas:
aproximadamente 29,53059 dias), ou seja, 354,36708 dias.
A tradição afirma que o primeiro calendário de Roma foi criado por mulo, seu
lendário fundador, com 304 dias divididos em dez meses, cada mês variando entre 16 e
36 dias; o ano deveria sempre se iniciar no equinócio da primavera. Posteriormente, o
número de dias de cada mês teria 30 ou 31 dias, compreendendo 10 meses lunares. Ora,
como o ano trópico tem 365,2422 dias, eles deveriam ter algum sistema (não se sabe
qual) para corrigir o déficit de 61 dias. Mesmo que houvesse algum método engenhoso,
sabe-se que este calendário teve pouca duração, pois os meses flutuavam pelas estações
do ano. Os meses eram dedicados a ritos religiosos especiais ou às divindades: Martius
‘mês de Marte’ (> março), Aprilis mês do amor, dedicado a Vênus’ (> abril), Maius ‘mês
de Mercúrio’ (< maio), Junius ‘mês de Juno’. Como não eram dedicados a nenhum culto
religioso especial, os demais tinham nomes relativos à numeração ordinal: September ‘7º
mês’, October ‘o 8º’, November ‘o 9º’, December ‘o 10º’.
Segundo a historiografia romana, o segundo rei de Roma, o também lendário Numa
Pompílio, teria promovido algumas modificações no calendário de seu antecessor. Como
os romanos da época eram muito supersticiosos e consideravam fatídicos os números
pares, ele decidiu abolir os meses de 30 dias, que passaram a ter 31 ou 29 dias. Além
disso, aumentou para 12 o número de meses, introduzindo, depois de December,
Januarius (de 29 dias, em homenagem a Jano, deus das portas de passagem) e
Februarius (de 28 dias, dedicado a Febus e seus ritos de purificação).
Para corrigir a diferença de 10,25 dias em relação ao calendário solar, acrescia-se,
periodicamente, no fim do ano, o mês intercalar de Mercedonius (de merces, edis, renda,
tributo’, porque nele se recolhiam os impostos), contado a partir do dia posterior a 23 de
fevereiro. Além disso, os anos ímpares e o último de um ciclo de 24 anos (o pompilano)
tinham 12 meses de 355 dias; os demais, 13 meses, inclusive o intercalar, que podia ser
de 22 (no 2º, 6º, 10º, 18º, 20º e 22º ano do ciclo) ou 23 dias (no 4º, 8º, 12º e 16º ano).
Assim, o calendário passou a ter 12 meses de 355 dias e, com a intercalação, 377 ou
378. Assim, num período de quatro anos, tínhamos: 355, 377, 355 e 378 dias, dando uma
média de 366,24 dias. Os dois últimos períodos de quatro anos do ciclo de 24 anos
tinham, respectivamente, 371 e 372 dias, em vez de 377 e 378, eliminando 12 dias em 24
anos, o que provocou um ano ligeiramente maior que 365 dias. Com isso chegou-se a um
calenrio razoável para a época, embora complicado para o povo.
A intercalação dos meses e o controle dos números de dias eram atributos dos
pontífices, que acabaram tendo o poder sobre a época da investidura dos cônsules.
Assim, os responsáveis pela observância das regras da intercalação adiavam ou
antecipavam o Mercedonius, conforme a conveniência política. Desse modo, acabaram
perdendo o controle sobre o calendário, e em pouco tempo o caos havia se formado.
3
Júlio César (100-44 a.C.) contratou o astrônomo Sosígenes para reordenar o
calenrio. Entre as modificações introduzidas, citamos as seguintes: o ano passou a
iniciar em Januarius, não mais em Martius
1
; o ano passou a ter 365 dias e, de quatro em
quatro anos, um dia excedente em Februarius na exata posição em que antes se
intercalava o Mercedonius. Contudo, os pontífices erraram na interpretação das regras do
calenrio e estavam tornando bissextos os anos em intervalos de três anos, ao invés de
quatro. Com isso, nos 37 primeiros anos foram considerados 12 anos bissextos, quando
deveriam ser nove, o que produziu uma diferença de três dias.
Coube ao primeiro imperador, Otaviano Augusto (44 a.C. - 37 d.C.), corrigir essa
distorção em 45 a.C., decretando que não se fossem bissextos os três anos seguintes
que deveriam ser. Além disso, buscando homenagear o criador desse novo calendário
(seu tio e pai adotivo, Júlio César) e a si mesmo, ele promoveu a mudança dos nomes de
Quintilis ‘o quinto e de Sextilis o sexto para Julius e Augustus, respectivamente.
Quando o calendário romano era exclusivamente lunar, faziam coincidir as calendas
(primeiro dia do mês) com a lua nova; as nonas, com a crescente e os idos, com a cheia.
Depois, com o abandono do sistema lunar, surgiram datas fixas, predeterminados
2
,
conforme expusemos nesta coluna em julho passado (RAMOS, 2021).
Com a reforma juliana, passou-se a considerar o ano com 365 dias, com um ano de
366 dias a cada quatro, o que tornava na média a duração do ano com 365,25 dias. Mas,
como o ano trópico tem 365 dias, 5 horas, 48 minutos e 47,5 segundos, restando,
portanto, uma diferença de 11 minutos e 12,5 segundos, a cada quadriênio aumentava-se
1 dia, quando na verdade deveriam aumentar-se 23 horas, 15 minutos e 10 segundos.
Assim, a cada 128,5 anos, há um atraso de um dia nos equinócios e solstícios.
Em 325 d.C., reunido o Concílio de Nicéia para definir, entre outros temas, a época
da Páscoa, se percebera que o equinócio da primavera (fixado por César para 25/03),
estava ocorrendo quatro dias antes. Os bispos, então, refixaram a data para 21/03 nos
anos comuns e 20/03 nos bissextos, corrigindo o equinócio, mas não a duração do ano.
