Como consta na coluna “Flashes de Romanidade” desta edição, no Carnaval baiano, há
duas marcantes e distintas expressões identitárias afro-brasileiras, os blocos afros e os afoxés. É
sobre estes que vamos tratar neste artigo, cujas referências se encontram ao final desta edição.
Afoxés1 são cortejos carnavalescos geralmente – mas não apenas – formados por adeptos
da umbanda e de candomblés de nação jeje-nagô (CÂMARA-CASCUDO, 1999, p. 39). Antes do
desfile, apartado do de outras agremiações momescas, em trajes brancos, com contas dos
orixás, ao som de instrumentos percussivos não consagrados2 (atabaques, afoxés3, agogôs,
xequerês) e ao ritmo do ijexá, sob os cânticos litúrgicos dos terreiros – seus integrantes fazem
oferendas a Exu, divindade das ruas e patrono da comunicação, pedindo que Ele não perturbe a
performance do grupo e, na festa como um todo, haja paz e harmonia.
Atualmente, em Salvador, além dos Filhos e das Filhas de Gandhi, há o Afoxé de Alagoas, o
Badauê, as Filhas de Olorum, os Filhos de Corim Efã, os Filhos de Ogum de Ronda, os Filhos do
Congo (antigo "Congos D'África"), o Ilê Oiá, o Kambalagwanze, o Laroiê Arriba, o Luaê, o Odô Iá,
o Olorum Baba Mi, o Pai Burucu e a Tenda de Olorum. Na cidade de Santo Amaro, a cerca de 70
Km da capital baiana, há, ainda o Viver Só Assim - Filhos de Angola. (WIKIPEDA, 2021a)
Destaca Houaiss (2001, p.107) o étimo controvertido da palavra, provavelmente ioruba, em
que significaria, segundo Beniste (2011, p. 8), certo culto a Ifá ou um encantamento de predição
do futuro, motivo de sua tradução como "o enunciado que faz acontecer". (WIKIPÉDIA, 2022a)
Cacciatore (1988, p. 40) aponta semelhanças entre o afoxé e o maracatu pernambucano: os
ritmos, musicalidade e danças, além da presença de uma boneca preta à frente dos grupos:
nesse, a Calunga, naquele, a Babalotim. Demarca, contudo, uma principal diferença a ausência,
na manifestação baiana, do rei e rainha, próprias da congênere pernambucana. Além disso,
cogita-se uma provável origem comum a ambas: a coroação dos Reis do Congo, celebradas, no
século XIX, em agremiações como a “Embaixada Africana”, “Pândegos da África” e o “Otum Obá
de África” (QUERINO, 2010, p. 88), extintas ainda naquela centúria, mas preservada, na Bahia,
noutra forma de folguedo afro-brasileiro não momesco, a Congada, registrada em todo o Estado.
Do fim do século XIX até 1949, não houve registros de afoxés no Brasil, até que, naquele
ano, os estivadores do porto de Salvador, em sua maioria filhos de casa de Candomblé da nação
jeje-nagô, criaram o Afoxé Filhos de Gandhi4, de participação exclusivamente masculina,
reiniciando e renovando a presença desse tipo de cortejo profano-religioso no Carnaval
soteropolitano, depois exportado para cidades de outros estados: Aracaju (SE), Belo Horizonte
(MG), Brasília (DF), Campinas, Guarulhos, Ribeirão Preto, São Paulo (SP), Fortaleza (CE),
Macaé, Rio de Janeiro, Olinda, Recife (PE), etc. (WIKIPEDA, 2021a)
Afoxés: elemento identitário do carnaval baiano, vinculado à religiosidade ancestral africana
no Brasil, levado a outras cidades do país pelos adeptos dessa mesma fé.
Assim, também na folia carnavalesca, sem surpresa, a baianidade berço da brasilidade.
____________
1. As obras de referência consultadas (V. referências) informam outros dois sentidos ritualísticos para a palavra afoxé:
candomblé de qualidade inferior (não apresentam, contudo, qualquer critério para o estabelecimento de uma hierarquia
de candomblés) e termo pejorativo para as festas de Quimbanda, “linha ritual da umbanda que pratica a magia negra”
(CACCIATORE, 1988, p. 218).
2. Segundo Câmara Cascudo (1999, p. 39), a palavra pode, ainda, indicar um idiofone também conhecido como aguê,
sacudido especialmente em cerimonias religiosas afro-brasileiras, mas também presente em orquestras populares.
Cacciaatore, contudo, demarca que, com este sentido, a pronúncia da sílaba tônica pode variar quanto ao timbre,
aberto ou fechado, de forma que teríamos afoxé ~ afoxé, o que não ocorre em referência ao cortejo.
3. Como os instrumentos não são consagrados e, antes do Carnaval, as deidades afro-brasileiras são despachadas
para a África no ritual do Lorogum, nos afoxés não há transes ou incorporações rituais. (CACCIATORE, loco cit.).
4. Com sede no Pelourinho, Centro Histórico de Salvador, e inspirado nos princípios de não-violência e paz do ativista
indiano Mahatma Gandhi o afoxé Filhos de Gandhi possui cerca de 10 mil associados.