USO LITERÁRIO DA LINGUAGEM: o ensino integrado da língua e da literatura


 

“A mudança no campo ótico do império disciplinar tornou-se inadiável.   A cooperação  interdisciplinar aos poucos se impôs (...) Trata-se de estabelecer e instigar esferas da coabitação, saberes reconstrutivos, lugares reciprocamente fecundantes.”

(PORTELLA, 1993, pp.5-6)

 

 

USO LITERÁRIO DA LINGUAGEM:

 

            O emprego da linguagem no dia-a-dia, na vida prática, bem como o seu emprego em textos técnicos, científicos são considerados usos. Para alguns estudiosos, o emprego da linguagem na literatura, ou o uso literário da linguagem, não deve ser considerado um uso particular da linguagem como os demais, mas a sua plena funcionalidade (ou a sua plenitude funcional), isto é, a plena realização de suas possibilidades, potencialidades, virtualidades. Eugenio Coseriu chega a afirmar: “qualquer outro uso, sendo precisamente uso, é uma redução da linguagem, tal como se apresenta na literatura com o desdobramento de suas possibilidades”. (COSERIU, 1993, p.39). Considera ele o emprego da linguagem na vida prática ou na ciência uma “drástica redução da plenitude funcional da linguagem”. Quando o fazemos, na realidade “minimizamos a linguagem”, reduzindo-a a mero instrumento de uma finalidade determinada e imediata, sendo que, em uso na literatura, a linguagem constituiria a finalidade em si mesma, o objeto maior a ser alcançado enquanto construção do sentido. (COSERIU, 1993; p.39) Muitos são igualmente os que criticam o privilégio dado à língua escrita, especialmente à língua literária, reivindicando a primazia da linguagem oral.

            Cabe lembrar que, tanto na linguagem falada como na linguagem literária, o usuário da língua pode exercer sua criatividade. Poeta e falante aí se equivalem. “Enquanto poder de criação, em seu momento absoluto, linguagem e poesia se identificam”, diríamos com apoio em Sílvio Elia. (RANAURO, 1997, p.76)

            Poucos além de Roman Jakobson, buscaram aplicar as técnicas de investigação lingüística, até então aplicadas à  linguagem falada, à linguagem literária. Perderam ambas, a ciência lingüística e a ciência literária.

 

CIÊNCIA LINGÜÍSTICA E CIÊNCIA LITERÁRIA:

 

              A ciência lingüística é naturalmente autônoma em relação à ciência literária, e vice-versa. No nível universitário, em termos da especialização, é possível, e até pedagogicamente necessário, distingüi-las. O mesmo não se pode dizer no nível do ensino dos 1º e 2º graus. Neles, a relação entre ambas deve constituir a própria base do ensino.

            Ao ensino universitário cabe preparar especialistas, técnicos da linguagem e/ou da literatura. Já o ensino da língua nos 1º e 2º graus, além de capacitar o aluno para usá-la de modo eficaz e adequado, deverá igualmente fornecer a esse aluno conhecimento sobre o funcionamento dessa língua, dando-lhe igualmente condições para compreender e apreciar a(s) sua(s) literatura(s).

   

  SABER IDIOMÁTICO E SABER EXPRESSIVO:

   

            Existe o que se pode chamar de “saber idiomático”, da mesma forma que se tem o “saber expressivo”. No nível do “saber idiomático”, temos tudo que constitui regra, em função de uma língua, não o sendo necessária ou obrigatoriamente em outra língua. No “saber expressivo”, estaria o saber próprio de uma determinada língua no/do nível do texto, no/do nível do discurso: saber estruturar um texto, saber falar em determinadas situações, de acordo com a(s) pessoa(s) com quem se fala, com os objetivos a serem alcançados e as intenções (às vezes, até “segundas intenções”) norteadoras do discurso (competência comunicativa). Os “desvios”, nesses casos, não constituiriam “erros” propriamente, ou incorreções idiomáticas, mas inadequações, impropriedades, inconveniências.

            O saber produzir, estruturar textos e/ou discursos é muitas vezes avaliado, “medido” pelo outro, pelo que diz, opina sobre o desempenho deste ou daquele usuário da língua. Os falantes percebem, de forma instintiva, as adequações, mais ainda as inadequações, desta ou daquela maneira de dizer, de expressar-se, enfim. E se preocupam com isso: “Como vou dizer, ou como devo dizer isso?”; “Não era bem isso que eu queria dizer”.; “Do jeito com que você falou, dá até a impressão que...”, etc., etc. É esse o “saber expressivo”.