Somente em 1582 o papa Gregório XIII (1512-1586) reformou o calenrio juliano,
quando já havia um atraso de 10 dias da data do equinócio. Foram essas as modificações
introduzidas pela reforma gregoriana: supressão de dez dias do calendário: o dia seguinte
à quinta-feira, 4/10/1582, passou a ser sexta-feira, 15/10/1582, para que o equinócio
voltasse a concordar com a deliberação do Concílio de Nicéia; ausência de anos
bissextos durante três de quatro anos seculares: o primeiro desses ciclos começou em
1600, bissexto, seguido de 1700, 1800 e 1900, comuns, e 2000, bissexto
3
; a contagem
dos dias passou a ser feita pelos números cardinais em ordem e seguidamente, e não
mais a partir das calendas, nonas e idos.
A reforma gregoriana não foi aceita de imediato. Vários países se opuseram a ela,
principalmente os não católicos. Os católicos, Portugal e Espanha, a aceitaram em
outubro, e a França, em dezembro de 1582; Alemanha e Áustria, em 1584; a Hungria em
1587, a Inglaterra em 1752, a Suécia em 1753; a Rússia só em 1923.
Referências
ELIA, Silvio. Preparação à Linguística Românica. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico,
1979.
RAMOS, Ricardo Tupiniquim. As calendas gregas e os idos de março... O Filólogo de
Plantão, Rio de Janeiro, série 2, ano 1, n. 5, p. 2, jul./2021. Disponível em:
<http://www.filologia.org.br>.
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1. Para isso, ele fez o de janeiro coincidir com a primeira lua nova depois do solstício de inverno,
atendendo, assim, a antigas crenças dos calendários solar e lunar.
2. Além das datas fixas, os romanos costumavam indicar suas vésperas (pridie ‘dia anterior’) e seus dias
posteriores (prostidie ‘dia seguinte’), por meio de uma construção em ablativo/plural.
3. Assim, enquanto no calendário juliano todos os anos seculares eram bissextos, no gregoriano o
serão os divisíveis por 400.
4
VOX POPULI
EXPRESSÕES POPULARES
1
Edegard Gomes*
Santa do Pau Oco
No tempo em que o Brasil era dependente de Portugal, os governantes recebiam
severas ordens no sentido da repressão ao contrabando de que aqui se valia o povo para
fugir da exagerada cobrança de impostos. Chegaram a ser organizadas quadrilhas as
quais, burlando a vigilância das autoridades, conseguiam grandes lucros através de
variados artifícios, sobretudo a fim de levarem diamante e ouro em pó para Portugal e de
lá trazerem dinheiro falso, sem dificuldade colocado em circulação no Brasil.
Um dos artifícios utilizados consistia no aproveitamento de falsas imagens que, feitas
em madeira e ocas, serviam para o transporte fraudulento. Assim, inescrupulosos
comerciantes enriqueceram, passando facilmente pela alfandega com tais imagens, as
quais, depois de esvaziadas, eram por eles mandadas encher com material pesado e
oferecidas a irmandades religiosas, recebendo em troca honoríficos títulos de irmãos
benfeitores, que lhes davam reputação social, além da tranquilizadora certeza de terem
passado a mãos insuspeitáveis as provas de seus contrabandos.
Não dispondo de poderes para punir os espertalhões, o povo, que se vinga das
pessoas e coisas criticáveis crismando-as com nomes pitorescos ou irreverentes, passu a
chamar de “santa do pau oco” toda pessoa dissimuladora, falsamente boa, que finge ser
aquilo que não é.
Bode Expiatório
Para o Velho Testamento, não existindo homem que não peque e sendo o pecado
fator de separação de Deus do homem, necessidade de que periodicamente sejam de
modo especial reparadas as faltas cometidas.
Fieis a esse pensamento, os hebreus instituíram o Dia do Perdão, destinado a lembrar
que os sacrifícios de rotina o insuficientes para eliminação dos pecados, tornando-se,
por isso, necessária uma prova maior de arrependimento.
Para isso, no Dia do Perdão, o supremo sacerdote realizava cerimonia ao fim da qual
recebia dois bodes: um, conforme sorteio então promovido, era sacrificado, como oferta a
Deus pelos pecados do povo; e o outro, tido como encarnação do demônio, passava a
simbolizar os pecados, desditas e maldiçoes do povo, sendo, por isso, após ritual próprio,
entregue a mensageiro, a fim de ser levado ao deserto e lá abandonado.
Surgiu, assim, a figura do “bode expiatório”. E é com base nisso que a pessoa
acusada de falta que não cometeu, ou que não se considera culpada de alguma coisa que
lhe é atribuída, protesta, dizendo que não é ”bode expiatório”.
____________________
1 NE: Em 1980, o autor encaminhou à presidência do Banco Itaú, do qual era cliente, opúsculo com dez
breves notas sobre expressões idiomáticas ou ditos populares para constar de brinde de fim de ano da
instituição a seus clientes. Neste número, publicamos duas dessas notas, conforme originais datiloscritos
autorais emendados a mão constantes de seu espólio literário, nos quais não constam as fontes do autor.
* O bibliófilo, escritor e jornalista carioca Edegard Gomes (1916-1998) publicou, em vida, algumas obras
literárias (poemas, contos, crônicas, teatro) e técnicas, deixando inúmeros textos dispersos na mídia
impressa de sua cidade natal e inéditos, como o aqui apresentado. Doado pela família para a pesquisa
ecdótica, seu espólio literário está sob guarda do Laboratório de Estudos da Diversidade Linguística e
Cultural do Departamento de Ciências Humanas do campus VI da Universidade do Estado da Bahia.
