A RELAÇÃO ENTRE GÊNERO GRAMATICAL E SEXO  

- as considerações de Jerônimo Soares Barbosa e Mattoso Camara Jr. -

 

                                                                                     Hilma Ranauro

    

Quando é preciso especificar o sexo do animal, ajuntamos ao seu nome promiscuo, debaixo do mesmo artigo, o adjetivo explicativo macho e fêmea, dizendo: o elephante macho, o elefante femea, a onça macha, a onça femea, etc.”. (BARBOSA, 1881, p.88).

 

            Jerônimo Soares Barbosa não incorre no equívoco em que veio a incorrer a gramática tradicional, que, nos casos mencionados na citação acima, fala em distinção de gênero. Na realidade, os nomes ou são masculinos ou femininos, os termos macho ou fêmea lhes são acrescentados para distinção de sexo. Para isso veio a alertar Mattoso Camara Jr.

.           Buscamos mostrar que muitos dos argumentos e ponderações apresentados por Mattoso Camara Jr., eminente representante do Estruturalismo no Brasil, se encontram expostos na gramática filosófica. Para eles alertara Soares Barbosa, e, antes dele, os gramáticos de Port-Royal.

            A visão de Arnauld e Lancelot, exposta na Gramática de Port-Royal, subjazem ao discurso da Lingüística Estrutural, apesar de o Estruturalismo ter como um de seus principais objetivos fundar uma ciência autônoma, cujo objetivo específico fosse o estudo da linguagem, desvinculado do pensamento.

Com este ensaio antecipamos, resumidamente, nossas observações quanto à confusão entre gênero gramatical e sexo em nossa gramática tradicional. Tais considerações são por nós apresentadas em nossa análise crítica e comparativa da Grammatica philosophica da lingua portugueza de Jerônimo Soares Barbosa[1].

 

 

DOS GÊNEROS DOS NOMES

 

"Genero", esclarece Soares Barbosa, "quer dizer classe, e esta é a coordenação de muitos individuos ou coisas que tem alguma qualidade comum a todos”. (BARBOSA, 1881, p. 85). Mattoso Camara Jr., bem mais tarde, veio a dizer: “na realidade, o gênero é uma distribuição em classes mórficas, para os nomes, da mesma sorte que o são as conjugações para os verbos”, com a diferença que “as conjugações verbais não têm a menor implicação semântica”, ao passo que “a oposição masculino-feminino serve freqüentemente para em oposição entre si distinguir os seres por certas qualidades semânticas,...”. (CAMARA JR., 1973, p.78).

Argumenta Soares Barbosa que, “como todos os animaes naturalmente se distinguem em duas classes ou generos, segundo os dois sexos de macho e de fêmea”, teriam os gramáticos relacionado os nomes dos primeiros na classe ou gênero masculino e os dos segundo, no feminino. (BARBOSA, 1881, p. 85). .

Tal deveria ser a correlação:

 

macho - gênero masculino

fêmea - gênero feminino

             sem sexo- gênero neutro

 

Estas seriam as classes naturais, “em que entram os animaes”. "Todos os mais seres que não tem sexo algum”, pondera, “deveriam ser arrolados na classe ou genero neutro, isto é, formarem todos uma terceira classe, em que entrassem os nomes dos individuos e das coisas que nenhum sexo teem, nem masculino nem feminino”. (BARBOSA, 1881, p. 86). “Porém”, acrescenta, “o uso das Linguas, sempre arbitrario ainda quando procura ser consequente, vendo que a natureza lhe tinha prescripto a regra dos sexos na classe dos animaes, quiz seguir tambem a mesma no nomes das coisas que os não podem ter, fazendo por imitação (grifamos) uns masculinos e outros femininos, e por capricho (grifamos) outros nem masculinos nem femininos, nem neutros". (BARBOSA, 1881, p. 86).

Quanto às classes naturais, esclarece que “a significação mesma determinava o seu genero”; nas classes arbitrárias, a terminação dos nomes analoga a dos primeiros é que a podia determinar”. (BARBOSA, 1881, p. 86):

.

       classes naturais gênero determinado pela significação

       classes arbitrárias – gênero determinado pela analogia entre a sua terminação e a dos nomes do primeiro caso – fixados pelo uso.

 

"D'aqui a divisão das regras dos generos dos nomes, ou pela sua significação, ou pela sua terminação”. (BARBOSA, 1881, p. 86):

 

  - determinados pela significação masculino (macho), feminino (fêmea),  

      (gêneros naturais)                      comum de dois e epicenos (sobrecomuns).

