A
CONTRIBUIÇÃO
DE
CELSO
CUNHA
PARA
A
EDIÇÃO
DE
TEXTOS
MEDIEVAIS
Hilma Ranauro (UFF/ABF)
Para a
fixação dos
textos
críticos da
poesia
trovadoresca,
para
edição
crítica reconstrutiva de compilações e de
autores
singulares ressalta
Celso
Cunha
a
necessidade de
um
paciente
trabalho de
aproximação do
original, precedido de
um
conhecimento aprofundado do
caráter e do
significado
histórico das compilações, na
busca,
inclusive, da depreensão das
técnicas
editoriais da
época,
com
especial
atenção
quanto à polissemia e à movência do
texto
medieval.
Após
considerar
que todas as
referências a códices
trovadorescos
anteriores aos apógrafos italianos
localizam-nos
em
bibliotecas de
nobres, conclui
que
naturalmente os
autores dessas compilações se terão
permitido
reelaborar as
cantigas
segundo o
registro
lingüístico
culto,
próximo ao do
público refinado a
que
elas se destinavam.
Com
isso, muitas
formas teriam sido neutralizadas, eliminando-se
a
maior
parte dos
efeitos das variações diatópicas, diastráticas
e
mesmo diafáticas, próprias de
qualquer
idioma
Alerta
para os
problemas gerados
pelos
editores
modernos a “calafetar” o
verso
para torná-lo
regular . Estariam
esses “editores-intérpretes” a
retocar os
textos
até
mesmo
onde os
primeiros
compiladores,
embora buscassem moldá-los a uma
norma
culta vigente,
não lograram fazê-lo. Lembra
que
editores de
textos
medievais costumam
confundir
lição
autêntica
com
lição
exata
ou
correta, o
que os
leva à
construção de
arquétipos
com a
eliminação das
variantes, substituindo o
gosto e o
saber do
autor dos
textos
pelos
seus, na
negação do
próprio
conceito de
arquétipo,
pois
que
ele se justifica
exatamente
pelos
erros
conjuntivos
que apresentam os
manuscritos.
Para
edição dos códices
pelos
quais se conservaram os
textos
medievais, recomenda a
fac-similar, “que
nos apresenta o
livro
medieval
em
sua
concreta
realidade”. (p.47). “O
códice”, vem a
considerar, “é o
próprio
original”. (p. 48). Lembra
que uma
edição
crítica reconstrutiva é o coroamento de
um
paciente
trabalho de
aproximação do
original. Essas compilações seriam,
por
excelência, o
livro
medieval. Estudá-las,
em
sua
articulação e
estrutura
fundamental, é o
caminho
para a depreensão das
técnicas
editoriais da
época, do
funcionamento dos scriptoria, da
correlação
entre os
manuscritos
para o
estabelecimento dos
dados codicológicos
básicos
com
vistas a
edições
críticas de
autores
individuais.
Alerta
sobre os
cuidados na
edição de uma
obra a
partir do
quatro
sentidos propostos
por Dante (Il Convivio):
literal, alegórico,
moral (ou
tropológico) e anagógico (super-sentido), partindo-se do
primeiro (literal)
para a depreensão dos
demais. Lembra
que Dante afirma
ser o
sentido da
poesia menzona,
coisa ficta
pelo
poeta. Lembremos Fernando
Pessoa ao
falar do
poeta
como
um fingidor.
Ressalta
ser
característica
fundamental da
cantiga de escarnho o
fato de “ser construída
sobre o
equívoco e de
permitir duas
interpretações”,
como se observa na
Arte de
Trovar do CBN. (p. ). Apresenta
textos
medievais
por
meios dos
quais pode-se
depreender a
preocupação de
seus
autores
em
advertir o
leitor
sobre os
vários
sentidos
que
lhes subjazem.
Assim sendo, conclui,
não cabe
atribuir à Nouvelle Critique francesa “a
descoberta da polissemia do
texto
literário e a
conseqüente
legitimidade de
qualquer
interpretação
ou
leitura
por
ele sugerida”,
como se
veio a
afirmar
nos
últimos
tempos. (p. 24).
Chama a
atenção
para a
ambigüidade polimórfica
presente
nos
poetas
trovadorescos. Cita Paay Gomes Charinho a
comparar as
inconstâncias do
mar ao
comportamento do
Rei de
Castela e Leon e Pero Meogo a
representar o
namorado e o
amigo
pelo
cervo. Na
realidade,
alerta,
não se estaria
diante de
um
sentido alegórico,
mas
literal,
visto
ser o esperado
pelos
leitores e
ouvintes da
época. Ao filólogo caberia,
preliminarmente, o
estabelecimento do
sentido
literal, sabendo-o
rico
em
suas potencialidades, e, ao
editor,
conhecer a
cultura da
época
em
que se situa o
autor escolhido,
para
que
não sejam interpretados
como
metáforas
ou
criações
suas o
que, na
realidade,
são topus, codificados.
O filólogo
clássico trabalharia
com a
tradição quiescente, a dos
scriptoria.
Seu
trabalho ecdótico se basearia numa
relativa
raridade de
erros
conjuntivos
em
nível de
arquétipo. O filólogo
românico trabalharia
normalmente
com a
tradição
viva.