5
Nossos povos, nossas línguas
A AMAZÔNIA E SUAS TRADIÇÕES ARQUEOLÓGICAS PRÉ-CABRALIANAS
Como dito na edição anterior, ao falar no legado das populações indígenas brasileiras muito
anteriores à invasão do continente americano pelos europeus no fim do século XV, os arqueólogos
apontam a existência de diferentes tradições, palavra referente, no jargão da Arqueologia, a um
estilo recorrente por um grupo cultural em um dado período cronológico e em espaço geográfico
restrito, as grandes regiões rupestres (JUSTAMAND, et al., 2017, p. 154). Até o momento, foi
possível identificar diversas tradições rupestres no território brasileiro umas com subtradições e
estilos
1
, outras espalhadas em largo espaço geográfico, verdadeiras províncias arqueológicas
2
;
umas especializadas em determinados artefatos, outras em campos de conhecimento.
Na edição anterior, enfocamos a tradição dos sambaquis, espalhadas em diversos pontos do
litoral brasileiro. Nesta, trataremos das tradições p-cabralianas da Amazônia, localizada às
margens dos rios Cuminá, Puri e Negro, ainda pouco estudada, com de painéis compostos por
bastões e gravações curvilineares e figuras em forma humana simétrica e geometrizada, com
cabeças geralmente radiadas, mas pintadas.
Nessa tradição, merece destaque o sítio arqueológico conhecido por Teso dos Bichos
2
,
localizado na ilha de Marajó, Pará, com pinturas datadas de entre 400 e 1300 d.C., que sugerem o
apogeu que de seus construtores, povo de alto desenvolvimento tecnológico (além de tesos,
edificavam centros cerimoniais em plataformas de barro) e ordem social bem definida deve ter sido
por volta do ano 1000. Nessa época, essa sociedade ocupava área em torno de 2,5 hectares, tinha
população entre 500 e mil pessoas, habitantes de casas coletivas definidas em função do gênero.
Isso e outros indícios sugerem a existência de divisão de trabalho por gênero (mulheres: agricultura
e preparo de alimentos; homens: caça, guerra, práticas religiosas).
Ora, a ocupação da Amazônia deu-se no período arcaico recente e está relacionada à
existência de uma indústria ceramista forte, surgida antes mesmo da agricultura. Todavia, os
vestígios humanos mais antigos datam de época um pouco anterior, por volta de 12,5 mil anos AP.
São lascas feitas a partir de técnicas distintas: algumas com o lascamento por percussão, outras,
por pressão, diferenças essas que apontam para a mudança da caça de animais de grande porte
(preguiças gigantes, tigres-dente-de-sabre, etc.) para os de pequeno porte (tatus, preguiças, etc.).
Sítios arqueológicos localizados na bacia do rio Ucayali, em Marajó, e no Orenoco e Amazonas
nos revelam a chegada de sociedades relativamente sedentárias, praticantes da horticultura de
raízes (inclusive, talvez, a mandioca), da caça e pesca e de uma indústria ceramista incipiente (aliás,
a primeira elaborada da América), com objetivos de formatos ovais e circulares, temas geométricos
e zoomórficos e pinturas em tinta branca e vermelha, apresentando dois estilos: o hachurado zonado
com artefatos encontrados em Tutoshcainyo (entre 2000 e 800 a.C.) e Ananatuba (entre 1500 e
500 a.C.) e o saladoide-barrancoide, típico do baixo e médio Orinoco (entre 2800 e 800 a.C.).
Posteriormente, entre 1000 a.C. e 1500 d.C., a Amazônia viu a emergência e desenvolvimento
de cacicados complexos sociedades hierarquizadas, com chefia centralizada na figura do cacique
que, além de dominar amplos territórios, organizava continuamente seus guerreiros visando a
conquista de novos territórios , nas várzeas do Amazonas e Orenoco, nos contrafortes orientais dos
Andes e nas costas do mar do Caribe. No Pará, há vestígios de duas dessas civilizações:
1) civilização tapajônica: localizada na região de Santarém, na bacia do Tapajós, sua cerâmica
pertencia ao grupo horizonte inciso penteado e se associava à tradição Itacoatiara; deixou como
vestígios vasos, peças com figurações de homens e animais, pratos com decorações incisas em
forma de botões, trabalhos em madeira de lei; dela, provavelmente descendem os povos karibes;
2) civilização marajoara: localizada na ilha de Marajó, durou quase mil anos e teve o apogeu em
cerca do ano 1000 d.C.; sua cerâmica pertencente ao grupo horizonte policrômico
3
; deixou como
vestígios esculturas e muiraquitãs
4
; dela provavelmente descendem os povos tupis.
Além de revelarem áreas especializadas para enterro, culto, trabalho (monocultura intensiva de
raízes, frutas e grãos
5
; caça e pesca intensiva; comércio e armazenamento de alimentos; indústria
ceramista altamente elaborada, com técnicas complexas de produção) e guerra , os sítios
arqueológicos dessas sociedades desmentem tese muito antiga, pela qual na selva amazônica não
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caberiam grandes núcleos populacionais, como Kuhikugu, ruínas de assentamento humano
permanente, cercado por fosso profundo e largo (preocupações defensivas?), descobertas pelo
arqueólogo norte-americano Michael Heckenberger, sua equipe e índios da região do Xingu.
As características naturais da floresta Amazônica explicariam porque os antigos europeus o
travaram contato com essas civilizações:
Os europeus nunca encontraram Kuhikugu e centros semelhantes porque eles estavam
procurando pela coisa errada. Queriam achar cidades perdidas e essas eram
estruturas multicêntricas, com redes de pequenos assentamentos, o que eu gosto de
chamar de cidades-jardim”, diz Heckenberger. [...] A população de uma cidade-jardim
poderia chegar a 50 mil pessoas, o que equivale às cidades-Estado gregas. (URBIM,
2014, p.32)
De Kuhikugu saíam estradas de vários metros de largura e margeadas por imensas hortas e
pomares em direção a mega-aldeias semelhantes, o que caracterizaria a estrutura política das
cidades-Estado.
