ESCRITA
E PODER *
possibilidade de salvação"
No passado, o Poder era
considerado pelo artista de um modo geral como algo natural, universal, daí sua
dificuldade em ultrapassar os valores e ideologias da classe dominante. Na
Antiga Idade Média, alguns escritores buscaram construir suas obras nos ideais
de justiça, humanização, igualdade. Apesar disso, a ideologia da classe
dominante se revela e transparece em suas obras, de alguma maneira.
A
partir do séc. XV, e bem mais no século passado, o inconformismo começa a se
manifestar no campo artístico. A arte literária em especial passa a ser um
reduto para/de contestação do Poder. A partir do Renascimento, esta busca se
faz mais consciente, amplia-se no séc. XIX
e atinge seu apogeu no séc. XX.
O
discurso literário coloca o homem diante de si mesmo e do outro. O ser, sabemos com
Heidegger, é relacional. Ele se compreende e elucida na relação: ser no
mundo, ser com os outros.
Nossa cultura, a brasileira, formou-se e firmou-se com e no comprometimento servil das chamadas elites com o colonizador. A literatura, bem como a produção intelectual e artística, de um modo geral, apresentava os personagens e o povo fora de suas tensões e conflitos. Criou-se e propagou-se entre nós o mito do povo cordato, na sua índole pacífica, na pregação da “ordem e progresso”.
Muitos
foram os que, pensando/buscando inovar ou mesmo subverter, nada mais fizeram que
refletir e reproduzir, em seu discurso (forma e conteúdo), o discurso do Poder,
ajudando a manter e propagar estereótipos, preconceitos e, mais que tudo,
revelando a adesão ou subserviência à cultura e ideologia do colonizador ou
neocolonizador. Em suas obras, por vezes, num ou noutro momento, percebe-se,
vislumbra-se a tentativa de libertação de influências. Mas, aqui e ali,
subjacente e/ou como pano de fundo, a ideologia do Poder se revela, transparece.
O trabalho do escritor reflete as condições sociais, políticas, econômicas e culturais de sua época. A arte, sabemos, não lida com o imaginário em si mesmo, mas com a realidade através do imaginário. Por ela, o artista se apropria do real e o reconstrói através do seu saber pessoal, construído e constituído através de suas experiências e vivências, ou das vivências e experiências alheias. O texto literário existe num contexto social, que ele reflete e revela. O social não é exterior ao texto literário.
O
escritor faz a análise e síntese da realidade psicossocial. Antes de “escrevê-la”
ele a “lê”. Adota ele a sua perspectiva ou ponto de vista e vem a expressá-los
pela forma por ele escolhida e adotada.
Esta forma é um conjunto de relações
significantes. Procura ele dizer nos meandros da escritura do texto, ultrapassando os níveis
da língua, que apenas fala (arbitrariedade
dos signos). Diz ele, mais e muito,
igualmente no discurso do silêncio.
É
pela forma escolhida e adotada pelo
escritor que o leitor percebe, aprecia e julga o universo criado, inventado,
pensado, imaginado, e reage diante dele. A forma
é, pois, a corporificação do trabalho do escritor, que eleva os temas
à condição de conteúdos. Sua função é intermediar a relação/comunicação
entre o escritor e o leitor. É, por si, um fato social.
Através dos tempos, o discurso literário vem buscando incorporar o
discurso do oprimido, na forma e no conteúdo, registrando e buscando legitimar
igualmente seus usos lingüísticos, seus modos de dizer. Lembremos Lima Barreto
contrapondo o linguajar de seus personagens suburbanos aos padrões lingüísticos
vigentes e Guimarães Rosa retratando o homem simples do sertão, o jagunço, o
cangaceiro, e reproduzindo igualmente sua linguagem.
O
homem só é verdadeiramente um artista quando cria a sua língua, fazendo a
transubstanciação da linguagem do povo, dando-lhe forma literária sem
descaracterizá-la. Guimarães Rosa chega mesmo a modificar e recriar a
linguagem já existente através de elementos e processos (prefixação e sufixação,
por ex.) da própria gramática da língua.
Nas
“escolhas lingüísticas” pelas quais passa perpassa seu discurso, e por
elas, o escritor revela muito de si, de suas preferências, tendências e influências
a que se expôs/expõe.
Entre
nós, muito se discutiu sobre dar-se lugar aos usos do português do Brasil. A
subserviência ao colonizador também aí se manifestou e revelou.