            Saber falar é complexo, embora se diga ser ele instintivo no falante, já que é instintivamente adquirido, normalmente, sem grandes dificuldades. Para se falar, bem como para que se detecte o sentido do que se ouve, é necessário, além do saber idiomático e do saber expressivo, de vários outros “saberes”. Ao se conversar com alguém, por exemplo, cabe atentar para este alguém, percerber-lhe as intenções ou possibilidades de intenções, seu caráter, trazer à lembrança as situações e os discursos que porventura precederam ou mesmo desencadearam aquela situação de comunicação, muitas vezes até mesmo depreender o conhecimento, ou mesmo desconhecimento, do interlocutor sobre o assunto em questão, sua disponibilidade para aquela conversa, atentar para a conveniência ou não de certas colocações, dentre outras coisas. Esses e muitos outros fatores podem ser facilitadores ou complicadores da “conversa”, do diálogo, da comunicação, e fazem parte de nossa competência comunicativa. Quantos mal entendidos não são gerados pelo desconhecimento ou mesmo desatenção para com esses e tantos outros fatores determinantes e condicionadores de todo processo de comunicação? “Se pois, eu não souber o sentido da voz serei estrangeiro para aquele que fala, e o que fala estrangeiro para mim”. (I Coríntios 14:11, in Bíblia Sagrada, 1994, p.168).

   

ENSINO DA LÍNGUA - estímulo à criatividade

 

            O ensino, sabemos, só pode ser ensino exemplar. É empiricamente impossível ensinar toda a linguagem. A cada momento, podem surgir novos procedimentos, existentes como possibilidades da linguagem, até então não realizados. O ensino deve estimular a (ou à) reflexão lingüística em relação a fatos da língua e suas funções estruturais, de modo a criar no aluno o hábito de pensar e descobrir fatos análogos. Há que levá-lo a tomar consciência da língua e das suas possibilidades, estimulando-o, ao mesmo tempo, à criatividade, a ser exercida e exercitada, falando ou escrevendo, ouvindo ou lendo. Poucos, além de Roman Jakobson, tentaram aplicar as técnicas de investigação até então aplicadas à linguagem falada à linguagem literária.

            Quando se chama a atenção do aluno para o efeito de sentido gerado por esta ou aquela construção, para o emprego deste ou daquele vocábulo, e não de outro que igualmente poderia ali estar, por exemplo, se está mostrando, de certa forma, como se faz, como se realiza este ou aquele texto, o que não implica obrigatoriamente que aquele a quem isso é mostrado, ensinado será capaz de realizá-lo, ou de realizá-lo de forma satisfatória, mas pode ser (e com certeza é, afirmamos com nossa experiência de sala de aula) um estímulo à criatividade e/ou ao gosto pela literatura.

            O ensino da língua de forma abstrata, com base na memorização de regras e funções sintáticas, por exemplo, sem que se saiba para que serve tudo isso, a sua utilidade prática, bem como a leitura como “dever”, obrigação, de textos desinteressantes e mal aproveitados, sem o estudo, aí sim, dos fatos da língua, no seu emprego e no(s) efeito(s) de sentido por eles conseguidos, provocados, gerados, sem que se leve o aluno a atentar para os recursos de que lançou mão o escritor na e para a construção daquele(s) efeito(s) de sentido, a nada ou a pouco levam. Estimular o interesse pela leitura, explorando o texto, considerando suas várias possibilidades, orientando o aluno para a busca de outros textos similares, é um dos caminhos.

            O ensino deve buscar/objetivar oferecer ao estudante de literatura um treinamento (não “macetes”) que lhe exercite, amplie e aperfeiçoe a capacitação para o estudo tanto da língua, quanto da literatura.

            Cabe revitalizar o ensino da gramática com uma “atividade” que ultrapasse o meramente classificatório, direcionando-o para uma reflexão sobre o funcionamento da língua em seu uso, no caso, o seu uso literário, com destaque para a sua dimensão sintático-semântica e pragmática.