Nessas vias, a presença de plantações leva os pesquisadores a aventar a possibilidade de ser
boa parte da floresta amazônica resultante de obra humana: “A distribuição de frutas e de um solo
específico a terra preta sugere a ão do homem. Muitas áreas do Xingu o 100%
antropogênicas, gigantescos pomares. E os povos do local ainda dominam sofisticados sistemas de
uso do solo’, diz Heckenberger” (URBIM, 2014, p.32)
Referências
ABREU, Aurélio M. G. de. Culturas indígenas do Brasil. São Paulo: Traço, 1987.
JUSTAMAND, Michel; MARTINELLI, Suely A.; OLIVEIRA, Gabriel F. de; SILVA, Soraia Dias de Brito
e. A arte rupestre em perspectiva histórica: uma história escrita nas rochas. Revista Arqueologia
Pública, Campinas, v.11, n.1, p.130-172, jul./2017. Disponível em:
<https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/rap/article/viewFile/8648451/16261>. Acesso:
14.dez.2021.
MIRANDA, Fernando Marquez. História das Américas: os aborígines da América do Sul. Rio de
Janeiro: W. M. Jackson, 1964, vol. 2.
URBIM, Emiliano. O Brasil antes de Cabral. Superinteressante, São Paulo, ano 27, no. 329, p.30-9,
fev./2014.
_________________
1. [...] a subtradição diz respeito a uma especialização de uma tradição rupestre, mantendo um padrão geral
estético, mas contendo elementos diferenciadores; o estilo é uma maior especialização da tradição, de modo que
possui mais elementos diferenciadores, mas mantém um uma recorrência técnica”. (JUSTAMAND, et al., 2017, p.
154-5)
2. Um teso é um aterro artificial monumental construído para a colocação de habitações, provavelmente para evitar
inundações.
3. A cerâmica marajoara é uma das mais belas entre as surgidas em sítios arqueológicos brasileiros. Sua descoberta,
na ilha do Pacoval, interior de Marajó, em fins do século XIX, foi acidental. Suas principais peças o urnas funerárias
com representações femininas, mas há outros utensílios, como cachimbos, pratos, maracás e pequenos ídolos, todos
de argila e decorados com motivos lineares, muitas vezes em relevo. Os estudiosos identificam cinco fases dessa
indústria ceramista: anatuba (costa norte), mangueiras (Marajó e Canaviana), formiga (costa norte e centro),
marajoara (mais da metade, na parte norte) e ar (menos marcante das fases).
4. Muiraquitãs são pequenos ídolos, de tamanho variável de 4 a 6 cm, geralmente talhados em certa pedra verde a
nefrita, também chamada amazonita ou jadeíta , com forma de animais sobretudo, batráquios , furados, usados
como amuletos pendurados ao pescoço ou amarrados à cabeça, como mbolo de autoridade e mando: “Segundo
lendas amazônicas, as icamiabas, ou seja, guerreiras sem marido, retiravam a bruta de um lago sagrado, o
Jaciuaruá, o Espelho da Lua, sendo os pequenos ídolos talhados em noites de lua cheia, o que aumentaria o poder
mágico dos objetos, transformando-os em amuletos de grande valor, principalmente medicinal, razão porque seus
possuidores sempre relutavam em vendê-los”. (ABREU, 1987, p.49)
5. A entrada do milho e outras sementes na região e sua popularização datam do primeiro milênio a.C.
7
baixa densidade populacional, depois para suprir a ausência de mão-de-obra para as lavouras cafeeiras,
provocada pela abolição e pelo deslocamento dos antigos escravos para os centros urbanos.
Contudo, exceto em relação ao alemão, ao italiano e sua(s) comunidade(s) sobre cuja implantação,
bilinguismo com o PB, interferência deste e neste (via herança lexical), um número considerável de
estudos sistêmicos e relativamente adensados , a contribuição das demais comunidades imigrantes e a
relação de suas línguas com o PB não vêm sendo estudada pela nossa academia, constituindo uma lacuna
a ser preenchida. Sobre a maioria delas há, no máximo, trabalhos genéricos sobre os empréstimos, em
que se identificam vocábulos de uso geral, em todo o país, e aqueles bem mais localizados, que acabaram
aprofundando as diferenças regionais do PB.
Na edição anterior, tratamos do italiano. Nesta, com base em Bolognini; Payer (2005) e Guimarães
(2005), focaremos no alemão, cujos primeiros falantes ingressos no Brasil procediam da Alemanha, Suíça,
Rússia, Polônia e Áustria. Atualmente, ele é falado nas cidades de Santa Leopoldina (ES), Rio Negro,
Ponta Grossa, Rolândia, Entre Rios (PR), Blumenau, Joinville, São Francisco do Sul, Brusque, Itajaí, São
Bento (SC), São Leopoldo, Santa Augusta, São Lourenço, Lageado, Montenegro (RS).
As primeiras colônias fundadas por imigrantes teutofalantes foram Leopoldina e São Jorge, em 1818,
na Bahia, e depois Nova Friburgo, em 1820, no Rio de Janeiro. No fim de 1824, D. Pedro I enviou o major
Georg Schäffer a Hamburgo para recrutar soldados e colonizadores; ele voltou com cerca de 125 pessoas;
38 delas receberam terras na região do rio dos Sinos (RS), fixando-se onde depois surgiu São Leopoldo.