As
discussões se fizeram presentes com mais vigor quando de nossa independência,
com exageros e descalabros muitas vezes. De um lado, os que, nacionalistas,
buscavam dar lugar à sintaxe brasileira, legitimando nossos modos de dizer
consagrados pelo uso. Chegaram alguns a pregar a existência de uma “língua
brasileira”. De outro lado, os que, puristas, resistiam a essa legitimação,
sem nenhuma concessão ao uso corrente.
Mas
vemos José de Alencar, a pregar a legitimidade e legitimação de nossa
sintaxe, ao mesmo tempo que coloca, na boca de seus índios, o falar lusitano,
com tratamento tu, com correção e,
nas suas atitudes, o pacifismo diante do colonizador branco. José de Alencar,
lembremos, reproduzia, no seu metadiscurso, padrões clássicos e medievais.
Isso era comum aos escritores de sua época.
Monteiro
Lobato, em artigo publicado na Revista Dom
Casmurro, de 30 de junho de 1938, preconiza que, assim como o português
“pela corrupção popular” saiu do latim, o brasileiro estaria saindo do
português. Ao mesmo tempo, como escritor, era profundo admirador da linguagem
camiliana. No seu Idéias de Jeca Tatu (7ª
ed., p.39), por exemplo, lê-se: “... mas
pela não termos hoje, é absurdo negarmos direito à fisionomia”.
(apud LAPA, 1975: 96), onde ele
retoma, tal como fizeram Alberto de Oliveira e Rui Barbosa, autores de pendores
e/ou tendências classicizantes, o emprego da preposição PER (POR) combinada
com os pronomes pessoais o(s), a(s) como
objeto direto do infinitivo, comum no português mais antigo.
Poderíamos
citar muitos outros exemplos de como a subserviência a ideologias de que se
busca libertar pode se revelar e manifestar no conteúdo ou na forma do discurso
do escritor.
Muitos
foram os que, nacionalistas em política, não admitiam a legitimação dos usos
e modos de dizer do português do Brasil,
tomando a sintaxe lusíada como a única realmente válida.
No
Brasil, como nos E.E.U.U., e um pouco menos nos demais países americanos,
explodiu, após a independência, um nacionalismo exacerbado, agressivo, que
veio a descambar, muitas vezes, para um radicalismo ideológico, tão equivocado
quanto equivocada era a subserviência a valores e padrões do colonizador. De
um lado, as chamadas elites dirigentes, subordinadas aos padrões europeus; de
outro, os que, querendo-se nacionalistas, pregavam a negação total de padrões
e valores europeus, fruto do que Celso Cunha veio a chamar de “sentimento de bastardia”,
gerado por longa vassalagem cultural. (CUNHA, 1977: 11).
No
século XIX, a distância que normalmente existe entre língua oral e língua
escrita estava em muito ampliada entre nós. No Modernismo, buscou-se diminuir
ou eliminar essa distância, chegando Manuel Bandeira a afirmar que o povo é
que falava gostosamente o português do Brasil, enquanto que os escritores nada
mais faziam que macaquear a sintaxe lusíada.
Luiz
Carlos Lessa, no seu O Modernismo
Brasileiro e a Língua Portuguesa,
registra muitos de nosso modos de dizer agasalhados por escritores como Carlos
Drummond de Andrade, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Diná Silveira de Queirós
e José Lins do Rêgo, dentre outros. Registra ele, nesses escritores, por
exemplo, o emprego do verbo ter por haver,
no sentido de existir, o emprego da
preposição em com verbos de
movimento, o emprego do pronome pessoal ele
como objeto direto, etc. (LESSA, 1960: 78).
Muitos
desses usos, cabe lembrar, nada mais são que arcaísmo conservados. As línguas
transplantadas, lembremos, têm tendências arcaizantes.
Apesar
de, em alguns momentos de alguns de seus textos, os escritores modernistas
terem, de certa forma, avançado no que buscou José de Alencar, dentre outros,
faltava e falta entre nós, como veio a salientar Celso Cunha no seu Língua
Portuguesa e Realidade Brasileira, a constituição de uma língua standart,
da qual pudesse surgir uma língua escrita e literária sui generis. Uma língua que, diríamos com Jorge Luís Borges,
tenha “um matiz que seja bastante
discreto para não entorpecer a circulação total do idioma, e bastante nítido
para que nele ouçamos a pátria” (BORGES, 1952:27-28).
Caberia
igualmente fundamentar o ensino da língua portuguesa do Brasil em estruturas
normativas sentidas como próprias, o que não eqüivale a pregar, como fizera
Cassiano Ricardo, “uma língua própria”. (apud
CUNHA, 1977: 78 e 16).