            O nível lexical deve ser igualmente fonte de um trabalho pedagógico inovador e motivador (coesão lexical). Em termos de vocabulário, por exemplo, cabe lembrar que existe o vocabulário da fala, o da escrita e o vocabulário da leitura, isto é, aquele que reconhecemos no decorrer da leitura. O vocabulário reconhecível do usuário da língua inclui os dois primeiros e os que são “adivinhados”, deduzidos pela leitura, através da análise do contexto em que estão inseridos, o que cabe igualmente exercitar com os estudantes, para que eles sejam, cada vez mais, capazes de fazê-lo e mesmo estimulados a fazê-lo. Que eles percebam a existência de um vocabulário ativo, o que efetivamente utilizam, e a de um vocabulário passivo, que são capazes de reconhecer e compreender. A dedução pelo contexto, por informações contidas, depreendidas, inferidas no próprio texto é o que cabe exercitar e não aquela recorrência ao dicionário diante de qualquer vocábulo não identificado de imediato. Muitos são os que interrompem a leitura de um texto por esbarrarem com um termo até então desconhecido. Como nossos alunos desistem ou se desestimulam para as tarefas a serem por eles desempenhadas sob essa alegação !

            Ampliar nosso vocabulário, tanto ativo quanto passivo, é uma das muitas maneiras de ampliar a nossa competência lingüística, tornando o nosso desempenho, oral e/ou escrito, de produção, compreensão e interpretação de textos e discursos o mais satisfatório possível.

            Cabe ao ensino da língua e da literatura atentar para isso.

            “O poeta”, lembremos com Oswaldino Marques, “ao lidar com vocábulos, está amalgamando, de um só passo, a sua experiência e as fontes dessa experiência. A palavra é seu canal aferente anostomosado com o mundo - por ele a realidade irriga o criador e este, por seu turno, fecunda o real”. (MARQUES, 1962, p.18).

            O reconhecimento dos recursos expressivos da língua é algo a ser igualmente estimulado. Disso trataremos mais adiante (ESTILÍSTICA - intermediação).

 

TEXTO LITERÁRIO:

 

            Todo discurso, além de designação e significado, é portador de sentido. Este nunca deixa de estar presente, cabe sempre frisar. Os textos literários, em especial, apresentam uma construção de sentido. Interpretar um texto é muito mais do que buscar depreender-lhe a designação, o significado, mas principalmente buscar depreender-lhe o sentido, nível especial e superior de conteúdo.

            Muitas relações são (re)estabelecidas em função de experiências pessoais ou de acordo com a cultura na qual somos criados, pela qual somos/fomos influenciados. Há relações evocadas por determinado usuário da língua, e, muitas vezes, só por ele. Há, além disso, evocações realizadas por influência de outros textos (intertextualidade). Grande e decisiva é, enfim, a influência do acervo (passivo e inconsciente, muitas vezes) do leitor. Cabe ao ensino promover oportunidades para seu enriquecimento, ampliando-o e exercitando-o, “colocando-o em circulação”, diríamos.

            O reconhecimento da direção da construção do sentido do texto é realizado, também, pela contextualização, pois um texto, fora de seu contexto, pode ficar incoerente, de difícil compreensão, ou mesmo desinteressante. E como a maioria dos livros didáticos vêm utilizando essa prática!

 

ENSINO DA LÍNGUA INTEGRADO AO DA LITERATURA

 

            A análise e interpretação do texto literário deve levar à descoberta ou ao reconhecimento do seu sentido e dos indícios, pista, marcas para que este sentido seja reconhecido, marcas estas pelas quais o próprio sentido se faz construir, constituir, realizar. E é por essas marcas, que, num caminho inverso, o sentido se deixa descobrir, revelar, desvelar. A lingüística textual nas suas várias vertentes, nas suas variadas tendências, oferece aos estudiosos instrumental e suporte teórico-prático para a interpretação e análise da criação lingüística na construção do sentido, por meio da realização, atualização das possibilidades da linguagem que lá estão, à disposição de todo e qualquer usuário, mas nem sempre ao alcance de todos por não serem por todos percebidas, conhecidas ou reconhecidas, daí, não serem por eles “aproveitadas”, utilizadas, realizadas em suas múltiplas possibilidades.

            Ao ensino caberia chamar a atenção para as potencialidades e possibilidades de linguagem que se atualizam, ou se fazem realizar, no texto literário. Para percebê-las, para interpretar o(s) sentido(s) de um texto literário, é necessário conhecer as possibilidades de construção do sentido que se realizam ou se podem realizar na linguagem (e por ela) e depreendê-las, reconhecê-las, identificá-las. E isso só é possível através de um ensino de língua relacionado ao de literatura.

            É a significância, a possibilidade de produção do(s) sentido(s) (pluralidade), que afloram ou não, mas que estão lá, no vir-a-ser da escritura (não escrita). Cabe depreendê-los pela leitura (não lida): o leitor em permanente diálogo com o texto, o que depende de seu acervo (passivo e inconsciente muitas vezes, repitamos). É esse acervo que o ensino da língua e da literatura deverá buscar exercitar, mais, ampliar.