Entre 1824 e 1830, entraram cerca de 5 mil teutofalantes no país, fixando-se principalmente nos dois
Estados do extremo Sul, em locais a eles destinado pelo governo brasileiro, interessado em povoar a
região. Entre 1847 e 1854, entraram legalmente cerca de 2700. No Espírito Santo, entre 1860 e 1879
chegaram teutofalantes alemães e pomeranos (de região atualmente dividia entre Alemanha e Polônia),
fixando colônias nos atuais municípios de Domingos Martins, Santa Leopoldina, Santa Teresa, Alto Santa
Maria, 25 de Julho, Limoeira, Jatiboca, São João de Petrópolis. Esse fluxo migratório foi interrompido por
14 anos, devido à Revolução Farroupilha. Além disso, a propaganda para a imigração foi proibida na
Alemanha em 1859, só vindo a ser permitida em 1896 e, mesmo assim, só nos três estados sulistas.
Com a unificação da Alemanha (1875), missões nacionalistas protestantes voltaram para com a
doutrina religiosa e o alemão padrão (Hochdeutsch). É dessa época o surgimento de diversas publicações
em alemão no Brasil: jornais, cartilhas, manuais de orientação religiosa e familiar, manuais técnicos,
boletins informativos e livros de história e literatura inspirados na vida dos imigrantes.
Em 1917, o Brasil entra na I Guerra Mundial contra a Alemanha e a circulação de periódicos e as
instituições em alemão foram proibidas. Após o término desse conflito, as relações diplomáticas entre os
dois países foram reatadas e o alemão e seu funcionamento em escolas e igrejas, deixou de ser proibido.
Até o início da II Guerra Mundial, houve a entrada de cerca de 300 mil imigrantes alemães no Brasil
que, somados a seus descendentes, contavam 1,2 milhões de teutofalantes em 1935. Nessa época, eles
se organizavam em pequenos grupos onde mantinham os dialetos locais. Contudo, com a entrada do
Brasil no conflito, novamente escolas e igrejas alemãs foram fechadas e jornais, proibidos. Apesar disso,
um número considerável de brasileiros que se consideram falantes e alemão devido à sua ascendência. No
entanto, não há pesquisas recentes que possam fornecer dados numéricos confiáveis.
Ainda neste tópico, cabe tratar do pomerano, dialeto alemão praticado apenas na oralidade (embora
recentemente haja tentativas de fixar-lhe um padrão escrito) em Pomerode e Harmonia (RS), Santa
Leopoldina e Santa Maria de Jetibá (ES), uma vez que na Alemanha, com o fim da Pomerânia, não se tem
mais notícia dele. Nas cidades brasileiras de falantes de pomerano, o alemão padrão tamm é falado em
atos religiosos e festividades folclóricas e ensinado nas escolas após o 6º ano do Ensino Fundamental,
enquanto o português só é praticado na escola.
Referências
BOLOGNINI, Carmen Zink; PAYER, Maria Onice. Línguas de imigrantes. Ciência e Cultura, São Paulo, v.
57, n. 2, p. 42-46, jun./2005.
GUIMARÃES, Eduardo (Coord.). Enciclopédia das línguas do Brasil. Campinas: LEU/UNICAMP, 2005.
Disponível em: <https://www.labeurb.unicamp.br/elb/geral/busca.html>. Acesso: 13.jun.2009.
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PÍLULAS DE BAIANIDADE
YEMANJÁ E SEUS MÚLTIPLOS NOMES
Dia dois de fevereiro
Dia de festa no mar
Eu quero ser o primeiro
Pra salvar Yemanjá
(CAYMMI, 1957)
No Brasil, em geral, no Recôncavo Baiano e, em Salvador, em especial, no dia 2 de fevereiro
comemora-se festivamente o Dia de Yemanjá, divindade afro-brasileira das águas salgadas, dos
mares e oceanos, a orixá que gera o movimento das aguas, a deusa da perola” (BARCELLOS, 2010,
p. 50), considerada a mãe de inúmeros Orixás e de todos os viventes. Suspensa com o início da
pandemia de Covid-19, a festa fora retratada, entre outros, por Jorge Amado, em “Mar Morto”:
É a noite da festa de Iemanjá. Por isso, o povo a chama, para ela vir brincar na areia [...]
mas Iemanjá não vem assim, com simples cânticos. É preciso que a vão buscar, que lhe
levem os presentes. [...] Rodeiam a loca da Mãe-d'Água. Os cabelos de Iemanjá se
estendem no azul do mar bem por baixo da Lua. As mulheres sacodem os presentes,
recitam os pedidos (... que meu homem não fique nas tempestades... nós tem dois filhos
pra criar, minha santa Janaína...) e ficam com os olhos longos vendo se eles afundam.
Porque se eles boiarem é que Iemanjá não aceitou o presente e então a desgraça pesará
sobre aquela casa. (AMADO, 2008, p. 82)
A divindade chegou ao Brasil junto com as pessoas escravizadas trazidas das regiões onde era
cultuada. Aqui, a ausência de liberdade de culto gerou uma espécie de hibridismo ou paralelismo
religioso, muito confundido com sincretismo. Tavares (2006) esclarece que o paralelismo religioso
corresponde a uma dualidade de crença; assim, uma não anula a outra, nem ambas se transformam
numa única. Por outro lado, no sincretismo, observa-se uma fusão de elementos.
No Brasil, o mito de Iemanjá sofreu alterações, de forma que a do lado de cá do Atlântico o é a
mesma do lado de lá, como fruto da hibridização de mitos africanos, indígenas e europeus, que dão à
nossa Iemanjá um caráter multifacetado. Sua fonte africana é representada pelo caráter maternal. Em
Sua mitigação, está claro Seu acolhimento aos deuses e homens desprezados por outros orixás.