O autoritarismo tende à eliminação de/das diferenças e divergências, nas várias formas de conciliação de conflitos e tensões que busca escamotear e camuflar. Tentar impor uma variedade lingüística como sendo a única legítima, negando as demais, é uma forma de autoritarismo. A imposição do uso desarrazoado igualmente o é.
“A
causa primária e eficiente do fenômenos lingüístico é o espírito humano”,
lembremos com Sílvio Elia. (ELIA, 1978: 64). E esse não tende à uniformidade
ou à uniformização. Fernando Pessoa, sempre ele, questionou com propriedade:
“Deus não tem unidade, como a terei eu?”
(cf. BERARDINELLI et
alli, 1994: 11). E definitivamente disse tudo.
Vossler
veio a acentuar o aspecto criativo da linguagem. Para ele, o discurso, o estilo,
é, acima de tudo, uma obra de arte. É ele, antes de tudo, criação.
“E o chato com os discursos”, diríamos com Edward Lopes, “é
que, se a gente pode fazer algumas coisas com eles, eles, em troca, podem fazer
o que quiserem com a gente - a gente não tem como escapar deles”. (LOPES,
1993: 14). “O discurso”, continua
ele, “é inevitável. O discurso é um
labirinto”. (Ibid.).
O
discurso literário se “labirinfica” (“labirintiza”?) mais e mais, posto
que se realiza num universo mágico, que ele igualmente realiza. Ele é, pois,
um universo mágico, onde tudo é previsível e paradoxalmente imprevisível. É
ele a obra de arte maior de/da realização da linguagem. Sendo impresso,
escrito, ele se reproduz e eterniza através do(s) tempo(s) e, mais que tudo, a
cada leitura.
Mas,
(inter)ferindo na relação/comunicação entre o escritor e o leitor, (inter)mediada
pelo texto, estão as influências sociais, políticas, econômicas, culturais a
que ambos, leitor e escritor, estão sujeitos desde sempre. Afinal, somos
contigentes, vivemos no cotidiano, influenciando e interferindo nas coisas ao
redor, e sendo por elas influenciados.
A
língua (langue) é, em si mesma, um
fato social antes de tudo. Ela reflete e condiciona nossa maneira de pensar
através de suas limitações, na arbitrariedade pela qual se estruturou e
configurou. Mas por ela igualmente se pode criar e, conseqüentemente,
subverter. É ela que nos oferece o instrumental para tal subversão, nas suas
possibilidades, modalidades, usos e registros – variedade (discurso, parole)
da/na unidade (língua, langue) –
nas suas virtualidades, nas múltiplas
possibilidades de realização que lá estão, no seu abismo sem fundo.
O
poder de a Palavra evocar, invocar e
convocar à vida, no processo maior de Criação,
se fez no Gênesis e se presentificou e presentifica no tempo pela escrita,
nas escrituras bíblicas.
Mas esta Palavra tem, ao lado
do poder de criar, o poder de destruir, sendo o mais abençoado e perigoso dos
bens. E a ela estamos todos maravilhosa e perigosamente expostos.
BERARDINELLI, Cleonice, HÜHNE, L. M., PEGORARO, R. Fernando Pessoa, Martin Heidegger. O Poetar Pensante, organiz. Leda M. Hühne. Rio de Janeiro, Uapê, 1994.
BORGES, Jorge Luís. El Idioma de los Argentinos. Buenos Aires, 1952.
CUNHA, Celso. Língua Portuguesa e Realidade Brasileira, col. Temas de Todo o Tempo, 13. Rio de Janeiro, Ed. Tempo Brasileiro, 1977.
ELIA, Sílvio. Orientações da Lingüística Moderna, Rio Livr. Acadêmica, 1955; 5ª ed. Rio, Ao Livro Técnico S/A, 1978.
LAPA, M. RODRIGUES. Estilística da Língua Portuguesa. 7ª ed. Revista e aumentada, Biblioteca Brasileira de filologia, vol. 15. Rio de Janeiro, Livr. Acadêmica, 1973.
LESSA, L. C. O Modernismo Brasileiro e a Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, FGV, 1960.
LOPES,
Edward. A palavra e os dias. Ensaios sobre
teoria e a prática da literatura. São
Paulo, UNESP, 1993.
(Editora da Universidade Rural (EDUR) in Revista Universidade Rural. Série “Ciências Humanas”, vol. 17, n. 112, Rio de Janeiro, jan./dez. 1995. p.55-58.)