 

- dados a conhecer pela terminação dos nomesfixados pelo uso.

   (gêneros arbitrários  ou da terminação)

           

 

OBSERVAÇÃO:

 

O Larousse fala em gênero natural e gênero gramatical; por exemplo, ao dizer “En français, le genre naturel (mâle / femelle) et le genre grammatical (masculin / feminin) sont le plus souvente associés (mais non constamment) quand il s’agit des personnes”, ou ao ensinar que, quando o gênero gramatical contradiz o gênero natural (conflit de genre), a concordância se faz com o gênero natural (“Le professeur vient d’arriver; elle est nouvelle et donne une dictée”). A concordância no interior do sintagma nominal se faz com o gênero gramatical, no caso, le professeur, como le docteur, l’ingénieur”. (LAROUSSE, 1973, s/v GENRE).       

 

dos gêneros naturais determinados pela significação

 

REGRA I

 

- “São do genero masculino todos os nomes substantivos que significam macho

   assim proprios como appellativos”:

 

 “ou sejam de homens”: André, rei

 “ou de brutos”: Bucefhalo, cavallo

 “ou de profissões e ministérios próprios dos homens: patriarca, magistrado, sacerdote

“e ainda aqueles que sendo femininos, quando significam coisas ou acções, passam a  designar varios officios proprios do homem”: o atalaya, o cabeça, o guarda, o guarda-

                                                                         roupa, o guia, o lingua, o trombeta, etc.

 

 

Conclui: 

 

E como na linguagem representativa da pintura e da poesia, se costumam representar em figura de homens os deuses fabulosos, os anjos, os ventos, os mares, os rios e os  mezes, isto bastou para se pôrem tambem na classe dos masculinos, como Jupiter, Lucifer, Norte, Olympo, Oceano, Tejo, Janeiro, e outros semelhantes”.         (BARBOSA, 1881, p. 87). 

    

                                     

REGRA II

 

- “São do genero feminino todos os nomes substantivos que significam femea”:

 

ou sejam proprios de mulher”: Mathilde, Ignez

ou appellativos de officios e coisas que lhe pertencem”: rainha, mãe, avó,

 madastra, costureira, tecedeira

       “ou de bruto”: egoa, vacca, raposa, rata, etc.

 “ou emfim coisas personificadas em figura de mulher, como as deusas

  gentillicas”: allas, Venus, etc.

“as partes principaes da terra”: Europa, Asia, Africa, America

“as sciencias e artes liberaes”: theologia, philosophia, pintura, poesia, historia,

 etc.

“as virtudes e as paixões”: justiça, prudencia, fortaleza, temperança, soberba,

 inveja, fortuna, fama, tec.

 

REGRA III

 

-  “São communs de dois, ou pertencem ora a um, ora a outro genero”, os nomes

    que

 

- ou com uma terminação maneira dos adjectivos de uma fórma) se podem applicar a macho, a femea”: infame, interprete, hypocrita, martyr, taful, virgem, etc.”

 

- “ou com uma terminação e debaixo de um genero (grifamos), ou masculino    

   ou feminino, servem para significar ambos os  sexos, no qual caso tem então o    

  nome de   epicenos, isto é, sobrecommuns”. Tais seriam:

         

     nomes masculinos: elephante, corvo, javali, crocodilo, rouxinol,

                                     e muitos outros.

 

       os nomes femininos: abada, cabra, codorniz, onça, perdiz,

                                         e outros infinitos.

 

 

da relação entre gênero gramatical e sexo

 

Jerônimo Soares Barbosa não incorre no equívoco em que veio a incorrer a gramática tradicional, que, nos casos acima, fala em distinção de gênero. Na realidade, os nomes ou são masculinos ou femininos, os termos macho ou fêmea lhes são acrescentados para distinção de sexo:

 

Quando é preciso especificar o sexo do animal, ajuntamos ao seu nome promiscuo, debaixo do mesmo artigo, o adjetivo explicativo macho e fêmea, dizendo: o elephante macho, o elefante femea, a onça macha, a onça femea, etc.”. (BARBOSA, 1881, p.88).

 

Atente-se para a flexão de gênero em a onça macha, em concordância com o gênero, feminino, de onça. Para Mattoso Camara, que veio a chamar a atenção para a impropriedade de tratamento dado aos chamados “epicenos pela gramática tradicional, a partir de argumentação semelhante à de Soares Barbosa, essa flexão não procede, posto que esses termos “funcionam como substantivos apostos, e por isso não concordam em gênero com o substantivo determinado”. ( CAMARA JR., 1973, p.79).