Sua fonte indígena, a Iara (< Tp.-ant. y água, rio + îara ‘senhora, dona’; donde senhora ou
d’água, do rio’, por extensão ‘mãe d’água; RAMOS, 2020, p. 39) é uma ninfa de longos cabelos,
corpo deslumbrante e beleza irresistível, habitante do leito de rios, lagos e igarapés que enfeitiça os
ouvintes de seu canto, arrastando-os para o fundo d’água. Com o início da colonização, a Iara
também sofreu hibridizações, passando a ser representada como sereia mito originalmente grego,
posteriormente difundido por toda Europa, uma fantástica entidade aquática, mulher loira da cintura
para cima, peixe da cintura para baixo, que, igualmente seduz e afoga a quem a escuta.
Essa hibridização também se reflete nos títulos e outros nomes pelos quais Iemanjá é conhecida
no Brasil: In, Rainha do Mar, Sereia do Mar, Princesa de Aiocá, Axoquê, Janaína, Dona Maria,
Marabô, Mucunã, Olokun, Omoloku, Calunga, Kaiala, Soba, entre outros.
Iemanjá é o nome mais popular entre os brasileiros inclusive não devotos e estrangeiros.
Segundo Verger (2002, p.73), I[...] deriva de Yèyé Omo ejá (“Mãe cujos filhos são peixe”), é o orixá
dos Egbá, uma nação Iorubá estabelecida outrora na região entre Ifé e Ibadan, onde existe ainda o rio
Yemojá”. Por sua vez, ainda segundo esse autor, originalmente, em Ifé, cidade iorubana, Olóòkun
seria a deusa do mar, enquanto em Ibinim (donde, Benin), cidade fon, seria um deus, por sua vez, pai
de Iemanjá, que seria chamada Omoloku (< omo ‘filho(a)’ + Olóòkun, ‘filha de Olóòkun’).
Pouco popular, Inaê deve proceder do fon inon ‘mãe’ e nawé ‘um título respeitoso’; donde
‘honorável mãe’ (PESSOA DE CASTRO, apud SIMAS, 2012).
Embora Houaiss (2001) registre a tentativa de Cacciatore em explicar Janaína a partir das bases
iorubanas iya ‘mãe’ + naa ‘que + iyin ‘honra’; donde ‘mãe que honra’, Costa (2006) traz uma
explicação mais convincente: procede do português arcaico jana sereia+ -{ina} sufixo diminutivo’;
donde: ‘pequena sereia’, apontando, assim, para a fonte europeia pagã da nossa Iemanjá. Nessa
explicação, subjaz a do título Sereia do Mar.
Os títulos Rainha do Mar e Princesa de Aiocá se equivalem, pois mostram o caráter nobre da
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divindade nomeada. Para Lopes (2004), Aiocá é um lugar mítico utilizado em referência ao fundo do
mar, à sua vastidão. O nome parece vir do ioruba ayoka ‘aquela que provoca alegria em seu redor’.
Segundo Simas (2012), Marabô é um dos nomes de Exu. Sua referência a Iemané fruto de
uma alteração fonética de trecho de um célebre ntico iorubano dedicado à divindade das águas:
Awá àà à yó, Yemanja estamos protegidos, Yemanjá’’. De awá ààbò, Marabô. Cacciatore (1988, p.
58) afirma a origem também iorubana de Axoquê: a ‘aquela’ + ‘encolerizada’ + ‘gritou’.
Divindade angola-congolesa equivalente a Iemanjá, Kaiala tem duas proposições etimológicas
para seu nome: kimb. ayala ‘oceano, vasto mar’ (LOPES, 2003, p. 56) ou Nkaia Nsala ‘avó da vida’
(SIMAS, 2012). Por sua vez, Lopes (2003, p. 57) indica origem quimbunda para Calunga ‘mar’, nome
designativo de entidades espirituais vibrantes na linha de Iemanjá, pelo qual ela tamm é conhecida.
Por fim, a justificativa para o nome Dona Maria é o paralelismo/ hibridismo entre a Iemanjá
africana e Maria, mãe de Jesus, especificamente sob os títulos de Nossa Senhora dos Navegantes
(também celebrada em 2/02) em várias partes do Brasil ou Nossa Senhora da Conceição na Paraíba
e na Bahia (onde recebe o elemento restritivo “da Praia”). De acordo com Penna (1996, p.12-13),
“Quando por vício histórico a Igreja obrigou os escravos a uma cristianização, o resultado foi a
associação de muitas santas católicas à divindade africana”. Entretanto, Lody (1987, apud Penna,
1996, p.13) afirma que “a estética do cristianismo não conseguiu contaminar as virtudes e a dignidade
que fizeram do terreiro um polo de resistência e de conhecimento cultural do africano no Brasil”.
Assim, a associação entre essas duas diferentes concepções do Sagrado por nossos ancestrais
africanos não se deu ritualmente, mas apenas como forma de resistência e estratégia de preservação
do culto à sua própria divindade africana, atualmente realizado nos terreiros de candomblé.
Nessa diversidade de nomes e títulos atribuídos a Iemanjá, percebe-se Seu valor cultural não
para o povo de Axé, mas para muitos brasileiros, sobretudo os moradores à beira do cais baiano.
Ademais, percebe-se uma relação estreita das pessoas com Sua representação, visto que Ela
aparece indissociavelmente ligada às suas vidas, determinando suas ações e seu inconsciente como
mãe a quem todos recorrem, como mulher invejada por Sua beleza e até como fator social que
anestesia a revolta das camadas oprimidas da população.
Portanto, podemos caracterizar Iemanjá como elemento de afirmação da identidade cultural
brasileira e baiana, na medida em que, saindo do continente africano, atravessou o oceano Atlântico e
se abeberou em fontes indígenas e europeias, recriando-se e redefinindo-se simbolicamente,
assumindo múltiplas dimensões, divinas e humanas.