Seu
trabalho ectódico se basearia numa
relativa
abundância de
erros separativos,
efeito
natural da movência.
Ambos, filólogo
clássico e filólogo
românico, se ateriam a
problemas
comuns,
mas
como/com?
experiência
diversa.
Para
tanto, há
que
atentar
para os
aspectos
semânticos do
léxico,
para a polissemia e movência do
texto
medieval,
seu
estudo
genético,
suas variações, geradas
ou
pela
transmissão
oral
ou
pela
indiferença dos
escritores
medievais
quanto à
propriedade e à
originalidade da
obra,
que alteravam.
Lembra
que,
durante 150
anos, a
poesia
trovadoresca viveu
cantada, o
que
em
muito terá aumentado
sua
tendência à movência, e
que foi no séc. XIII
que
ela começou a
ser coligida.
Esse
fato, pondera, a predispõe a outras variações,
desta
vez a
cargo dos
copistas. “A
abundância de
erros separativos”, afirma, é
efeito
natural da movência”. (p.58). Numa
análise filológica
sistemática e
profunda,
com
base
em
minuciosos
estudos scriptológicos e codicológicos, caberia
detectar e
resgatar,
subjacente ao
formalismo
superficial, a
língua
livre, “no
seu
concreto
operar”. ( p.60). Caberia
atentar
para o “permanente fazer-se da
obra
medieval”. (p.36).
Só
assim,
alerta, ter-se-ia uma
segurança
maior na
fixação dos
textos
críticos da
nossa
poesia
trovadoresca.
Recomenda
que
igualmente se atente
para os
problemas gerados
pala
pontuação
medieval. Lembra
que
sobre
sua
finalidade,
até há
bem
pouco
tempo,
quase
nada se sabia. E
que
ela
não obedecia à
sintaxe,
como
em
nossos
dias,
mas ao
ritmo. Ressalta a
necessidade de
atenção
para os
problemas
que se relacionam à
própria
sintaxe, “a
eterna
filha abandonada da
filologia
medieval”. O
estudo da versificação seria
etapa
essencial da
investigação
crítica, de
modo a
detectar
fenômenos
que, incidindo
sobre o
suporte fônico, possam
ter contribuído
para a
modificação da
estrutura do
verso.
Caberia
um
estudo,
prévio, das
normas pelas
quais se pautavam os
encontros
vocálicos, intra e interverbais,
bem
como das possibilidade de
escolha dos
poetas
para
resolver
tais
concorrências vocálicas.
Para
tanto, esclarece, é
necessário
que se pesquise,
exaustivamente, o
comportamento das
sílabas átonas,
certos fonetismos
peculiares a
determinados
períodos do
idioma. Lembra
que
certos
trovadores e
jograis declaravam
não
saber
igualar o
verso,
nem rimá-los
com
perfeição, e
que o
ritmo dos
versos
por
vezes se moldava ao
ritmo da
música
pela
qual se faziam
acompanhar, o
que interferia na
distribuição dos
acentos e da
qualidade das
sílabas, alongadas
ou reduzidas,
para igualar-se ao
tempo musical, o
que João de
Barros
já o documentava no séc. XVI.
Quanto às
questões scriptológicas, levanta
um
outro
problema, “crucial”
segundo
ele, a
ser enfrentado
por
quantos intentem
fazer
um
estudo de
um
texto
medieval,
qual seja, o de, partindo da
análise do
material grafemático,
depreender o
subsistema
fonético–fonológico
a
que estaria obedecendo o
autor.
Aí, pondera,
um
outro
problema surgiria:
que
ortografia
seguir na
apresentação das
cantigas trovadorescas, uma
vez
que
nenhum
acordo
fora
possível,
até o
momento,
devido ao “radicalismo
de
certas
posições”? (p.81).
Ressalta a
necessidade da
formação de uma
equipe especializada
para
que se viesse a
elaborar o
Grande
Dicionário da
Língua
Medieval Galego-Portuguesa.
Para
tanto, dever-se-ia
buscar
conciliar o
aspecto
científico
com o
econômico, num
sistema
tanto
quanto
possível
maleável,
para
que se resguardem as variações fonológicas e se
alcance uma
superior
unidade.
Isso facilitaria a
divulgação da
lírica
trovadoresca,
que é, salienta,
não
um
patrimônio da
cultura
medieval galego-portuguesa,
mas
um
patrimônio da
Humanidade. Recomenda
que,
assim
como a
crítica
textual se beneficiou dos
progressos da
informática,
também se busque fazê-lo
com
referência a algumas
teorias e
noções da
Lingüística,
como a
teoria da variação, os
conceitos de
norma,
níveis de
língua,
registro, diassistema, geovariantes, cronovariantes,
dentre
outros.
Tais
conceitos,
bem
como a
metodologia
que pressupõem, aplicados à
crítica
textual, pondera, ajudariam a
diminuir o
campo do ignoramus da
Filologia.
CUNHA,
Celso
Ferreira
da, Significância e Movência na
poesia
Trovadoresca.
Questões
de
Crítica
Textual,
Coleção
Diagrama,
n.º 12,
Rio de
Janeiro,
Tempo
Brasileiro, 1985.