            Há realizações muito complexas, que vêm a atualizar possibilidades, virtualidades sequer imaginadas, mas que passamos a realizar na medida em que as “descobrimos” ou para ela somos alertados, sensibilizados.

            O texto, já se disse, e muitas vezes, é uma unidade de sentido. Mas, cabe lembrar, e sempre, uma unidade de sentido realizada, agenciada por elementos lingüísticos. Cabe estabelecer o papel desempenhado por esses elementos em relação ao todo que vêm a constituir. Promover o levantamento da relação entre esses elementos na construção desse todo e na constituição/construção do(s) sentido(s) a ele inerentes ou que ele veicula deve ser a tarefa maior, quiçá primeira, do ensino da língua.

 

LINGÜÍSTICA E LITERATURA - complementariedade

 

            A lingüística que examina as possibilidades que podem ser ou que são concretamente realizadas na literatura é necessariamente complementar à ciência da literatura. Esta, por sua vez, só tem a lucrar com essa complementariedade (interdependência).

            A coincidência dos dois pontos de vista se dá na lingüística do texto, lingüística que estuda o sentido e a construção do sentido, as operações lingüísticas, cognitivas e argumentativas que regem e regulam a produção a recepção do texto, oral ou escrito, sendo tal lingüística a forma mais adequada de hermenêutica literária, de interpretação do texto literário. Várias são as vertentes e correntes lingüísticas que se (pre)ocupam com o texto, literário ou não. Apesar dos enfoques diferentes, os princípios e pressupostos básicos de cada uma das diversas teorias do texto são comuns. Cabe ao professor decidir  qual ou quais os que lhe servirão de suporte teórico-prático para o seu trabalho.

            No estudo da literatura, cabe atentar para o meio pelo qual a linguagem se realiza. E que os lingüistas recorreram igualmente à orientação dos estudiosos da literatura. Os trabalhos de ambos são reciprocamente complementares e fecundantes.

            Ao professor cabe a orientação do aluno para o desmascaramento das várias leituras que um texto pode gerar e como percebê-las, localizá-las, depreendê-las nos e pelos elementos que o constituem. E isso passa pela apresentação dos mecanismos de construção do sentido. Isso pode até mesmo motivar os alunos para a produção de textos, com eficiência e criatividade.

 

ESTILÍSTICA - intermediação

 

            A Estilística surgiu como ciência na 1ª década deste século, graças aos estudos de Leo Spitzer, Karl Vossler e Charles Bally. De certa forma, ocupa uma posição intermediária entre a Lingüística e a Literatura, na medida em que estuda a expressividade das formas lingüísticas, sua capacidade de emocionar e sugestionar. Por ela se pode levantar, explicitar e analisar os fatos expressivos da linguagem, os procedimentos lexicais, fonéticos, mórficos e sintáticos utilizados pelo produtor do texto, na busca do levantamento dos efeitos de sentido por eles gerados e dos motivos que porventura tenham levado à sua escolha.

            Para o estudo dos fatos literários, dos fatos expressivos da arte literária, deve-se valer da ciência que privilegia a expressão. A Estilística tem, aí, papel importante. Cabe resgatá-la.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

COSERIU, Eugênio. “Do sentido do ensino da língua literária”. In Confluência. Revista do Instituto de Língua e Literatura, n. 5, Rio de Janeiro, Ed. Lucerna Ltda/ Liceu Literário Português, 1º semestre de 1993. pp. 29-47.

 

RANAURO, Hilma Pereira. Contribuição à Historiografia dos Estudos Científicos da Linguagem no Brasil - Sílvio Elia e João Ribeiro, Rio de Janeiro, Ed. Tempo Brasileiro/FEUC, 1997. P.76.

 

MARQUES, Oswaldino. O Laboratório Poético de Cassiano Ricardo. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1962.

 

PORTELLA, Eduardo. “A disciplina complexa”, in Revista Tempo Brasileiro, n. 113, Rio de Janeiro, Edições Tempo Brasileiro, abril/junho/1993. pp.5-8.

 

BÍBLIA SAGRADA. Novo Testamento, I Coríntios, versão revisada da tradução de João Ferreira de Almeida, de acordo com os melhores textos em hebraico e grego, 4ª impressão, Rio de Janeiro, Imprensa Bíblica Brasileira, 1994. p.168. 

 

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