Referências
AMADO, Jorge. Mar morto. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
BARCELLOS, Mario C. Os orixás e a personalidade humana. 5e rev./ampl. Rio de Janeiro: Pallas, 2010.
CACCIATORE, Olga Gudolle. Dicionário de cultos afro-brasileiros. 3e. Rio de Janeiro: Forense, 1988.
CAYMMI, Dorival. Dia de Iemanjá. In: Id. Caymmi e o mar. São Paulo: Odeon, 1957, faixa 3, 2’46”.
Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=MOjIlsuEzhg>. Acesso: 27.jan.2022.
COSTA, Antonio L. M. Coelho da. A outra origem de Janaína. 2006. Disponível em:
<http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI1270956-EI6607,00.html>. Acesso: 18.mar.2012.
LOPES, Nei. Novo dicionário banto do Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2003.
PENNA, Lucy Coelho. Divindades femininas do Brasil. Disponível em:
<www.manamani.org.br/divindadesfemininasdobrasil.pdf.>. Acesso: 14/03/2012.
RAMOS, Ricardo Tupiniquim. “’Mar Morto e as identidades religiosas da Bahia”. In: Id.; et al. (Orgs.).
Afrobrasilindades. Rio de Janeiro: Litere-se, 2020, p. 31-41. [O volume Afobrasilindades pode ser
solicitado para envio gratuito pelo e-mail tupinikim@msn.com]
SANTOS, Ieda Machado R. “Iemanjá”. In: SANTOS, Francisco (Org.). África Bahia. Salvador: [s/ed.],
2000, p. 57-9.
SIMAS, Luiz Antonio. O refrão do Império Serrano e o culto a Iemanjá. 2012. Disponível em
<http://hisbrasil.blogspot.com.br/2008/08/o-refro-do-imprio-serrano-e-o-culto.html>. Acesso: 18.mar.2018.
TAVARES, Áurea C. Pereira. Vestígios materiais nos enterramentos na antiga Sé de Salvador: postura
das instituições religiosas africanas frente à igreja católica em Salvador no período escravista. 2006.
Dissertação Mestrado em Arqueologia. Recife: UFPE. Disponível em:
<www.cipedya.com/web/FileDownload.aspx?IDFile=161300>. Acesso: 15.mar.2012.
VERGER, Pierre F. Orixás: deuses iorubas na África e no Novo Mundo. 6. ed. São Paulo: Corrupio, 2002.
Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/6898406/Pierre-Verger-Os-Orixas-pdf>. Acesso em: 15.dez.2011.
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FICA A DICA
LITERATURA
“Só por hoje vou deixar meu cabelo em paz” de Cristiane Sobral
Érica de Souza Oliveira*
Cristiane Sobral é uma referência quando falamos de poetas negro(a)s
da nova geração. Em seus escritos, ela agencia, por meio de uma escrita
feminina afrobrasileira, discussões com base nos conceitos de diáspora,
negritude e feminismo negro. Nos poemas registrados em “Só por hoje eu
vou deixar meu cabelo em paz”, a autora concretiza a luta contra a máquina
opressiva que estrutura as relações sociais brasileira, tais como machismo,
racismo e sexismo. Ler a antologia de Sobral é entender que a escritora é
também uma intelectual negra, e que, portanto, ela vai lançar mão de uma
produção literária que está intimamente interessada em mudanças sociais, bem como versa
reivindicações, cobranças e desejos de mulheres que foram historicamente silenciadas.
Referência: SOBRAL, Cristiane. Só por hoje vou deixar o meu cabelo em paz. Brasília: Teixeira, 2014.
____________________
* Mestre em Estudos de Linguagem pela Universidade do Estado da Bahia. Doutoranda em Letras pela UNICAMP.
CINEMA The Family”, de Jesse Moss
“Presidente, o senhor não é Deus” – disse a jovem estudante evangélica de 19
anos em questionamento ao presidente Bolsonaro no último dia 25, no cercadinho
do Palácio da Alvorada, tendo ouvido esta resposta de um apoiador: “É sim, é
escolhido por Ele”.
Baseado no livro The Family: the secret fundamentalism at the heart of
American power, de Jeff Sharlett, e produzido pela Netflix, em 2019, o
documentário trata de fenômeno iniciado nos EUA: a união entre o grupo
fundamentalista cristão The Family ‘A Família’ e líderes da extrema direita daquele
país com vistas à dominação global, com a cooptação de políticos, militares e religiosos de outras
regiões do mundo, como os promotores da última Ditadura Militar brasileira (1964-1985) e, segundo
aquele escritor, principal figura do documentário, talvez do nosso atual governo.
Além da pauta conservadora nos costumes e em defesa da família e contrária às minorias, o que
aproxima a extrema direta ao redor do mundo é um discurso em torno das lideranças eleitas, como
escolhidas diretas de Deus para evitar o caos da nação ou a ameaça comunista.
Em alguns momentos, a reflexão colocada no centro da rie-documentário seja principalmente se
estaria a democracia do mundo ameaçada pela ação de um grupo fundamentalista religioso norte-
americano pretensamente secreto. Assista e chegue às suas próprias conclusões.
Referência: MOSS, Jesse (Dir.). The Family: a democracia ameaçada. USA: Netflix, 2019, temporada
1, 14 episódios.
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HOLOFOTES
Estudos Literários
FERREIRA, Carlos André. O Bode vai falar: sujeito Negro nas escrevivências de Oswaldo
de Camargo, Márcio Barbosa e Cuti. 2021. 258 p. Tese: Doutorado em Teoria e História
Literária. Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2021. Disponível em:
<http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/359983 >.