Também Júlio Nogueira vem a observar:

 

“Devemos dizer que os dicionários apresentam os qualificativos macho e fêmea como biformes, o que nos parece superficialidade. Tais qualificativos servem para esclarecer o sexo dos animais, cujos nomes não têm flexão genérica. Diz-se a cobra, o urubu. Uns indicam-se pelo masculino; outros feminino. Se, porém, temos de precisar o sexo, ajuntamos o qualificativo macho e fêmea. E basta. Para que dizer também: a cobra macha, o urubu fêmeo?”. (NOGUEIRA, 1956, p.62).

 

E terminar por questionar:

 

“Haveria diferença entre uma cobra macho e uma cobra macha? Entre um urubu fêmea e um urubu fêmeo?”. (NOGUEIRA, 1956, p.62-63).

 

É de se perguntar por que se veio a permanecer no equívoco para o qual tanto se alertou. Não se tem, na realidade, nem flexão, nem distinção de gênero, e sim de sexo. Cumpre lembrar que muitos de nossos gramáticos não incorreram nesse equívoco e alertavam para o que veio a observar Mattoso Camara Jr., que, tal como salientara Soares Barbosa, observa que não muda o gênero do nome com a indicação do sexo por meio dos termos macho e fêmea, posto que “continuamos a ter a cobra macho, no feminino, como assinala o artigo feminino a, e, como o artigo masculino o continuamos a ter o masculino o tigre fêmea”. (CAMARA JR., 1973. p.79).

As considerações de que parte Camara Jr. estão expostas na gramática filosófica. Para elas alertara Soares Barbosa, como expusemos anteriormente, e, antes dele, os gramáticos de Port-Royal, que, dentre outras coisas, afirmam:

 

“On voit encore par-là que ce les grammariens appellent épicène, n’est point un genre  séparé: car vulpes, quoiqu’il signifie également le mâle et la femelle d’un renard, est véritablement féminin dans le latin.Et de même une aigle est vériablement feminin dans le français, parce que le genre masculin ou féminin dans un mot ne regarde pas proprement la sgnification, mais le dit seulement de telle nature, qu’il se doive joindre à l’adjectif dans la terminaison masculin ou féminin. Ainsi custodioe, des gardes, ou des prisionniers; vigilioe, des sentinelles, et., sont véritablement féminins, quoiqu’ils signifie des hommes”.  (ARNAULD/ LANCELOT, 1969, p.33).

 

Camara Jr. após dizer que “a flexão de gênero é exposta de uma maneira incoerente e confusa nas gramáticas tradicionais do português”, observa que isso ocorreria, em primeiro lugar, “em virtude de uma incompreensão semântica da sua natureza”, pelo costume de associá-la intimamente ao sexo dos seres. (CAMARA JR., 1973, p.78). Essa “‘obsessão sexual para que apelou Leo Spitzer ao debater o gênero feminino em substantivos românicos que eram neutros em latim[2] ”, pondera, “não nos leva muito longe, por mais far-feched que teime em ser a nossa explicação”. (CAMARA JR., 1969, p.62-63). 

Quanto à sua observação de quedesde o velho Bopp (grifamos) há o afã de equiparar a categoria de gênero com a distinção dos sexos no reino animal” (CAMARA JR., 1969, p.61), ponderamos que esseafã”, na realidade, é anterior a Franz Bopp.   o discutiam os gramáticos de Port-Royal ao ponderar que a relação entre gênero dos nomes e sexo era um uso sem razão, que teria ocorrido por puro capricho, o que teria levado a que  houvesse variação de língua para língua com nomes que uma tivesse tomado de empréstimo a outra: arbor, masculino em latim e arbre masculino en francês; dens, masculino em latim e feminino em francês. (ARNAULD/ LANCELOT, 1969, p.31).

Argumentam ainda que isso poderia ocorrer numa mesma língua, de acordo com a época: “comme alvus était autrefois masculin en latin, selon Priscien, et depuis il est devenu féminin. Navire, en français, était autrefois féminin, et depuis il est devenu masculin”. (ARNAULD/ LANCELOT, 1969, p.31).