Objetiva-se analisar as conformações do sujeito negro nas obras de Oswaldo de Camargo,
Márcio Barbosa e Luiz Silva (Cuti), para compreender em que medida essa escrita propõe uma
ruptura com padrões auto-proclamados hegemônicos e postuladores da literatura como discurso
constituinte, noção, portanto, atravessada por instâncias relacionadas a uma ideia de um
discurso literário brancocêntrico e normativos. Como resposta a esse movimento, a literatura
negra se configura como lugar privilegiado de resistência aos mecanismos de apagamento e de
silenciamento de subjetividades negras. Considerando a ausência de uma efetiva política de
reparação no Brasil, percebe-se, desde a abolição, o completo abandono de pessoas negras
pelo poder público e o silenciamento de suas vozes caladas por um empreendimento colonial de
branqueamento como tentativa de limpeza dos rastros negros da formação étnica do povo
brasileiro. Esse branqueamento, por sua vez, também é perceptível quando se considera o ideal
de consolidação de um projeto de literatura nacional excludente da comunidade negra, presente
em toda parte. Essa nefasta lógica de apagamento de subjetividades empreendeu a outrização
de negras e de negros, como se fossem pessoas com quem ninguém devesse se importar,
vistas apenas como parte de cruéis mecanismos da engrenagem colonial, segundo a qual são
dispensáveis vidas consideradas subalternas. No entanto, com o esforço de empreender um
olhar decolonial, percebe-se o quanto a história oficial de nosso país lhes legou uma posição de
inferioridade em favor de uma suposta superioridade do colonizador branco europeu. Diante de
toda essa violência, é mais que urgente a eclosão de narrativas contrárias a esse padrão que
ser quer único e detentor de uma pretensa ideia de verdade, narrativas de contraliteratura,
textos escritos por sujeitos historicamente excluídos, que se propõem a entender a constituição
de sujeitos donos de suas próprias vozes, em campo diametralmente oposto ao do discurso
colonial responsável pela outrização. Ao chamarem para si a urgência de falar desde suas
próprias experiências, escritore(a)s negro(a)s se afirmam sujeitos de suas histórias,
constituindo-se, assim, eus, sem permitir perpetuação da lógica disseminadora da outrização.
Filologia
SANTOS, Elaine Brandão. O livro do gado do brejo do campo seco (Bahia): edição
semidiplomática e descrição de índices grafo-fonéticos. 2019. 316 f. il. Dissertação:
Mestrado em Estudos Linguísticos. Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de
Santana, 2019. Disponível em: <http://www5.uefs.br/cedohs/assets/files/SANTOS-
Dissertacao.pdf>.
Com grande importância para a história da penetração e difusão da escrita na Bahia, o “Livro do
Gado do Brejo do Campo Seco”, documento de foro privado, escrito por três gerações, do último
quartel do século XVIII ao terceiro do seguinte, no sertão baiano, foi objeto de edição
semidiplomática conforme critérios do Projeto para a História do Português Brasileiro (PB), que
vem divulgando corpora manuscritos e impressos de períodos pretéritos para estudo da história
do PB, culto e popular, para oferecer: uma documentação filologicamente confiável à
comunidade científica e aos demais interessados em investigações não sobre a história do
PB, mas também sobre os aspectos econômicos, políticos e culturais da história de uma Bahia
rural; a contextualização cio-histórica do documento e a descrição de índices grafo-fonéticos.
A pesquisa se insere no campo da história social linguística do Brasil para colaborar com a
reconstrução da história linguística e social do PB, em especial, do interior baiano.
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HOLOFOTES
Linguística
SCHER, Lilian Silva. A saliência fônica e o processamento da concordância verbal
variável no PB. 2021. 118 p. Dissertação: Mestrado em Linguística. Universidade Estadual
de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, Campinas, 2021. Disponível em:
<http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/359812>.
A concordância de número no português brasileiro (PB), de acordo com pesquisas do
campo da Sociolinguística, apresenta um caráter variável. Podem ser observados dois
principais padrões de realização: o padrão redundante, no qual marcação de plural
explícita nos itens relevantes (ex: "as meninas cantam bem"), e o padrão não redundante,
no qual a marca de plural pode ser omitida em alguns elementos (ex: "as meninaØ cantaØ
bem"). Essa variação é influenciada por fatores linguísticos e extralinguísticos. No âmbito da
concorncia verbal, a posição do sujeito em relação ao verbo, a animacidade do sujeito e a
saliência fônica têm sido apontados como os fatores linguísticos mais relevantes pela
literatura (Mendes; Oushiro, 2015). Segundo o princípio da saliência fônica, os itens lexicais
podem ser classificados como mais (ex: é/são) ou menos (ex: come/comem) salientes de
acordo com a diferença fônica entre suas formas no singular e no plural. Dessa forma, os
itens mais salientes seriam mais perceptíveis e favoreceriam a produção do padrão
redundante de concordância. O presente trabalho busca investigar a influência dessa
variável no processamento da concordância variável verbal no PB por parte de falantes
adultos universitários, considerando-se a proposta de classificação de Naro (1981) quanto à
saliência nos verbos. Para tanto, desenvolveu-se experimento com a técnica de produção
eliciada por repetição e analisou-se o corpus. Em relação ao experimento, espera-se
encontrar uma diferença entre o processamento dos dois padrões de concorncia e que a
saliência fônica se mostre relevante. Os resultados reportados não mostram diferença
significativa entre o processamento do padrão redundante e não redundante. Além disso,
não é possível observar uma influência da saliência fônica no fenômeno estudado. Em
relação à análise de corpus, essa sugere uma preferência significativa para a utilização do
padrão redundante por falantes com níveis mais altos de escolaridade. No geral, os
resultados sugerem a necessidade de investigar a saliência a partir de novas definições e
classificações na literatura sociolinguística e psicolinguística.