Muitos dos argumentos e ponderações apresentados por Mattoso Camara Jr., eminente representante do Estruturalismo no Brasil, que apresentou bases para a descrição da estrutura do português brasileiro, pontuando aspectos a serem reinterpretados em nossa tradição gramatical, se encontram expostos na gramática filosófica. Há que lembrar que a visão de Arnauld e Lancelot, exposta na Gramática de Port-Royal, subjazem ao discurso da lingüística estrutural, apesar de o estruturalismo ter como um de seus principais objetivos fundar uma ciência autônoma, cujo objetivo específico fosse o estudo da linguagem, desvinculado do pensamento. Como um dos  exemplos dessa tensão dialógica entre as duas correntes de estudos nas ponderações de Camara Jr, Maurício da Silva cita exatamente a interpretação daquele autor quanto à questão do gênero em português, "em que se percebe claramente que o discurso racionalista é o implícito básico dessa necessidade de reinterpretar a questão”. (SILVA, 1997, p.57).

 Sílvio Elia, após observar que “a técnica de abordagem dos fatos da Natura ou da Cultura difere essencialmente conforme se adote uma visualização empirista ou racionalista” e que, “na primeirafala’ a Natureza; na segunda, a Inteligência”, conclui:

 

Postas as coisas nesse plano, segue-se que a perspectiva do Estruturalismo é racionalista e não empirista (destacamos). Os fatos não se explicam pela sua singela concatenação, ordenação ou generalização. Eles constituem partes de um todo e tem sentido quando referido a esse todo”. (ELIA, 1973, p.12).

 

 

                               CONCLUSÃO

 

No  Brasil, há que registrar, muitos de nossos estudiosos mais antigos alertaram contra a confusão que se estabelecera ente gênero gramatical e sexo. Nesse ensaio pontuamos algumas dessas contribuições.

Bem antes deles, Jerônimo Soares Barbosa o fizera. Mais uma vez constatamos a importância da Gramática Filosófica Jerônimo Soares Barbosa na descrição e análise não de fatos gramaticais do português. Barbosa antecipa, o dissemos em vários momentos, discussões e conceitos novamente trazidos à discussão e análise por estudiosos mais recentes como se novidade fossem.  Ele, cabe sempre dizer, é também tributário dos que lhe serviram de inspiração e/ou fonte de consulta. No que lhe era possível nomeá-los, tendo em vista as proibições da época ou mesmo a falta de habito em fazê-lo, ele os nomeia, indicando-lhes a(s) obra(s) de referência.

que resgatá-lo e aos estudos da gramática filosófica, abandonada como se mérito nenhum tivesse. Dela é tributária nossa gramática tradicional.

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLOGRÁFICAS:

 

ARNAULD, A & LANCELOT, C. Grammaire Générale et Raisonnée, Paris, Publications Paulet, 1969.

 

BARBOSA, Jerônimo Soares. Grammatica philosophica da lingua portugueza ou principios da grammatica geral applicados à nossa linguagem, 7ª ed., Lisboa, Typographia da Academia Real das Sciencias, 1881.

 

CAMARA, Jr., J. Mattoso. Estrutura da Língua Portuguesa, 4.ª ed., Petrópolis, Vozes, 1973; 6ª  ed., Petrópolis, Vozes, 1976.

 

_________________ Problemas de Lingüística Descritiva, Petrópolis, Editora Vozes, 1969.

 

ELIA, Sílvio. “De Bopp a Chomsky”, in A lingüística hoje, Revista Tempo Brasileiro, n.º 32, Ed. Tempo Brasileiro, Rio de   Janeiro, jan.-mar./1973. p. 05-17.

 

DUBOIS, J, GUESPIN, L.; GIACOMO, M.; MARCELLESI, C.; MARCELLESI, J.B. & MÉVEL, J.P. Diccionaire de Linguistique, Paris, Libraire Larrousse, 1973.

 

NOGUEIRA, Júlio. Indicações de Linguagem, col. “Rex”, n.º15, Rio de Janeiro, Org. Simões,            1956.

 

RANAURO, Hilma P. Normas e usos em Jerônimo Soares Barbosa -  uma análise critica e comparativa da Gramática Filosófica de Jerônimo Soares Barbosa, inédito. Inédito.

 

SILVA, Maurício da. “Uma leitura da Gramática de Port-Royal”, in, Gláuks Revista de Letras e Artes, Universidade Federal de Viçosa, Departamento de Letras e Artes, ano 2, vol. 3, Viçosa, UFV / DLA, 1997. p. 49-61.

 

 

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[1]RANAURO, Hilma P. Normas e usos em Jerônimo Soares Barbosa -  uma análise critica e comparativa da Gramática Filosófica de Jerônimo Soares Barbosa, ainda inédito.

 

[2] “Feminización del neutro”, Revista de Filologia Hispánica, Buenos Aires – Nova York, 1941.?????

 

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